Revendo os limites e possibilidades do modelo brasileiro de educação literária – Cyana Leahy-Dios


Revendo os limites e possibilidades do modelo brasileiro de educação literária

Cyana Leahy-Dios
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Introdução

Em trabalho anterior (1), tratei dos ideários filosóficos dos dois principais paradigmas de educação literária no ocidente, inspirados em sua origem no positivismo de Auguste Comte, na França, e no liberal-humanismo de John Stuart Mill, na Inglaterra. Neste texto, pretendo tratar das influências ideológicas sobre as relações entre indivíduo e sociedade mediadas pelo ensino e aprendizagem formais de literatura. A evidência empírica deste trabalho se constrói no processo constante de observação de aulas de literatura em escolas de ensino médio, e em entrevistas periódicas a alunos e professores de literatura. Como professora de teoria e prática pedagógicas de língua e literatura nacionais na UFF, acompanho regularmente licenciandos em Letras em observação de aulas e docência supervisionada daquelas disciplinas.

Observando aulas de literatura na Inglaterra em 1994-95, pude perceber as diferenças filosóficas, metodológicas e teóricas entre o modelo brasileiro e o inglês na sua prática pedagógica cotidiana. Encontrei, em meio a limitadas variações estratégicas didáticas, uma linha de pensamento que não (re)conhecia, e que precisei pesquisar e analisar para que fizesse sentido. O modelo pedagógico-literário praticado na Inglaterra, construído sobre o ideário liberal-humanista de John Stuart Mill, não se sustenta sobre a historiografia literária, nem sobre teorias literárias. Segundo observado, nos anos escolares que precedem o ingresso ao terceiro grau (sixth form), o processo de aquisição de conhecimento literário se faz através da produção de ensaios monográficos por alunos, que interpretam e comentam a leitura de textos de autores canônicos previamente selecionados para os exames de A-level.

A escritura visa a estimular e desafiar o pensamento crítico como solução de um problema a ser solucionado de forma mais ou menos independente, com o acompanhamento do professor. Obviamente, o desempenho traz a marca das condições sócio-culturais dos estudantes. Em turmas maiores, nem sempre é possível ao professor mediar de perto o desenvolvimento individual. A prática, em última instância, revela o princípio do ‘cada um por si e Deus por todos’, estando o sucesso acadêmico bastante condicionado à reserva cultural do aluno. Grupos sócio-economicamente selecionados, oriundos das classes dominantes, e familiarizados com a leitura dos clássicos serão mais bem sucedidos. Dos ‘menos iguais’ será exigido um intenso trabalho (semi-autodidata) de apropriação dos valores britânicos tradicionais revelados na ‘alta’ literatura. Embora valorize a leitura e a produção de textos, o paradigma inglês é, na prática, seletivo, excludente, e pouco democrático. Estudar literatura para os exames, na opinião da maioria dos professores entrevistados na Inglaterra, deveria ser restrito aos alunos que detêm intimidade prévia com as tradições e valores literários e culturais da nação. Tal intimidade seria avaliada através de seu acervo de leitura dos clássicos e do domínio da arte da escrita.

Neste pequeno artigo, gostaria de voltar à questão do tratamento historiográfico dos estudos de literatura no Brasil. Julgo relevante tentar compreender melhor o significado de certas reações fortemente emotivas desencadeadas pela proposta de revisão de paradigmas, objetivos, métodos e pressupostos teóricos da educação literária, uma heresia que, para os defensores do cânone patriarcal, ameaça o patrimônio literário-cultural da nação.

A leitura e o estudo de literatura: depoimentos

Minha própria formação de leitura literária se deu, principalmente, em casa. Cresci lendo Monteiro Lobato, rapidamente descartado e esquecido à primeira leitura de Machado de Assis. Menos abertamente, li também toda a obra de Eça de Queiroz, cuja sensualidade explícita era considerada pouco recomendável para leitoras muito jovens. Estimulado e praticado, o ato de ler era atividade absolutamente prazerosa.

