Adalberto Rafael Guimarães
Universidade de São Paulo
Maria Augusta Bernardes Fonseca
Universidade de São Paulo
Resumo: Neste estudo, pretende-se analisar, nas peças Auto da barca de Camiri (1968) e O Verdugo (1969), os pontos que vinculam o teatro de Hilda Hilst à tradição literária brasileira e verificar de que forma a construção de personagens femininas desloca-se na direção de um novo ideal de dramaturgia que rompe com os padrões convencionais do teatro brasileiro do século XX. Nesse sentido, discutiremos de que maneira as personagens femininas criadas por Hilda Hilst representam exemplos de “indecidibilidade”, segundo os conceitos propostos por Jacques Derrida, ao subverterem a noção de poder falogocêntrico, agindo como instrumento ferrenho de denúncia social e política.
Palavras-chave: Hilda Hilst; Teatro; Feminino; Desconstrução.
Abstract: This study aims to analyze the plays Auto da Barca Camiri (1968) and O Verdugo (1969), by Hilda Hilst and examine their link with the Brazilian literary tradition. It also aims to verify how the building of female characters approach a new ideal of dramaturgy which disrupts the conventional patters of 20th Century Brazilian theatre. Therefore, it will discuss how the female characters created by Hilda Hilst represent examples of “undecidability”, according to Jacques Derrida’s concepts, when Hilst subverts the notion of phallogocentric power, which act as a staunch instrument of social and political denunciation.
Keywords: Hilda Hilst; Theater; Female; Deconstruction.
Adalberto Rafael Guimarães – Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo; Mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros (2013) e graduado em Letras Português pela Universidade Estadual de Montes Claros (2011). Membro da Comissão Editorial da Revista Magma, periódico da Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura comparada da USP.
Maria Augusta Bernardes Fonseca – Possui graduação em Letras Português e Inglês pela Universidade Mackenzie (1966); Mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo (1977); Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1985). É professor livre-docente em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (2006), e professor adjunto em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina.
SUBVERSÃO E RUPTURA FEMININA EM AUTO DA BARCA DE CAMIRI E O VERDUGO, DE HILDA HILST
Adalberto Rafael Guimarães
Universidade de São Paulo
Maria Augusta Bernardes Fonseca
Universidade de São Paulo
O meu teatro é como a CASA dentro de cada um de nós.
CASA que não existe para morar, mas para ser pensada.
Hilda Hilst
O superficialismo flagrante em considerável parcela das análises literárias produzidas, atualmente, nas academias brasileiras de letras, articula-se diretamente, aos rumos trilhados pela crítica literária na contemporaneidade. A repetição de assertivas induz, comumente, à associação estrita de importantes escritores brasileiros aos gêneros textuais específicos em que teriam se consagrado, relegando a parcela restante de suas obras à obscuridade. Hilda Hilst não foge à infâmia desta regra, apesar de figurar de modo inusitado neste panorama pintado sutilmente. Reconhecida, principalmente, em virtude de sua poesia sensorial, agonizante e catártica, bem como por sua prosa inovadora, caracterizada pela mescla de gêneros literários, sua produção dramatúrgica encontra-se quase que imersa em águas de descaso e esquecimento. Hilda Hilst não foi somente romancista, por um lado, e poeta, por outro. Ela foi tudo isso ao mesmo tempo e, frequentemente, no mesmo livro, uma vez que sua dramaturgia se apresenta carregada de poeticidade e seus romances e poesias trazem, em evidência, fortes tendências do gênero dramático.
Em certa medida, este silêncio pelo qual o teatro de Hilda encontra-se rodeado talvez derive de sua afinidade com a teoria da desconstrução de Jacques Derrida, uma vez que, se pensadas dentro da linha do teórico, as peças de Hilda Hilst retiram de nossos pés, leitores e espectadores, as bases sólidas sobre as quais a tradição teria construído as noções de verdadeiro ou falso, opondo questões como a da forma e conteúdo. O teatro de Hilda Hilst, diferentemente de grande parte do teatro contemporâneo, não procura criar fundamentos pragmáticos que se configurem como ponto de partida para o leitor/espectador, e opta por deslocar seu ideal de escrita e encenação para uma zona de “indecidibilidade” que exige de quem se aceite a desvendá-lo a consciência de sua instabilidade e incerteza. Bem como a lógica do pensamento dos pensamentos que tremem de Derrida, o teatro de Hilda Hilst pode, em certo grau, ser encarado como uma espécie de terreno movediço em contraponto à fixidez e estabilidade de dramaturgia tradicional.
