VOZES DA AMERICA


Autor: Fagundes Varella
Título: VOZES DA AMERICA
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 18/05/2005

VOZES DA AMERICA

 
 

Fagundes Varella

 
 

DEIXA-ME

 
 
Quando cançado da vigilia insana
Declino a fronte n’um dormir profundo,
Porque teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?
 
Porque teu vulto se levanta airoso,
Tremente em ancias de volupia infinda?
E as fórmas núas, e offegante o seio,
No meu retiro vens tentar-me ainda?
 
Porque me fallas de venturas longas,
Porque me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes á fogueira extincta,
Dôces perfumes a pollutas flôres?
 
Não basta ainda essa existencia escura,
Pagina treda que a teus pés compuz?
Nem essas fundas, perennaes angustias,
Dias sem crenças e serões sem luz?
 
Não basta o quadro de meus verdes annos
Manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exilio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?
 
Ah! não me lembres do passado as scenas
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?
 
A quantos outros, inda os labios quentes
De ardentes beijos que eu te déra então,
Não apertaste no vazio seio
Entre promessas de eternal paixão?
 
Oh! fui um doudo que segui teus passos,
Que dei-te em versos da belleza a palma;
Mas tudo foi-se, e esse passado negro
Porque sem pena me despertas n’alma?
 
Deixa-me agora repousar tranquillo,
Deixa-me agora dormitar em paz,
E com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!
 
 

NÃO TE ESQUEÇAS DE MIM!

 
 
Não te esqueças de mim, quando erradía
Perde-se a lua no sidéreo manto;
Quando a briza estival roçar-te a fronte,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
 
Não te esqueças de mim, quando escutares
Gemer a rôla na floresta escura,
E a saudosa viola do tropeiro
Desfazer-se em gemido de tristura.
 
Quando a flôr do sertão, aberta a medo,
Pejar os ermos de suave encanto,
Lembre-te os dias que passei comtigo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
 
Não te esqueças de mim, quando á tardinha
Se cobrirem de nevoa as serranias,
E na torre alvejante o sacro bronze
Dôcemente soar nas freguesias!
 
Quando de noite, nos serões de inverno,
A voz soltares modulando um canto,
Lembre-te os versos que inspiraste ao bardo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
 
Não te esqueças de mim, quando meus olhos
Do sudario do gelo se apagarem,
Quando as roxas perpetuas do finado
Junto á cruz de meu leito se embalarem.
 
Quando os annos de dôr passado houverem,
E o frio tempo consumir-te o pranto,
Guarda ainda uma idéia a teu poeta,
Não te esqueça de mim, que te amo tanto.
 
 

SONETO

 
 
Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cysne inspirado em manso lago.
 
Beijava a onda n’um soluço mago
Das molles plumas e brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.
 
Vi-te; e nas chammas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!
 
Mas ai! cedo fugiste!… da soidade,
Hoje te imploro d’esse amor tão fundo
Uma idéia, uma queixa, uma saudade!
 
 

ELEGIA

 
 
A noite era bella: dormente no espaço
A lua soltava seus pallidos lumes;
Das flôres fugindo, corria lasciva
A briza embebida de molles perfumes.
 
Do ermo os insectos zumbiam na relva,
As plantas tremiam de orvalho banhadas,
E aos bandos voavam ligeiras phalenas
Nas folhas batendo co’as azas douradas.
 
O turbido manto das nevoas errantes
Pairava indolente no topo da serra;
E aos astros e ás nuvens perfumes, sussurros,
Suspiros e cantos partiam da terra.
 
Nós eramos jovens, ardentes e sós,
Ao lado um do outro no vasto salão;
E as brizas e a noite nos vinham no ouvido
Cantar os mysterios de infinda paixão!
 
Nós eramos jovens, e a luz de seus olhos
Brilhava incendida de eternos desejos,
E a sombra indiscreta do niveo corpinho
Sulcavam-lhe os seios em brandos arquejos?
 
Nós eramos jovens, e as balsas floridas
O espaço inundavam de quentes perfumes
E o vento chorava nas tilias do parque,
E a lua soltava seus tepidos lumes?…
 
Ah! misero aquelle que as sendas do mundo
Trilhou sem o aroma de pallida flôr,
E á tumba declina, n’aurora dos sonhos,
O labio inda virgem dos beijos de amor!
 
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os annos apontam.
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por gozos se contam.
 
Assim n’essa noite de mudas venturas,
De louros eternos minh’alma ennastrei;
Que importa-me agora martyrios e dôres,
Se outr’ora dos sonhos a taça esgotei?
 
Ah! lembra-me ainda! nem um candelabro
Lançava ao recinto seu brando clarão,
Apenas os raios da pallida lua
Transpondo as janellas batiam no chão.
 
Vestida de branco, nas scismas perdida,
Seu morbido rosto pousava em meu seio,
E o aroma celeste das negras madeixas
Minh’alma inundava de férvido anceio.
 
Nem uma palavra seus labios queridos
Nos dôces espasmos diziam-me então:
Que valem palavras, quando ouve-se o peito
E as vidas se fundem no ardor da paixão?
 
Oh! ceos! eram muitos… ai! mais do que mundos
Que a mente invadiam de ethereo fulgor!
Poemas divinos, por Deus inspirados,
E a furto contados em beijo de amor!
 
No fim do seu gyro, a noite a princeza
Deixou-nos unidos em brando sonhar;
Correram as horas – e a luz d’alvorada
Em juras infindas nos veio encontrar!
 
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os annos apontam…
E o tempo descora nos risos e prantos,
E o dias do homem por dôres se contam!
 
Ligeira… essa noite de infindas venturas
Sómente em minh’alma lembranças deixou…
Tres mezes passaram, e o sino do templo
Á reza dos mortos os homens chamou!
 
Trez mezes passaram; e um livido corpo
Jazia dos cyrios á luz funeral,
E, á sombra dos myrtos, o rude coveiro
Abria cantando seu leito final!…
 
Nós eramos jovens, e a senda terrestre
Trilhavamos juntos, de amor a sorrir,
E as flôres e os ventos nos vinham no ouvido
Contar os arcanos de um longo porvir!
 
Nós eramos jovens, e as vidas e os seios,
O affecto prendera n’um candido nó!
Foi ella a primeira que o laço quebrando
Cahiu soluçando das campas no pó!
 
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os annos apontam,
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias dos homens por dôres se contam!
 
 
___________________
 
Fonte: VARELLA, Fagundes. “Vozes da América”. In: Obras Completas. Edição organizada e revista por Visconti Coaracy. Estudo crítico de Franklin Távora. Vol. I. Rio de Janeiro: H. Garnier, s / d. p. 107-108 ; 111-113 ;