VOZES AO VENTO: BREVE ANÁLISE DE VENTOS DO APOCALIPSE, DE PAULINA CHIZIANE – Taiane Santi Martins


 

Taiane Santi Martins

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

 
Resumo: O presente artigo se propõe a analisar o romance Ventos do Apocalipse, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, pela perspectiva da construção das vozes dos personagens. A análise identifica quais as vozes que compõem o romance – vozes femininas, vozes dos excluídos e esquecidos, vozes marginalizadas – e de que maneira tal composição leva à construção de identidade e a embates como tradição e modernidade, oralidade e escrita.
 
Palavras-chave: Literatura Africana, Literatura Moçambicana, Paulina Chiziane, Oralidade.
 
Abstract: This article aims to analyze the novel Ventos do Apocalipse, by the Mozambican writer Paulina Chiziane, through the perspective of the construction of the characters’ voices. The analysis identifies which voices compose the novel – voices of women, of the excluded and forgotten, or marginalized – and how this narrative raises issues regarding the construction of identity and related to questions such as tradition and modernity, orality and literacy.
 
Keywords: African Literature, Mozambican Literature, Paulina Chiziane, Orality.
 
Minicurrículo: Escritora e doutoranda em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, mestre em Literaturas Estrangeiras Modernas, com ênfase em Literaturas Francesa e Francófonas, especialista em Literatura Africana de expressão francesa pela mesma universidade (2016).  É também formada em História – bacharelado e licenciatura – pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (2013), e no bacharelado de Letras – Literaturas e Língua Francesa – pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2013).
VOZES AO VENTO: BREVE ANÁLISE DE VENTOS DO APOCALIPSE, DE PAULINA CHIZIANE
 
Taiane Santi Martins
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
 
Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro, porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutai os lamentos que saem da alma, KARINGANA WA KARINGANA.
(Ventos do Apocalipse)
 
 
KARINGANA WA KARINGANA, a expressão que se traduz por “era uma vez” é a utilizada por Paulina Chiziane [1] para introduzir a narrativa de Ventos do Apocalipse. A autora faz com o leitor um pacto de contação de histórias, assim como o fazem
 