O conceito de “indecidibilidade” de Jacques Derrida, apesar de ter se originado a partir de da ciência matemática de Kurt Gödel e de seus teoremas da incompletude, é abrangente e pode ser articulado a diversas séries de signos que porventura admitam jogos de contradição e não-contradição, uma vez que a especificidade de seus conceitos repousa, justamente, na premissa de que as ideias não poder ser nem comprovadas nem refutadas, ao mesmo tempo. Na esteira de pensamento de Rodrigues (2008, p. 76), o pensamento de Derrida lança-nos em um jogo entre o que não é nem falso nem verdadeiro, uma vez que o filósofo procura nos deslocar não para um novo lugar, novamente determinando as coisas. Ao invés de nos deslocar, por exemplo, para o cinza, ele nos lança entre os inúmeros matizes existentes entre o preto e o branco. Essas assertivas a respeito do pensamento de Derrida são pertinentes, em nossa discussão pois, ao se analisar o teatro hilstiniano, o que se verifica é a elaboração de um jogo que oscila entre o retorno à tradição, nos mesmos instantes em que a escritura rompe com o convencional, colocando-nos neste entre lugar situado entre o teatro tradicional e o moderno que destrói as algemas dos parâmetros estéticos. Recordando a obra A Escritura e a Diferença, na qual Derrida discute a possibilidade de uma estrutura acêntrica do discurso, percebe-se que o lugar em que o sentido do teatro de Hilda encontra sua efetivação é, justamente, no entremeio: o espaço existente entre as oscilações entre lugar e o não-lugar. Talvez por isso o texto teatral de Hilst poucas vezes tenha sido adaptado para os grandes palcos, sob alegação crítica de que as oscilações entre possibilidade e impossibilidade tornariam sua execução e funcionamento algo incerto.
Na primeira peça em destaque neste estudo, Auto da Barca de Camiri (1968), criação que desde o título alude claramente à tradição teatral dos autos de Gil Vicente, não se encontram referências pormenorizadas de quaisquer aspectos extrínsecos ao texto, constando somente uma rubrica nomeada de “Cenário”, e todo o drama se desenrola em um único ato e ambiente. Hilda Hilst desloca sua escrita da já convencionalizada e o que se sobressai, logo de início, é a presença marcante da adjetivação que intensifica a subjetividade e corrobora a crítica da desigualdade social, que se desenvolverá durante a ação. Hilst chega mesmo a lançar mão da “Nota: Diferença acentuada entre as duas portas. Uma, singela. Outra (a dos juízes) rebuscada, grotesca. (HILST, 2008, p. 185), reforçando a ideia de contraste entre as classes ali envolvidas. O Verdugo (1969), por sua vez, abre-se pondo em destaque o cuidado com as personagens que devem deixar transparecer, primordialmente, suas idades. Preocupações com as características físicas das personagens recorrentes nos textos da época, são excluídas e, em seu lugar, Hilda promove um deslocamento para o interior das personagens logo nas rubricas do texto. Hilda Hilst rompe ao subtrair tais elementos técnicos, caros à execução da peça em um palco, e em seu lugar destacar o moderno, por exemplo, sugerindo a utilização de recursos modernos como slides e linguagem coloquial.
Hipoteticamente, é como se a preocupação estivesse menos pautada na forma como sua mensagem será dita, do que no que está sendo dito. Hilda Hilst quer se fazer ouvida e não importam características detalhadas das personagens ou como suas peças serão adaptadas na realidade em cima de um palco. O que parece ter maior relevância é a mensagem que suas peças constroem, principalmente quando lidas em conjunto. Talvez por isso seu teatro seja repleto de personagens coletivas e haja um deslocamento na escrita de elementos técnicos como cenografia, iluminação ou sonorização. De imediato, a presença de personagens que figuram em mais de um texto faz-se recorrente nas peças destacadas neste estudo. Em Auto da Barca de Camiri e O Verdugo, não somente há a presença de duas personagens representantes do poder identificadas somente pelos epítetos “Velho” e “Jovem”, como também se verifica a repetição da personagem intitulada “Homem”, que em ambas representa a razão condutora de todos os conflitos.