No segundo grau comecei a estudar literatura. A matéria não me desagradava, em sua apresentação historicizada, cronológica e linear: estudar história se assemelhava a um passeio agradável por um passado curioso, recheado de outros povos e tempos. Estudar literatura significava passear pelo Brasil colônia. Não havia qualquer associação, para mim, entre ‘estudar literatura’ e ler. Na verdade, os estudos literários se assemelhavam ao desafio semilúdico de solucionar um quebra-cabeças, ou preencher palavras cruzadas, sem importância ou um sentido próprio, quer no decifrar do significado original de um poema (o que ‘o autor quis dizer com aquilo’), quer na procura pelas características marcantes do período histórico de sua produção, século a século, segundo uma lista ditada pela professora que, por sua vez, a extraía de manuais pré-prontos. Talvez por não associar o estudo de literatura à leitura, mas à história linear de fatos e datas, meu prazer de ler — atividade não escolar — permaneceu intocado. Ler e estudar (sobre) literatura eram, sem dúvida, ações distintas.

Embora as características pedagógicas do aprendizado de literatura na escola estivessem fundamentalmente desvinculadas do ato de ler, eu diria que, naquele passeio seguro e distante por um passado imutável, havia uma identidade democrática. Memorizar as datas, os fatos históricos associados, as ‘culturas’ econômicas de cada época, e as características pré-definidas das escolas/períodos literários exigia apenas algum estudo, em qualquer lugar da casa e da cidade. Não era preciso uma família letrada, coleções literárias na estante, nem mesmo era preciso uma estante. Nunca soube de qualquer colega que tivesse sido reprovada em literatura. Apesar da superficialidade histórica e da não valorização do elemento ético-estético em nossos estudos literários, não havia distinção filosófica entre leitores e não leitores, seus ambientes de origem, o nível de instrução de seus pais. A ninguém era exigido que escrevesse um ensaio sobre a ironia em ‘O Guarani’ (2) — até mesmo porque os próprios professores dificilmente estariam equipados para cumprir tal tarefa. O único requisito para passar de ano era ter boa memória.

Evidentemente, falo de um processo pedagógico-literário praticado no passado, em escola pública estadual dos anos sessenta. No presente, sabemos que a evolução dos estudos teórico-literários se reflete necessariamente nas práticas pedagógicas de literatura, se entendermos ‘teoria’ como um movimento de ação-reflexão-ação. De que forma estão imbricados hoje os estudos crítico-literários dentro e fora da academia com a praxis das salas-de-aula de literatura? Com a palavra, alunos de 3º ano de ensino médio, submetidos à educação literária no ano 2000:

  • Para quê se estuda literatura na escola?

Para saber a diferença entre os povos, entre os estilos de época, a diferença entre o manifesto futurista, realismo, modernismo. E a importância também que teve … a abertura da Semana de Arte Moderna em 1922. A gente passa a entender o que significava música, o que significava teatro, todo tipo de cultura. (Sandra M, 3º ano).

Sei lá… pra passar o tempo… (Marcelo, 3º ano).

Não sei para que decorar essas características todas, quem foi fulano… (Júlia, 3º ano)

Todo mundo fala que ler é importante… Mas para quê? Não sei, não faço a mínima idéia…(Paulo, 3º ano).

Se leitura for literatura é uma coisa, é importante, mas se for isso que a gente dá na sala, é chato… (Eduardo, 3º ano).

Não sei pra que se estuda literatura… Bom, eu acho que é pra gente aprender sobre a nossa própria cultura, né? E a cultura de outros países… (Kelly, 3º ano).

Ah, creio que é pra gente saber… saber escrever bem, talvez… (Josivânia, 3º ano).

Às vezes acho que não serve pra nada… Posso até gostar de uma história, mas e daí? Daqui a pouco eu esqueço! (Vanessa, 3º ano).

Não devia ser matéria obrigatória! (Juliana, 3º ano).

Que rumos tomou a educação literária nos dias atuais? Porque ainda se encontra vinculada ao paradigma historicista de saber sobre a produção literária fragmentada em escolas, épocas, períodos? Porque não se privilegia a leitura, o leitor na prática pedagógico-literária? Porque não é priorizado o estudo das teorias literárias, entendidas como possibilidades de leitura, ao invés das características lineares e compartimentadas de tempos de escrita? Haverá, no ano 2000, a apropriação da leitura pelos estudos literários? Ou serão ainda atos independentes e isolados? O que esperam da educação literária alunos do 1º ano do ensino médio?