os escritores de contos de fadas. Mas as histórias de Paulina são contadas ao redor da fogueira, por vozes roucas já cansadas; vozes daqueles que viram muito mais sofrimento do que achavam que podiam aguentar, e mesmo assim ainda têm força para contar histórias à beira do fogo. As histórias de Paulina são contadas por vozes que anunciam ventos mórbidos.
Ventos do Apocalipse, publicado em 1995, é o segundo romance da escritora moçambicana Paulina Chiziane. Nele retrata o sofrimento e as mazelas trazidas pela Guerra Civil que se seguiu a Independência de Moçambique proclamada em 25 de junho de 1975. O romance retrata um cenário de violência, de descrença, de fome e de seca, um cenário de enfrentamento e de morte.
A narrativa é construída em três partes. Um prólogo, onde Chiziane conta – como se estivesse ela mesma ao redor da fogueira – três contos: O marido cruel, Mata que amanhã faremos outro e A ambição de Massupai. Os três contos são utilizados pela autora para dar o tom de leitura desejado e seus temas serão, de alguma forma, retomados ao longo da narrativa do romance. Além disso, a escolha por narrar contos antes do início da narrativa do romance ambienta os leitores ao redor da fogueira, voltados para a antiga tradição de se contar histórias ao pé do fogo.
A narrativa propriamente dita é dividia em duas partes. A “I Parte” narra a história de Sianga e Minosse, vivendo na vila de Mananga e sofrendo com a fome, a seca e a possibilidades dos conflitos armados atingirem a vila, o que de fato acontece. A “II Parte” narra a busca dos sobreviventes de Mananga por um local seguro, onde possam de alguma maneira reconstruir suas vidas, após tudo ser tirado de si.
Débora Leite David afirma que assim como na tradição bantu, Paulina Chiziane traz para os leitores essas pequenas referências a contos e provérbios, antes de começar a contar sua história para que a partir do uso destes elementos ancestrais, “a contadora de histórias estabeleça uma relação entre passado e presente, entre a tradição e a modernidade, indicando uma circularidade da vida e das histórias” (DAVID, 2007, p. 6).
É no sentido desta relação entre tradição e modernidade que me proponho a analisar a narrativa de Ventos do Apocalipse. Para isso é primeiro necessário contextualizar de que tradição estou me referindo. O ponto principal desta análise será o da oralidade e o da tradição oral. Ana Mafalda Leite diz que é a necessidade de legitimação de um espaço próprio das literaturas africanas em oposição às literaturas europeias que se leva o estudo da “oralidade” como um “instrumento de detecção da africanidade textual” (LEITE, 2012, p. 16). Isso causa alguns problemas de interpretação. O primeiro é relativo ao reconhecimento de que a literatura africana moderna nasce a partir da introdução da escrita e da língua do colonizador, as línguas europeias. Nesse sentido, pode-se entender que a escrita é europeia, enquanto a oralidade é africana; ou seja, a “natureza” da cultura africana é oral. (LEITE, 2012, p. 19). Essa premissa pode levar a um juízo de valor e a entendimentos um tanto errôneos. O primeiro de que não existia escrita em África antes da colonização europeia, quando estudos apontam a importância da escrita com caracteres árabes desde o século XIII, isso sem se falar na escrita egípcia que é anterior a isso (LEITE, 2012, p. 18-19). Outro é a crença de que devido ao fato de o continente ser fundamentalmente de expressão oral antes da chegada dos europeus não existiria uma literatura estruturada. Segundo o mexicano Brahiman Saganogo a literatura oral em África é de suma importância e constitui a difusão do “saber, da cultura, dos costumes, os usos, o pensamento e a filosofia africanos mediante uma retórica centrada essencialmente na memória, na elocução e na pronuncia” (SAGANOGO, 2008, p. 489). Nesse sentido, pode-se afirmar que a lógica da literatura oral em África é tão complexa quanto à lógica da literatura escrita, segundo os padrões estéticos ocidentais. Ademais, a literatura oral contava com quase todos os gêneros – poesia, teatro, conto. Com exceção do romance/novela por razões ligadas à essência do gênero em questão, como a extensão, e a unidade de composição (MARTINS, 2012, p. 20). É errôneo, portanto, pensar que a introdução da escrita e dos padrões estéticos europeus provoca a passagem da oralidade para a escrita, numa perspectiva evolutiva. Onde a escrita teria mais valor do que a oralidade e onde a oralidade seria abandonada em favor da escrita.
Ana Mafalda Leite afirma, pautada nos estudos de Honorat Aguéssy, que a “oralidade nas culturas africanas é uma ‘característica dominante’ e não a única e exclusiva” (LEITE, 2012, p. 20). Possuir uma tradição oral significa possuir toda uma episteme própria, é uma forma de pensar o mundo. Uma concepção própria de homem, tempo, vida, natureza, e essas concepções não precisam ser abandonadas
 
com a inserção de uma nova lógica de produção cultural, pautada na
 
escrita[2]. Talvez seja por isso que Paulina Chiziane nega o estatuto de romancista
 
dizendo-se, sobretudo, uma boa ouvinte e que a partir das histórias que ouve torna-se uma longa contadora de histórias. Ela diz:
 
Eu acho que o mundo está habituado a por rótulos em todas as coisas, nós queremos liberdade, mas as pessoas nos rotulam e a partir do momento em que a pessoa é rotulada de alguma coisa tem que pertencer a esse gueto. Romance é algo europeu, (…). Eu sou africana, contacto com o romance sim. Agora, se eu ser romancista, eu tenho que cumprir com as normas do romance. E eu não quero. Eu quero escrever em liberdade aquilo que me dá na cabeça. Porque se eu me apresento ao mundo como romancista, as pessoas vão querer cobrar de mim aquilo que são as regras de um bom romance, estou a fugir das regras. É só isso (CHIZIANE, 2009).
 
O que significa para Paulina escrever em liberdade, fugindo das regras e normas impostas por um tipo de escrita que não julga ser seu, senão um grito de independência? Uma aclamação de voz? O que Paulina diz ao renunciar o título de romancista é que ela tem voz própria, que ela pode falar a partir de seu lugar de mulher, de africana, de moçambicana, de escritora. Que ela pode falar pautada na sua cultura, nas suas vivências e experiências de vida; utilizando um mecanismo que outrora podia lhe ser estranho, mas que agora é tão seu quanto de qualquer outro, a escrita. É por sua vivência própria que Paulina Chiziane recorre às histórias contadas ao redor da fogueira em seus romances, é por suas experiências na vida que a oralidade está presente em seus textos:
 
Como me tornei escritora? É algo que não sei responder. Apenas posso dizer que a escrita escolheu-me, da mesma forma que a natureza me tornou mulher. Posso confirmar que a minha vivência também contribuiu para conduzir-me a este caminho.
As minhas memórias mais remotas são das noites frias à volta da lareira, ouvindo histórias da avó materna (CHIZIANE, 2013, p. 201).
 
