Autor: Basilio da Gama
Título: URUGUAY
Idiomas: port
Tradutor:
Data: 16/03/2005
Basilio da Gama
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos, e impuros,
Em que ondeam cadaveres despidos,
Pastos de corvos. Dura inda nos valles
O rouco som da irada artilharia.
Musa, honremos o heróe, que o povo rude
Subjugou do Uruguay, e no seu sangue
Dos decretos reaes lavou a affronta.
Ai! Tanto custas, ambição de império!
E vós[1], por quem o Maranhão pendura
Rotas cadeias[2], e grilhões pezados,
Heróe, e irmão de heróes[3], saudosa, e triste,
Se ao longe a vossa América vos lembra,
Protegei os meos versos. Possa em tanto
Acostumar ao vôo as novas azas,
Em que hum dia vos leve. Desta sorte
Medrosa deixa o ninho a vez primeira
Aguia, que depois foge á humilde terra,
E vai ver de mais perto no ar vasio
O espaço azul, onde não chega o raio.
Já dos olhos o véo tinha rasgado
A enganada Madrid[4] e ao novo mundo
Da vontade do rei núncio severo
Aportava Cataneo: e ao grande Andrade[5]
Avisa que tem promptos os soccorros,
Em que em breve sahia ao campo armado.
Não podia marchar por um deserto
O nosso general, sem que chegassem
As conducções, que ha muito tempo espera.
Já por dilatadissimos caminhos
Tinha mandado de remotas partes
Conduzir os petrechos para a guerra.
Mas entre tanto cuidadoso, e triste,
Muitas cousas a um tempo revolvia
No inquieto agitado pensamento,
Quando pelos seus guardas conduzido
Um Indio com insignias de correio,
Com ceremonia estranha lhe apresenta
Humilde as cartas, que primeiro toca
Levemente na boca, e na cabeça.
Conhece a fiel mão, e já descança
O illustre general, que vio, rasgando,
Que na cera encarnada impressa vinha
A aguia real do generoso Almeida[6].
Diz-lhe, que está vizinho, e traz comsigo
Promptos para o caminho e para a guerra
Os fogosos cavalos e os robustos,
E tardos bois, que hão de soffrer o jugo
No pesado exercicio das carretas.
Não tem mais que esperar, e sem demora.
Responde ao Castelhano, que partia,
E lhe determinou lugar, e tempo[7]
Para unir os soccorros ao seu campo.
Juntos emfim, e um corpo do outro á vista,
Fez desfilar as tropas pelo plano,
Porque visse o Hespanhol em campo largo
A nobre gente, e as armas, que trazia.
Vão passando as esquadras: elle em tanto
Tudo nota de parte, e tudo observa
Encostado ao bastão. Ligeira e leve
Passou primeiro a guarda, que na guerra
E’ primeira a marchar e que a seu cargo
Tem descobrir a segurar o campo.
Depois desta se segue a que descreve,
E dá ao campo a ordem e a figura,
E transporta e edifica em um momento
O leve tecto e as movediças casas,
E a praça e as ruas da cidade errante.
Atraz dos forçosissimos cavallos
Quentes, sonoros eixos vão gemendo.
Co’peso da funesta artilharia.
Vinha logo de guardas rodeado,
Fonte de crimes, militar thesouro,
Por quem deixa no rego o curvo arado
O lavrador, que não conhece a gloria;
E vendendo a vil preço o sangue e a vida,
Move, e nem sabe porque move, a guerra.
Intrépidos, e immoveis nas fileiras,
Com grandes passos, firme a testa, e os olhos,
Vão marchando os mitrados granadeiros,
Sobre ligeiras rodas conduzindo
Novas especies[8] de fundidos bronzes,
Que amiúdam de promptas mãos servidos,
E multiplicam pelo campo a morte.
-Quem é este, Cataneo perguntava,
Das brancas plumas, e de azul e branco
Vestido, e de galões cuberto e cheio,
Que traz a rica cruz no largo peito?
Gerardo, que os conhece, lhe responde:
-E’ o illustre Menezes[9], mais que todos
Forte de braço, e forte de conselho.
Todo essa guerreira infanteria,
A flor da mocidade e da nobreza,
Como elle, azul e branco e ouro vestem.
-Quem é, continuava o Castelhano,
Aquelle velho vigoroso e forte,
Que de branco e amarelo e de ouro ornado
Vem os seus artilheiros conduzindo?
-Vês o grande Alpoim[10]. Este o primeiro,
Ensinou entre nós, por que caminho
Se eleva aos céos a curva e grave bomba
Prenhe de fogo: e com que força do alto
Abate os tectos da cidade, e lança
Do rosto seio envolta em fumo a morte.
Seguiam juntos o paterno exemplo
Dignos do grande pai ambos os filhos.
Justos céos! E é forçoso illustre Vasco[11],
Que te preparem as soberbas ondas,
Longe de mim, a morte e a sepultura?
Nymphas do mar, que vistes, se é que vistes,
O rosto esmorecido, e os frios braços,
Sobre os olhos soltai as verdes tranças.
Triste objecto de magoa e de saudade,
Como em meu coração, vive em meus versos.
Com os teus encarnados granadeiros
Tambem te vio naquelle dia o campo,
Famoso Mascarenhas[12], tu, que agora
Em doce paz, nos menos firmes annos,
Igualmente servindo ao rei e á patria,
Dictas as leis ao público socego,
Honra da toga e gloria do senado.