  • Para quê se estuda literatura na escola?

Para a gente entender o mundo em que a gente está. Para a gente ter consciência do que a gente faz, pensa, diz… (Gabriela, 1º ano).

Hoje em dia tem muitos autores… literatura é muito importante… (Luana, 1º ano).

Pra nada. (Bianca, 1ºano).

Pra saber o que já aconteceu. (Lívia, 1º ano).

Para conhecimento, essas coisas… sei não. (Natali, 1º ano).

Gabriela, Luana, Bianca, Lívia e Natali são alunas do 1º ano do ensino médio de escola estadual no Rio de Janeiro. Entrevistadas em março e abril de 2000, no início do ano letivo, as cinco alunas ainda não haviam tido contato efetivo com a disciplina literária. No contraste entre suas respostas e as dos colegas do 3º ano (acima) é possível perceber o ideal antecipado de relacionar literatura com leitura, visando a ampliar conhecimentos – da sociedade, do Outro, de si. O contraste entre a idealização da disciplina e a prática concreta aponta para algumas categorias de análise do problema.

A expectativa de ampliação de conhecimento de mundo através da literatura se transforma em descrença na própria competência de leitura, e nos limites da disciplina literária. Há uma nítida passagem do sujeito ativo (‘ter consciência’, ‘a gente faz, diz’, ‘entender o mundo’) ou indiferente (‘para nada’, ‘sei não’) ao sujeito passivo (‘para passar o tempo’, ‘não sei para que decorar essas características todas’, ‘para saber a diferença entre os povos’) ou hostil (‘é muito chato’, ‘daqui a pouco eu esqueço’, ‘não devia ser matéria obrigatória!’). Enquanto os iniciantes na disciplina associam o estudo de literatura à leitura, os que estão concluindo o ensino médio percebem que a disciplina está dissociada da leitura, do desenvolvimento de competência lingüística, da ampliação de universos sociais — a ‘leitura de mundo’ proposta por Paulo Freire. O triângulo multidisciplinar (língua, arte, sociedade)(3) perde a mobilidade, pousado sobre o elemento social que, na realidade, é limitado ao estudo acrítico e superficial de um passado histórico imutável, escrito por uma elite intelectual situada acima do bem e do mal.

Se minha própria experiência de leitura foi privilegiada pelas características domésticas e familiares, a experiência de leitura dos jovens entrevistados sofreu a influência de amigos e da mídia, e não da escola. A maioria dos 114 entrevistados inicialmente negou ter qualquer hábito de leitura; com alguma insistência, a maioria declarou ler jornais e revistas, sendo que alguns citaram, com alguma timidez, o escritor Paulo Coelho. As formandas do curso de habilitação pedagógica exemplificaram seu acervo de leitura com os títulos apresentados na disciplina literária: Gonçalves Dias, Castro Alves, Machado de Assis. Na realidade, haviam lido apenas os excertos encontrados em seus livros didáticos, como pôde ser apurado na conversa informal que se seguiu à entrevista gravada. Futuras professoras, porém, já estavam imbuídas do perfil seletivo dominante no magistério.

É possível, assim, perceber a manutenção da distância entre leitura e educação literária existente nos anos 60, experimentada por minha geração. Adolescentes percebem que, no universo escolar, há um descompasso entre o que realmente lêem (jornais, revistas, autores rejeitados pela crítica) e o que é considerado leitura por seus professores (obras clássicas de autores canônicos). Penso tratar-se de profundo engano acusar o jovem brasileiro de não-leitor, acusação essa que funciona como mais um elo na corrente colonizadora e autofágica de avaliação sócio-cultural da nação (‘brasileiro não lê’). Se há jornais e revistas no Brasil cuja tiragem ultrapassa aquela de países ditos desenvolvidos, e cujos cidadãos são admirados como leitores vorazes e competentes, é intrigante saber: quem os lê? Por que não poderia a escola formar leitores mais críticos a partir de seu universo concreto de leituras, ao invés de apostar em uma iniciação construída sobre o ideal elevado e elitista de imposição dos clássicos?