É da memória da escritora que vem a familiaridade para contar histórias. Seja talvez pelas lembranças da avó materna que Paulina construa a personagem de Minosse, que depois de velha toma para si o encargo de contar histórias. É a partir da personagem de Minosse que pretendo abordar o primeiro elemento da relação entre tradição e modernidade presentes no romance. Elemento este residente na voz, no poder da fala.
Na literatura chamada tradicional de África se destacam as figuras dos griots, djélis, soras que poderiam ser caracterizados como verdadeiros historiadores tradicionais, são poetas e cantores que se encarregam de contar as façanhas dos heróis locais, histórias genealógicas, narram as lendas e contos maravilhosos onde homens e animais ganham vida (MARTINS, 2012, p. 20). São, pois, os homens quem detém o poder da fala, da contação de histórias. A mulher está resignada ao privado, ao espaço do lar e sua voz só tem vez entre elas mesmas. A própria autora conta que seguia todos os passos de sua mãe e ao fazê-lo observava seus cantos e lamentos, ouvia sua voz e das outras mulheres, mas era a única a fazê-lo:
 
No rio, enquanto me banhava, a minha mãe cantava e lavava roupas e mágoas. As outras mulheres faziam o coro. Estas cantigas umas vezes eram suspiros e outros murmúrios de angústia. Já em casa ouvia as cantigas de pilar milho e as de pilar amendoim. Eram todas tristes. O que consegui observar é que os homens ouviam-nas com total indiferença. Em momento nenhum da minha vida me recordo de ter ouvido, da boca de um rapaz ou de um homem, estas cantigas de mulher (CHIZIANE, 2013, p. 201).
 
Enquanto os homens, através da figura dos griots recebiam as glórias de um público atento, o espaço da mulher resigna-se ao das cantigas de lamúrias proferidas no decorrer dos trabalhos “de mulher” e ignoradas pelos homens. Em Ventos do apocalipse, Paulina Chiziane dá voz à mulher através de Minosse, a última esposa de Sianga, longe de ser a preferida, longe de ser a mais bonita, é submissa e infeliz e, ainda assim, é ela uma das grandes personagens do romance. Numa primeira leitura desatenta pode parecer que a autora retrata Minosse sob a mesma lógica da submissão e até inferioridade perante a figura masculina. Assim a descreve: “Esposa dos velhos tempos, ainda preserva as tradições e o respeito dos antigos” (CHIZIANE, 2006, p. 27).
A utilização da expressão “dos velhos tempos” já aponta para uma ruptura com a lógica da dominação masculina. Minosse foi a única das esposas de Sianga que não o abandou, ela sabe que pertence a outros tempos, ela sabe que o tempo mudou. Mas também sabe que mudou junto com o tempo, mesmo que escolha continuar ao lado do marido: “Minosse enfrenta o marido com fúria de fêmea. Os olhos dela são o céu inteiro desabando em catapultas de fúria” (CHIZIANE, 2006, p. 29). Minosse enfrenta o marido e reivindica sua voz, mais do que isso a conquista ao longo da narrativa.
Ela é a única personagem que permanece até o fim da narrativa. Sianga morre, assim como seus filhos e os demais personagens apresentados na primeira parte do romance; mas ela permanece e ganha importância. Enlouquece devido às amarguras da vida, os sofrimentos da guerra e caminhada em busca de uma nova aldeia; mas retorna da loucura e ainda, ao final da vida, reencontra a felicidade e realiza seus sonhos. Adota três órfãos na aldeia do Monte, e lhes chama de filhos, se encarrega ela mesma de lhes ensinar as coisas da vida:
 
Minosse conseguiu realizar um pedaço do seu sonho. Os meninos órfãos confiam nela. (…) Ensina-lhes as manhas da terra, os segredos da semente, as voltas da água e os movimentos do vento. Ela não pode ensinar mais do que isso. Lamenta o facto de não haver na aldeia uma escola onde possam aprender outros modos de vida porque o mundo moderno tem exigências que ela desconhece. As crianças deliram porque a velha apagou neles o fogo do terror. Quando a noite chega, sentam-se à volta da lareira e contam histórias (CHIZIANE, 2006, p. 227).
 