Nem tu, Castro fortissimo[13], escolheste
O descanço da patria: o campo e as armas
Fizeram renovar no inclyto peito
Todo o heróico valor dos teus passados.
Os ultimos, que em campo se mostraram,
Foram fortes dragões de duros peitos,
Promptos para dous generos de guerra,
Que pelejam a pé sobre as montanhas,
Quando o pede o terreno; e quando o pede,
Erguem nuvens de pó por todo o campo
C’o tropel dos magnanimos cavallos.
Convida o general depois da mostra,
Pago da militar guerreira imagem,
Os seus, e os Hespanhoes, e já recebe
No pavilhão purpureo, em largo giro,
Os capitães, a alegre e rica meza.
Desterram-se os cuidados, derramando
Os vinhos europeos nas taças d’ouro.
Ao som da ebúrnea cythara sonora
Arrebatado de furor divino
Do seu heróe Matusio celebrava
Altas emprezas dignas de memoria.
Honras futuras lhe promette, e canta
Os seus brazões, e sobre o forte escudo
Já de então lhe afigura, e lhe descreve
As perolas e o titulo de grande.
Levantadas as mezas, entretinham
O congresso de heróes discursos vários.
Ali Cataneo ao general pedia,
Que do principio lhe dissesse as causas
Da nova guerra, e do fatal tumulto.
Se aos Padres seguem os rebeldes povos?
Quem os governa em paz e na peleja?
Que do premeditado occulto império
Vagamente[14] na Europa se falava.
Nos seus lugares cada qual immovel
Pende da sua boca; attende em roda
Tudo em silencio, e dá principio Andrade.
-O nosso ultimo rei, e o rei de Hespanha
Determinaram, por cortar de um golpe,
Como sabeis, neste angulo da terra,
As desordens de povos confinantes,
Que mais certos signaes[15] nos dividissem.
Tirando a linha, donde a esteril costa
E o cerro de Castilhos o mar lava
Ao monte mais vizinho, e que as vertentes
Os termos do dominio assignalassem.
Vossa fica a Colonia, e ficam nossos
Sete povos, que os barbaros habitam
Naquella oriental vasta campina,
Que o fértil Uruguay discorre e banha.
Quem podia esperar que uns Indios rudes,
Sem disciplina[16], sem valo, sem armas,
Se atravessassem no caminho aos nossos,
E que lhes disputassem[17] o terreno!
Emfim não lhes dei ordens para a guerra:
Frustrada a expedição, emfim voltaram.
C’o vosso general me determino
A entrar no campo juntos, em chegando
A doce volta da estação das flores.
« Não soffrem tanto os Indios atrevidos;
Juntos, um nosso forte em tanto assaltam:
E os padres os incitam e acompanham;
Que, á sua discrição, só elles podem
Aqui mover ou socegar a guerra.
Os Indios, que ficaram prisioneiros[18],
Ainda os podeis ver neste meu campo.
« Deixados os quartéis, emfim partimos[19]
Por diversas estradas, procurando
Tomar no meio os rebellados povos.
Por muitas léguas de áspero caminho,
Por lagos, bosques, valles, e montanhas,
Chegamos onde nos impede o passo
Arrebatado e caudaloso rio[20].
Por toda a opposta margem se descobre
De barbaros o numero infinito,
Que ao longe, nos insulta, e nos espera.
« Preparo curvas balsas, e pelotas[21],
E em uma parte de passar aceno,
Em quanto em outra passo occulto as tropas.
« Quasi tocava o fim da empreza, quando
Do vosso general um mensageiro
Me affirma, que se havia retirado[22].
A disciplina militar dos Indios
Tinha esterilizado aquelles campos.
Que eu tambem me retire me aconselha,
Até que o tempo mostre outro caminho.
Irado, não o nego, lhe respondo:
Que para traz não sei mover um passo.
Venha quando puder, que eu firme o espero.
« Porém o rio e a fórma do terreno[23]
Nos faz não vista e nunca usada guerra.
Sae furioso do seu seio, e toda
Vai alagando com o desmedido
Pezo das águas a planicie immensa.
As tendas[24] levantei primeiro aos troncos,
Depois aos altos ramos: pouco a pouco
Fomos tomar na região do vento
A habitação aos leves passarinhos.
Tece o emaranhadissimo arvoredo
Verdes, irregulares e torcidas
Ruas, e praças de uma, e de outra banda,
Cruzadas de canôas[25]. Taes podemos
Co’a mistura das luzes e das sombras
Ver por meio de um vidro transplantados
Ao seio de Adria os nobres edificios,
E os jardins que produz outro elemento,
E batidas de remo e navegáveis
As ruas da maritima Veneza.
« Duas vezes a lua prateada
Curvou no céo sereno os alvos cornos,
E ainda continuava a grossa enchente!
« Tudo nos falta no paiz deserto.
Tardar devia[26] o hespanhol soccorro.
E de si nos lançava o rio e o tempo.
Cedi, e retirei-me ás nossas terras. »
Deu fim á narração o invicto Andrade,
E antes de se soltar o ajuntamento,
Com os régios poderes, que occultara,
Sorprende os seus – e o animos alegra,
Enchendo os postos todos do seu campo.
O corpo de dragões a Almeida entrega,
E Campo das Mercês o lugar chama.
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Fonte: GAMA, José Basílio da. Obras poéticas de José Basílio da Gama. Procedida de uma biographia critica e estudo literario do poeta por José Veríssimo. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. p. 95-102.