Problemas e dilemas sociais da educação literária

Em primeiro lugar, consideremos o papel atribuído à disciplina no panorama educacional nacional. A praxisindica que quanto menor a carga horária alocada a determinada disciplina, menor sua importância acadêmica. Encontramos na maioria das escolas de ensino médio (ex-2º grau) a média otimista de duas aulas de literatura por semana. De maneira geral, não se encontra nas escolas públicas estaduais (no Rio de Janeiro) a docência de literatura brasileira como disciplina independente de língua portuguesa. Oficialmente, unificam-se as duas áreas do conhecimento, subordinando os estudos literários aos estudos da língua portuguesa, o que em princípio não deveria causar maiores danos a qualquer das duas, ciênciaarte da palavra que são.

Evidentemente, é necessária uma relação dialógica entre língua e literatura, entre discurso e sociedade, entre as artes e as ciências. Não proponho que se mantenha distância entre as áreas, mas sim que suas particularidades e especificidades sejam reconhecidas, de forma multidisciplinar. O diálogo entre as disciplinas não significa superposição amorfa. Educar pela literatura requer transdisciplinaridade entre estudos da língua, da arte e da sociedade (4), embora atravessar fronteiras de conhecimentos não signifique o aligeiramento de qualquer deles; antes, a travessia exige o aprofundamento teórico dos saberes das diferentes áreas, para que faça sentido. Como equipar professores de literatura para que entendam a importância crucial de estudar literatura para a educação plena de sujeitos sociais? Como fazer de ler e estudar literatura uma associação de atos da língua, dos discursos sociais, culturais, pedagógicos, políticos?

Sinceramente, eu achava que literatura era pra gente aprender a fazer redação. Mas hoje em dia eu vejo que não tem nada a ver. Estou começando a aprender agora o sentido realmente da literatura… O texto literário é aquele negócio de época e tal, assim, o estilo… do lugar que vem, de quem faz, porque que faz… (Haila, 3º ano)

Embora queiramos acreditar que todo professor seja pesquisador (5), a realidade revela que a maioria dos docentes em exercício nas escolas entende como ‘pesquisa’ a preparação de suas atividades pedagógicas diárias, planejamento esse em geral limitado à leitura acrítica dos manuais distribuídos pelas editoras de livros didáticos. Se lhes perguntamos acerca de sua própria leitura, quase sempre citam ‘o livro didático’, ou leituras informativas para o desempenho da profissão. Com alguma insistência, revelam o hábito de ler jornais e revistas populares. Os mesmos materiais, entretanto, não são reconhecidos como leitura quando o leitor é o aluno.

Temos, assim, algumas áreas de conflito a enfrentar, como:

  1. a dissociação entre ler e estudar literatura;
  2. a passividade docente-discente perante o livro didático;
  3. a menos-valia da educação literária nos currículos escolares e programas pedagógicos;
  4. a manutenção ‘artrítica’ do perfil historiográfico dos estudos literários;

5. o tratamento acrítico do cânone, da disciplina literária, da produção de conhecimento em literatura.

Os limites deste trabalho me permitem apenas apontar tais questões, ainda sem o necessário aprofundamento de cada problema. Tentarei apenas levantar algumas reflexões sobre os limites e as possibilidades de educar pela literatura em tempo presente.

Para quê se estuda literatura? É pra ter mais um pouco de conhecimento sobre a literatura do Brasil. Pois poucas pessoas conhecem sobre a literatura mundial que é muito abrangente e muito forte e as pessoas estão precisando disso. (Willians, 3º ano).