Minosse lhes ensina os segredos da terra, lhes transmite seus conhecimentos, conta-lhes histórias, preocupa-se com o futuro dos pequenos e lamenta-se por não poder ensiná-los mais, pois sabe que a sua voz será a única educação que terão, lamenta-se por saber que se trata de novos tempos e por saber que sua voz já não é mais o suficiente. É nesse sentido que a voz é um dos elementos de embate entre tradição e modernidade aportados pelo romance. Pois mesmo que as duas primeiras frases do livro sejam “Vinde todos e ouvi / Vinde todos com as vossas mulheres…”, pressupondo um narrador, um contador de histórias masculino; a grande voz do romance é uma voz feminina.
Inocência Mata, ao tentar conceituar o pós-colonial afirma que alguns entendem o termo como a situação em que viveram, e ainda vivem, as sociedades que recentemente saíram do sistema colonial. Ou seja, o sufixo “pós” do significante “colonial” estaria se referindo a sociedades que começam a agenciar a “sua existência com o advento da independência” (MATA, 2003, p. 45).  Nesse sentido, a pesquisadora apoia-se na teoria do historiador Henk Wesseling para afirmar que “o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflete sobre a sua própria condição periférica, tanto no nível estrutural como conjuntural” (MATA, 2003, p. 45), já que o processo de descolonização, de passagem ao pós-colonial exige, “um novo método de abordagem e diálogo com o mundo global, porque nessa nova conjuntura impõe-se a ‘lógica do gesto de abrir novos espaços’” (MATA, 2003, p. 46). O que seria, no contexto de Ventos do Apocalipse, abrir novos espaços, senão dar voz àqueles que há muito vêm sendo marginalizados?
Como afirma a pesquisadora Deolinda M. Adão, a grande maioria das personagens de Paulina Chiziane podem ser consideradas, de uma maneira ou de outra, como personagens com identidades marginais. Trata-se de personagens de meios rurais, que vivem na extrema pobreza, com baixo nível de escolaridade ou sem nenhuma, e que ainda vivem numa sociedade que há muito vem sofrendo com as pressões da colonização e da guerra civil (ADÃO, 2007, p. 2).
Inocência Mata ainda afirma que assim como a literatura anticolonial, literatura feita em África até aproximadamente final da década de 1960 – momento das lutas pelas independências da maior parte dos países africanos, mobilizou estratégias contra o discurso colonial – no sentido mais amplo do termo, no intuito de afirmar a diferença cultural e reivindicar a pátria, a atual escrita africana “mobiliza estratégias contradiscursivas que visam à deslegitimização de um projeto de nação monocolor em todos os sentidos” (MATA, 2003, p. 57). Ventos do Apocalipse narra a história daqueles que ninguém quer ver, nem dentro da própria sociedade moçambicana. Narra a história de refugiados de guerra, de pessoas marginalizadas historicamente tanto a nível internacional quanto dentro de suas próprias nações. Narra história de homens que acreditam que “se o homem é a imagem de Deus, então Deus é um refugiado de guerra, magro, e com ventre farto de fome” (CHIZIANE, 2006, p. 184).
Assim, para a supracitada pesquisadora o que romances como Ventos do Apocalipse faz é funcionar como:
 
(…) uma lógica antiépica que acaba por referenciar os ideais agônicos da revolução e do nacionalismo – e, claro, da cidadania, que nem logrou vingar. E isso através do despertar de vozes silentes e marginais resgatadas da História, descobrem-se as suas sombras, intervém-se na paisagem da cidadania e a nação começa a emergir colorida (MATA, 2003, p. 59).
 
Não sou, pois, a única a falar em vozes e despertar de vozes. Paulina Chiziane utiliza de outras estratégias para brincar e jogar com as vozes de seus personagens, além da própria escolha deles. Voltando para o campo do estudo da oralidade em si, Ana Mafalda Leite disserta a respeito dessas estratégicas utilizadas pelos escritores africanos para manter em seus textos escritos as marcas da oralidade.  E debate as ideias de Alioune Tine que afirma que “a literatura africana se define como uma literatura situada entre a oralidade e a escrita” (TINE, apud LEITE, 2012, p. 28) e afirma ainda que um dos traços que constitui a especificidade da literatura africana é a noção de “oralité
 
feinte », ou seja, “oralidade fingida”[3].
 
O conceito de “oralidade fingida” será entendido aqui como estratégias e marcas da oralidade que permanecem nos traços escritos de muitos autores africanos, incluindo Paulina Chiziane. Ou seja, o mesmo modo pelo qual Ana Mafalda Leite entende a oralidade, ou “oralidades” como fala em seu texto, como a maneira pela qual os escritores se relacionam com a textualidade oral e com as línguas, visto que as narrativas são escritas e publicadas nas línguas oficiais, nas línguas do outro. No caso das literaturas africanas de expressão lusófona, a pesquisadora distingue três maneiras de se relacionar com a textualidade oral. A primeira é a tendência de seguir uma norma mais ou menos padronizada, ou “oralizar” de alguma maneira a língua portuguesa. A segunda, refere-se a tentativa de “hibridização” da língua estrangeira através da “recriação sintática e lexical e de recombinações linguísticas” (LEITE, 2012, p. 36) provenientes das línguas locais. A terceira, o que é o caso de Paulina Chiziane, é menos recorrente por ser utilizada apenas por escritores que são de fato bilíngues e que possuem um contato mais próximo com as regiões rurais e se constitui por uma relação de diálogo linguístico. “Essa terceira e última situação, quase de dialogismo, é resultante da interação entre as duas línguas conhecidas, uma africana, e a outra, a língua portuguesa, que tentam como ‘traduzir-se’ mutuamente” (LEITE, 2012, p. 36).
Paulina Chiziane tem tanto a supracitada relação próxima ao
 
meio rural [4], como também situa os personagens de Ventos do Apocalipse neste meio e faz uso da estratégia apontada por Ana Mafalda Leite. Inclui frases,
 
nomes e expressões africanas no texto como se fizessem parte da língua portuguesa. Algumas das palavras utilizadas pela escritora estão traduzidas na parte final do romance em um glossário, mas nem todas. Para algumas delas o trabalho de entendimento é do leitor, que precisa prestar atenção no que está sendo narrado para conseguir entender o sentido da palavra estrangeira. Outras permanecem um mistério, até que o leitor busque referências fora do romance como é o caso da expressão “KARINGANA WA KARINGANA”.
Chegamos ao ponto final desta análise, uma análise pautada nas vozes, já me referi às vozes femininas, às vozes dos excluídos e esquecidos, às vozes marginais. Falemos agora do contraste de vozes que o final do romance traz. No penúltimo capítulo de Ventos do Apocalipse, Paulina faz com que as vozes dos novos e dos velhos entrem em disputa.
Na aldeia do Monte, quando a terra acorda e volta a dar vida após tudo ser destruído pela chuva, os homens comemoram e felizes querem dar graças pela alegria do recomeço, pela superação da desgraça. “Alguém sugere que seja feita uma festa aos defuntos à semelhança do mbelele que se realizou em Mananga” (CHIZIANE, 2006, p. 256). É ai que começa o problema, os jovens se opõem ao mbelele, ritual tsonga para fertilidade da terra, e ao culto aos defuntos, enquanto os velhos defendem a tradição.
A primeira parte do romance gira em torno do personagem de Sianga e sua família, e da sua tentativa de voltar a ter algum prestígio perante a comunidade local, através da realização do mbelele, para livrar a aldeia dos tormentos da seca, da fome, do sofrimento. Mas sua tentativa é frustrada, apesar de ter realizado o ritual, a aldeia é atingida pela guerrilha e destruída, a maior parte da população é morta, incluindo os seus dois filhos. Sianga é condenado e punido com a morte no final da primeira parte da narrativa, pela sua ambição em comandar a aldeia. Ao relembrar os acontecimentos sucedidos em Mananga os jovens da aldeia do Monte proclamam:
 
Velhos, olhemos para a trajectória da nossa vida. Façamos o balanço. Durante séculos ensinaram-nos a adorar os defuntos. Nos momentos de aflição chamamos por eles. Não respondem. Em Mananga, chegámos ao cúmulo de oferecer cabras malhadas, cereais, sacrifícios, pedindo auxílio a esses defuntos cegos e surdos. (…) A resposta foi a guerra, a fome e o sofrimento. Já é tempo de sepultar as crenças antigas. O culto aos antepassados é coisa para os velhos e não para os novos (CHIZIANE, 2006, p. 257).
 