Alguns comentários sobre a situação dos estudos literários nas escolas públicas de ensino médio (6) se fazem necessários. A maioria das coleções didáticas de literatura adotadas nas escolas de ensino médio se apresenta em três volumes, um para cada ano letivo. Algumas são apresentadas em conjunto com questões gramaticais (língua literatura). Para quem não está familiarizado com a prática de educação literária, esclareço que não se trata das antologias de contos ou poemas, mas sim de livros didáticos de literatura, elaborados segundo o paradigma historiográfico, com abundância de nomes (de homensque contribuíram para o acervo literário brasileiro), fatos (histórico-econômicos e biográficos sobre os mesmos homens), e características (inflexíveis) de cada escola literária — nomes, fatos e características esses sistematicamente ordenados do século XVI ao início do século XX, e um pouco menos daí para diante. Tempos modernos — e pós-modernos — exigem uma reflexão sobre questões contemporâneas e, por isso, são mais complicados e resistentes às tentativas burocráticas de catalogação estruturada. Algumas coleções somam cerca de mil páginas de informação cronológica sobre a história da literatura brasileira, com excertos de textos literários sob medida para informar alunos das características de cada período/escola literária. Cada coleção é acompanhada do manual do professor, elaborado com a finalidade explícita de facilitar o trabalho docente, semperda de tempo.

Chamo a atenção para a justificativa dos manuais: o professor não tem tempo para planejar suas próprias aulas, pois se desdobra em múltiplas jornadas, devido à remuneração inadequada do trabalho docente, tornado ‘fabril’ (7). Assim, ao invés de atacarmos a causa do problema — a proporção inversa entre tempo em sala de aula e tempo de preparação/planejamento das aulas — temos o trabalho do/a professor/a supostamente facilitado pelas editoras de livros didáticos, que fazem a ‘pesquisa’ por ele/ela, para que tenha mais tempo à frente de mais turmas. Uniformiza-se a preparação do ato pedagógico. A leitura se limita aos excertos de obras literárias selecionados pela editora, analisados segundo os códigos interpretativos sugeridos nos livros didáticos, para facilitar o trabalho do professor:

Um texto é literário quando o autor põe as coisas bem ocultas, entendeu? Para que a gente possa ir buscar, possa raciocinar por causa daquele texto, entendeu? Para que a gente possa descobrir o que ele quer passar pra gente. Ele não deixa nada explícito, ele é bem oculto. A gente estuda literatura para ampliar nossos conhecimentos, melhorar a linguagem, entendeu? Saber interpretar, saber expressar o que a gente sente. (Luana, 3º ano).

A perda de prestígio social do magistério, refletida na sua remuneração, marca a auto-estima intelectual dos docentes. Em entrevistas anteriores, ouvi doze professores de ensino médio rejeitarem para si o rótulo de ‘intelectuais’, pois ‘apenas executam um trabalho feito por alguém melhor equipado’ (em geral, reverenciam o/a autor/a do livro didático); nenhum dos doze entrevistados sabia citar um título sequer lido nos últimos doze meses, enquanto três consideravam a leitura semanal do ‘manual do professor’ como leitura; e quatro declararam ler jornais e revistas femininas pelo menos uma vez a cada quinze dias. Todos eram professores de língua e literatura nacionais, e trabalhavam em média 40 horas semanais, em mais de uma escola.

Nas escolas, a alocação atribuída à disciplina literatura na grade curricular costuma ser de 90 minutos semanais. Nesses encontros, a prática habitual encontrada nas escolas é o/a professor/a mandar que os alunos leiam algumas páginas do livro didático, em seguida respondam às perguntas do livro didático, verificando erros e acertos no infalível e indiscutível gabarito de respostas encontrado no próprio livro (8). Em 1995, a coordenação de língua e literatura nacionais de determinada escola estadual distribuiu aos professores, junto ao programa de conteúdos, uma nota pedindo ‘encarecidamente ao professor para não desperdiçar o tempo do aluno com leituras de livros inteiros’. Atribui-se ao livro didático poder/saber absoluto, inquestionável e infalível. O professor intimidado silencia e faz silenciar seu aluno:

Não sei dizer quando um texto é literário. Acho que a gente estuda literatura para aprender a gostar mais de leitura. Acho que incentiva a gostar mais de leitura. Traz muita informação sobre a literatura brasileira, como surgiu, o que é literatura brasileira. Acho que isso é importante pra gente. Acho que é necessário! Eu gosto de ler mais literatura infantil, sabe? Não gosto de ficção, essas coisas não. (Daniele, 3º ano).

Literatura na escola é para inteirar o país na história. Literatura pra mim é muito ligada à história, né? Então eu penso que é pra… Veja bem, quando se mistura os movimentos literários, trovadorismo e tudo o mais, é uma parte da história, tem todo um levantamento histórico. Acho que é pra você saber o que está acontecendo hoje também. Eu gosto de ler mas não livros, eu não me interesso por livros. Me interesso por uma literatura mais cotidiana, jornais, sabe? Colunas do Paulo Coelho… (Andréia, 3º ano).

Não sei se a gente podia ler outras coisas… não ia ter questões de múltipla escolha, não tem no livro didático! (Valéria, 3º ano).

Os professores internalizam a impotência diante do poder verticalizado que se manifesta através de circulares, decretos e normas impostas, dos livros e manuais que se apresentam como auxiliares facilitadores, mas que tomam seu lugar à frente da ação pedagógica. Silenciam sua perplexidade e obedecem como podem. Sua insegurança em relação ao planejamento e seleção de atividades reflete, em última instância, a inadequação de sua formação docente. Mantém-se, dessa forma, intacto o binômio ‘poder — solidariedade’ das relações sociais entre as classes dominantes e dominadas (9).

O livro didático merece especial atenção pelo fato de ser a representação escrita e concreta do (abstrato) cânone literário nacional. Segundo tal representação, a literatura brasileira vem sendo escrita há quatro séculos por uma maioria absoluta de homens brancos de classe média e escolaridade elevada. Raros são os professores de ensino médio que praticam em suas turmas a leitura crítica de tais livros: falta tempo para discussão, falta uma (re)visão crítico-social de sua ação. Uma formação acadêmica deficiente não os educou para a leitura resistente (Barthes), ou para uma hermenêutica da suspeita (Culler):

Um texto é literário quando o título chama a atenção da pessoa para ler. Literatura… no ensino médio, pode ser qual for, tem literatura, eu queria saber por quê… Sei lá, acho que aperfeiçoa nossa escrita… Eu tenho preguiça de ler. Se for um livro muito grande às vezes perco o interesse por ele ser grosso, desanima, mas eu gosto de ler. Eu li Diário de um Mago, não todo. (Daniela, 3º ano).

Estabelece-se um círculo vicioso de difícil interrupção ao se alimentar o vácuo entre teoria e prática, ação e reflexão. Há quem julgue a formação pedagógica dos licenciandos em Letras apenas uma formalidade desagradável e desnecessária que os separa de seus diplomas. Há, no meio acadêmico, professores que não entendem o papel político da ação docente; não têm a percepção de sua responsabilidade social como professores educadores de gerações de professores; não se fazem interlocutores entre os saberes construídos dentro e fora dos muros da universidade; ignoram o significado de teoria como reflexão sobre a praxis em permanente realimentação dialógica.

Entendo que a menos valia dos estudos de literatura na escola está intimamente ligada à permanência de um paradigma que consegue desagradar igualmente a professores e alunos (10). Poucas aulas, pouco interesse, nenhuma leitura, ausência de questionamento do modelo e da prática pedagógica, num silêncio ensurdecedor.

Texto literário é… uma passagem de época, um… tipo assim, algum fato que marcou numa época que passou, é… uma grande história, uma biografia… Literatura a gente estuda para entender melhor as coisas do mundo. Literatura para mim é um… é assim, não uma atividade extra-curricular porque é mais importante, entendeu? E acrescenta à nossa cultura literária. (Renata, 3º ano).

Valho-me da reprodução de algumas falas de professores de literatura, cujos depoimentos merecem nossa reflexão continuada, com outros textos, outras críticas, para confirmar os dilemas acima levantados:

– O que é a literatura para você?

‘É o que já foi estabelecido como reprodução do homem, de uma determinada época, em uma determinada região geográfica’. (I.).

‘Mas você quer o conceito de literatura — geral ou o que eu acho??? Literatura para mim está ligada a texto literário, à criação. É realmente você criar um texto, deixar sua emoção fluir. Até mesmo textos populares, ditos populares… Sendo criação para mim já é um texto literário.’ (E.)