Paulina traz para as páginas de Ventos do Apocalipse um embate literal entre tradição e modernidade e neste único capítulo, fazendo dele praticamente seu capítulo de tese. Nas seis páginas do capítulo 24, a autora usa da voz dos personagens dos novos e dos velhos para levantar discussões teóricas e filosóficas de maneira bem explícita. O velho Mungoni, representante da voz da tradição, rebate as críticas dos jovens:
 
Falar dos antepassados é falar da história desde povo, da tradição e não do fanatismo cego, desmedido. Não há novo, sem velho. O velho lega a herança ao novo. O novo tem a sua origem no velho. Ninguém pode olhar para a posterioridade sem olhar para o passado, para a história. (…) Acreditar nos antepassados é acreditar na continuidade e na imortalidade do homem (CHIZIANE, 2006, p. 257).
 
São belas e tocantes as palavras do velho Mungoni, mas ainda mais bela é a compreensão que ele transmite na sequencia de sua oratória quando compara as tradições novas e antigas por meio das religiões. Todas as religiões têm suas práticas sagradas e seus rituais, “celebram o nascimento e a morte de seus profetas”. E “Todas estas realizações não são mais do que uma nova face do culto aos antepassados. Fazer uma cerimônia dedicada aos defuntos da família, da tribo ou do clã é render homenagem à tradição, à história, à cultura.” (CHIZIANE, 2006, p. 257).  O que o velho Mungoni está dizendo é todos temos as nossas tradições, independente da cultura a qual pertencemos e independente da maneira pela qual a coloquemos em prática. Para além disso, o que as palavras do velho fazem refletir é que as tradições não precisam ser algo tão oposto a modernidade, modernidade e tradição não precisam ser elementos tão contrastantes. No final das contas é tudo uma questão de identidade:
 
A crise existe porque o povo perdeu a ligação com a sua história. As religiões que professa são importadas. As ideias que predominam são importadas. Os modos de vida também são importados. O confronto entre a cultura tradicional e a cultura importada causa transtornos no povo e gera uma crise de identidade. Estamos tão sobrecarregados de ideias estranhas à nossa cultura que da nossa gênese pouco ou nada resta. (…) O jovem que é eleito para a nova liderança leva dentro de si o conflito que irá desencadear a crise no sistema por ele dirigido. (…) Se ele não sabe que é nem de onde vem, logicamente que não saberá por onde deve caminhar (CHIZIANE, 2006, p. 258-259).
 
No final das contas, é uma questão de ter voz própria, de ter direito a voz. É uma questão de ter direito a tradição, de ter direito a sua cultura própria. A mensagem que Paulina passa pela voz do velho Mungoni é que o que realmente importa é a identidade, o que importa é o direito à voz própria:
 
Que venham os régulos, rei, ou outros com qualquer outro nome. Que sejam, como agora, estrangeiros à tribo e ao clã. Que sejam espíritos vindos do espaço.  O mais importante é que sejam homens de bem que deixem as pessoas viver de acordo com as marcas da sua identidade. Que saibam harmonizar o velho e o novo (CHIZIANE, 2006, p. 259-260).
 
Não é meu objetivo neste artigo debater teoricamente questões referentes à problemática identitária. Prefiro manter o embate aportado por Paulina nas páginas finais de seu romance no campo da reflexão literária, por este motivo a escolha por longas citações do texto da autora. Da mesma maneira que a escritora moçambicana faz na sua narrativa a escolha de dar voz a personagens que comumente não a teriam, opto por manter na parte final deste artigo a voz de Paulina; que ela possa despertar no leitor deste o mesmo tipo de efeito e reflexões que despertou em mim.
O cenário final de Ventos do Apocalipse é, sob um primeiro olhar, o da desesperança. A aldeia do Monte é engolida pelos cavaleiros do apocalipse e recebe seu batismo de fogo. Mas não se pode esquecer que Paulina começa o romance lembrando aos leitores que a vida é cíclica:
 
As folhas caem no Outono na ceifa do vento. As águas do rio desembocam no mar, voam para o céu e voltam, enchendo de novo os rios. As estações do ano andam a roda. Até nós, seres humanos, morremos para voltar a nascer. Somos a encarnação dos defuntos há muito sepultados, não somos? A terra gira e gira, a vida é uma roda, chegou a hora, a história repete-se… (CHIZIANE, 2006, p. 22).
 