‘Bem, eu trabalho a literatura como recriação da realidade, né? Você recria fatos sociais que aconteceram anos atrás, séculos… e é através da literatura que a gente percebe isso. Se bem que séculos atrás ela não seria considerada literatura… seria crônica, né? E atualmente, você pega a realidade que você não pode confrontar e transforma numa coisa mais agradável, né?’ (S).

‘A literatura, para mim, é… uma arte, né? Literatura é uma guerra permanente. Do escritor, do homem diante das evidências e das não-evidências do mundo…’ (J).

‘Literatura para mim é a própria vida, né? É… onde o indivíduo pode extravasar aquilo que traz dentro de si de criativo, de imaginativo a partir do próprio mundo em que ele vive, né? A forma de colocar para fora, toda a vivência dele, né? Que ele conseguiu acumular durante toda a sua vida, de uma forma poética, de uma forma artística, de uma forma diferente, né?’ (L).

Se a educação literária, tratada de forma acelerada e acrítica, se torna, para a maioria dos alunos, ‘uma matéria desnecessária’, ‘uma combinação malfeita de português com história’, as falas dos professores, suas reticências, limites e possibilidades apontam para questões mais profundas acerca do literário, da educação literária, da abordagem do artefato literário como matéria de ensino-aprendizagem.

– Para quê estudar e ensinar literatura na escola?

‘Para expressar o pensamento do homem… Não é ensinar apenas o livro, mas jornal, revista… qualquer forma que mostre e retrate os costumes de uma época, que expresse os costumes e uma época, que expresse o pensamento do homem preso a uma região e a um determinado tempo…’ (I).

‘Bem, a gente trabalha… Acho que o texto literário não é necessariamente aquele que segue a gramática normativa. É uma criação. Sendo criação para mim já é um texto literário. Ele não precisa ter o registro formal. Agora… não é assim que a gente trabalha… é impossível.’ (E).

‘Aqui, nós tentamos trabalhar a literatura para o aluno sensibilizar o texto literário (sic). É através da sensibilização que você mostra o que é arte, não é? Ela não faz parte mas… dentro do código, não é? Ela é uma coisa boa e aprazível se você gostar.’ (S).

‘Eu acho que literatura na escola visa, em primeiro lugar, a um contato com a leitura, um contato com a cultura de maneira geral. Aqui, nós damos especificamente a literatura brasileira. A literatura portuguesa é vista nas origens: trovadorismo, o período do classicismo, humanismo e tal. Mas basicamente a literatura brasileira, proporcionando um contato com a realidade nacional, né? A visão, em primeiro lugar é cultural, nesse aspecto.’ (J).

‘ Para quê? Eu acho que, em primeiro lugar, em razão de tudo o que já foi colocado, fazer com que cada indivíduo se descubra. Fazer com que ele ultrapasse a barreira, né, do externo, e ele consiga exteriorizar porque, muitas das vezes, isso é muito difícil, né? Já que vários fatores envolvem, como o psicológico, a inibição, às vezes traumas que o próprio indivíduo traz da falha do ato de escrever, né? E conceitos que ele já traz também desde que ele se entende como aluno, né? Por exemplo: a literatura é dificílima, é difícil fazer literatura, então eu acho que, em primeiro lugar, seria nesse sentido… trazer o indivíduo para esse mundo maravilhoso que é a literatura e que infelizmente muitas pessoas não dão valor…’ (L).

Os depoimentos acima transcritos são parte das entrevistas feitas em escolas de ensino médio para o projeto de pesquisa mencionado, ainda em andamento. Ilustram a questão fundamental que este artigo pretendeu levantar: o que está sendo feito com a leitura/ literatura na escola? A pergunta se desdobra em outras: que contribuição para a cidadania, para a educação de sujeitos sociais está sendo dada pela educação literária que temos, na prática escolar cotidiana? O que é literatura para cada um de nós, e qual seu papel dentro de um projeto de educação voltado para a construção de melhores futuros para todos?

notas:

 