O fim da aldeia do Monte não significa o fim da tradição, nem o apagamento da voz de seus aldeões. Assim como Paulina aponta para o movimento cíclico da vida, que este artigo abra a possibilidade de novos pensamentos, de novas reflexões e novas maneiras de se pensar o mundo e compreender as tradições orais.
KARINGANA WA KARINGANA.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADÃO, Deolinda M. Novos espaços do feminino: uma leitura de Ventos do Apocalipse de Paulina Chiziane. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura. A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.
CHIZIANE, Paulina. Ventos do Apocalipse. Lisboa: Caminho, 2006.
CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida ao programa A Páginas Tantas. 2009 (33min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yYIwTj7afJA. Acessado em 13.08.2014
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher…por uma nova visão de mundo, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Niterói, Vol. 5, n° 10, abril de 2013. Disponível em:
http://www.uff.br/revistaabril/revista-10/014_Paulina%20Chiziane.pdf. Acessado em 13.08.2014
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
DAVID, Débora Leite. O feminino em dois romances de Lídia Jorge e Paulina Chiziane, Revista Crioula, São Paulo, n° 01, 2007. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/52674. Acessado em 13.08.2014.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidade na produção e na crítica literárias africanas. In: Oralidades & escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.
MATA, Inocência. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In: LEÃO, Ângela Vaz (Org). Contatos e ressonâncias: literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
MARTINS, Taiane Santi. De mãos dadas: literatura e história, escrita e oralidade, tempo e memória nas narrativas de Mia Couto e Ahmadou Kourouma. 126f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação). Universidade do Estado de Santa Catarina – Centro de Ciências Humanas e da Educação. Curso de História. Florianópolis, 2012.
Disponível em:
http://www.pergamumweb.udesc.br/dados-bu/000000/000000000016/00001675.pdf.
 
NOTAS AO TEXTO
 
1 “Paulina Chiziane nasceu em 1955 na região de Gaza ao sul de Moçambique. Estreou como escritora com o romance Balada de amor ao vento, em 1990. Seguiram os romances Ventos do apocalipse em 1995, O sétimo juramento em 2000, e Niketche, uma história de poligamia em 2002. Apesar da pequena produção literária até o momento, Paulina Chiziane é considerada pela crítica uma das revelações mais promissoras da literatura moçambicana, além de ser a primeira mulher moçambicana a publicar um romance. Recebeu, ex-aequo, o Prêmio José Craveirinha de Literatura em 2003 pelo romance Niketche, uma história de poligamia, ao lado de Mia Couto.” (DAVID, 2007, p01)
[2] Não é meu objetivo, neste artigo, abordar profundamente o que é a chamada tradição oral africana, nem as concepções filosóficas aportadas por esta lógica de pensamento. Para maiores informações sugiro a leitura do trabalho: MARTINS, Taiane Santi. De mãos dadas: literatura e história, escrita e oralidade, tempo e memória nas narrativas de Ahmadou Kourouma e Mia Couto. 126f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação). Universidade do Estado de Santa Catarina – Centro de Ciências Humanas e da Educação. Curso de História. Florianópolis, 2012.
[3] O conceito de Alione Tine é questionado e aceito apenas em parte por Ana Mafalda Leite, isso porque ele poderia levar à ideia de que a literatura africana seria autenticamente africana somente se possuísse traços da oralidade. Não entenderei o conceito desta maneira, primeiramente, pois acredito, assim como Mia Couto (2011), que os escritores africanos compõem romances assim como qualquer outro escritor em qualquer parte do mundo e que, enfrentam as mesmas dificuldades e os mesmos desafios de composição. Segundo, pois, como pesquisadora das literaturas africanas, nego a necessidade de uma suposta autenticidade esperada dos autores africanos. Sabendo que a África foi e continua sendo sujeitada a sucessivos processos de “essencialização” e “folclorização”, além do mais, muito do que se considera como “autenticamente africano” é resultado de invenções feitas fora do continente africano.
[4] “Aos seis anos de idade abandonei o campo com meus pais e fomos viver no subúrbio da cidade. (…) Nas ruas do subúrbio sentia imensas saudades da vida livre e dos passeios nos campos. Para matar a saudade passava o tempo desenhando paisagens na tentativa de restaurar o paraíso perdido da primeira infância” (CHIZIANE, 2013, p.201-202).