  1. Educação Literária como Metáfora Social, Niterói: Editora da UFF, previsto para 2000 (desde 1998).(volta ao topo)
  2.  Essa foi uma das primeiras tarefas impostas a uma turma de 1º ano de ensino médio na Inglaterra: ‘escreva um ensaio sobre a ironia em Hamlet’. O problema não está na leitura de William Shakespeare, mas sim na arbitrariedade de uma tarefa complexa imposta sem discussão, troca de informações, construção de conhecimento, especialmente crucial numa escola londrina freqüentada por uma maioria de filhos de migrantes. Essa questão é analisada com maior profundidade no livro citado.(volta ao topo)
  3. Ver Educação Literária como Metáfora Social. Niterói: EdUFF (no prelo).E também ‘Mulheres na literatura: a invisibilidade oficial’,Leitura: Teoria e Prática, nº 33, 1999. Campinas: ALB/Mercado Aberto.
  4. Represento a transdisciplinaridade da educação literária como uma figura geométrica, um triângulo em movimento, assentado sobre a área de estudos mais valorizada em dada sociedade — uma metáfora social. Ver Educação Literária como Metáfora Social, EdUFF (2000).
  5. Há algumas contradições paralisadoras nos mecanismos oficiais de gerenciamento do magistério público. Prega-se a necessidade de aperfeiçoamento e especialização dos professores através de estudos pós-graduados, com produção científica e titulação; entretanto, sabemos que quanto maior a qualificação, mais apurado o foco de interesse de seu trabalho. Outro problema está na baixa remuneração do magistério que, forçando os professores a uma carga horária excessiva, limita sua dedicação aos próprios estudos, à pesquisa e à preparação das aulas. Dessa forma, compromete-se irremediavelmente a construção de conhecimento através do exercício consistente da reflexão sobre a própria ação.
  6. Essa questão é tratada de forma mais detalhada em Língua e Literatura: uma questão de Educação? (Campinas: Editora Papirus, no prelo).
  7. A esse respeito, sugiro a leitura de ‘Está o professorado perdendo o controle de suas qualificações e do currículo?’, de Michael Apple e K. Teitelbaun, Teoria e Educação, nº 4, 1991, Porto Alegre: Pannonica
  8. Um relato sistemático de observação de aulas em escolas públicas de ensino médio pode ser encontrado em Língua e Literatura: uma questão de Educação? Campinas: Papirus (a sair em 2000)
  9. Robert Hodge e Gunther Kress (1991) Social Semiotiocs, New York: Polity Press. O poder hegemônico só se instaura em combinação com a ‘solidariedade’, ou seja, a conivência mais ou menos consciente dos dominados, que se revela através de diferentes formas discursivas. A cadeia de complexos ideológicos, de ‘poderes e solidariedades’, perpetua as desigualdades.
  10. As entrevistas transcritas neste texto integram o projeto ‘A invisibilidade da mulher negra brasileira na educação literária’, com apoio do PIBIC-CNPq, sob minha coordenação, desenvolvido na Faculdade de Educação da UFF. Com a colaboração de Andréa Hoffmann (licencianda em Letras — UFF e ex-bolsista do PIBIC), Wandercy de Carvalho (licenciando em Letras — UFF e bolsista do PIBIC), e Claudia Lage (professora substituta da UFF).

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

Hodge, Robert; Kress, Hodge (1991). Social Semiotiocs. New York: Polity Press.

Leahy-Dios, Cyana (2001). Língua e Literatura: uma questão de Educação? (colaboração de Claudia Lage). Campinas: Papirus.

Apple, Michael; Teitelbaun, T. (1991). “Está o professorado perdendo o controle de suas qualificações e do currículo?”,Teoria e Educação, nº 4, Porto Alegre, Pannonica.

Leahy-Dios, Cyana (2000). Educação Literária como Metáfora Social. Niterói: EdUFF

Leahy-Dios, Cyana (1999). “Mulheres na literatura: a invisibilidade oficial”, Leitura: Teoria e Prática, nº 33. Campinas: ALB/Mercado Aberto.

Benjamin, Walter (1986). Obras Escolhidas I. São Paulo: Ed. Brasiliense.

Barthes, Roland (1981). Aula. São Paulo: Cultrix.