Nas cenas iniciais de Auto da Barca de Camiri e O Verdugo, o que parece haver é uma ruptura com o que Roland Barthes, em Sade, Fourier, Loiola, indica como operações necessárias para a construção de um texto literário: o corte, o isolamento, a articulação e a ordenação. Ambos os textos se abrem com diálogos que revelam inferências de cunho social e político evidenciam o caráter de denúncia e crítica característico do teatro de Hilda Hilst, como se fossemos jogados dentro de uma ação em movimento. Por meio de um trapezista e de uma mulher, figuras emblemáticas dentro do panorama social, a autora alerta para a constatação de que nosso tempo é de desamor e lamento, no qual quem faz as leis são os “sujos”. Vale lembrar que se recorrermos à discussão sobre os fundamentos de questões como a do poder e da lei, elaboradas pelo filósofo francês Michel Focault, em sua História da Sexualidade I, perceber-se-á que a crítica de Hilda Hilst repousa não na complexa rede de estratégias em que esses mecanismos se originam, mas na ação de suas formas terminais: como a soberania do Estado e a maneira como seus representantes a reproduzem. Para Foucault, a temática do poder não se encontra em um local específico, como a personagem do teatro de Hilda parece supor, uma vez que ela circula pela sociedade. Sendo assim, ao considerar a crítica elaborada por Hilda é preciso compreender que todas as práticas sociais são marcadas por relações de poder e não somente aquelas que pertencem aos juízes, na peça.
Auto da Barca de Camiri e O Verdugo partilham de um mesmo fio condutor: a morte do guerrilheiro Che Guevara, retomada em situações análogas. O acontecimento histórico evidencia-se desde o título da primeira peça, que destaca a região boliviana de Camiri, na qual foi assassinado, e a habilidade de Hilda Hilst com a trama entremostra-se mesmo na maneira estratégica com que a autora joga com a ambiguidade do termo “auto”. Seja de ordem processual ou sacramental, verifica-se que esse auto que condena Che Guevara instaura, ao mesmo tempo, sua existência sagrada afirmada na escrita que, insistentemente, assimila Ernesto Rafael Guevara de la Serna à figura de Jesus Cristo. Vale ressaltar que, como o faz Alcir Pécora (2008), organizador da edição do Teatro Completo, o nome de Che Guevara não é mencionado em nenhuma passagem, o que certamente tem a ver não só com a censura da época, mas também com a intenção de extrair do acontecimento, a imagem ideal de homem-cordeiro imolado para a salvação da humanidade.
Em Auto da Barca de Camiri e O Verdugo, a autora critica a corrupção de um sistema que ao invés de legislar e advogar em favor da justiça, faz uso do que bem lhe entende para fazer cumprir suas demandas, como invadir casas de famílias e oferecer suborno em praça pública. Em O Verdugo, os juízes tentam de todas as formas atribuir a culpa de vários assassinatos a Che Guevara que, pelo discurso inflamado teria enlouquecido a todos, para assim obrigar o verdugo a cumprir a ordem de executar o condenado; enquanto em Auto da Barca de Camiri percebe-se a tentativa de apagamento das evidências contidas na memória de cada testemunha interrogada sobre a existência do líder revolucionário. Essas atitudes são elevadas ao ápice da hipocrisia mediante à indiferença dos poderosos que ignoram as incessantes rajadas de metralhadoras que perpassam toda a cena e que, ao final, invadem a corte matando os pobres. A crítica de Hilda às instituições políticas emerge, ainda, por meio das ações dos representantes da Lei que mandam e desmandam conforme suas vontades. Um dos pontos altos da trama é, pois, a passagem em que a lei mostra sua verdadeira face opressora à sociedade, veiculada nas seguintes falas do Juiz Jovem: “Eu posso obrigar o senhor a fazer. Mas não quero”, ou na fala do Juiz Velho que proclama: “Nós somos a lei. Não somos a polícia” (HILST, 2008, p. 393). As falas das personagens denunciam com clareza o que Foucault procura explicitar ao afirmar que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações. Sejam relações econômicas ou sexuais, como manifestadas no texto hilstiniano em destaque, já que matando Che Guevara o verdugo receberá grande quantia de dinheiro e fará possível o casamento de sua filha que o pressiona, essas relações entre dominantes e dominados não servem apenas como simples papel de proibição, pois atuam diretamente com o objetivo de produzir algum resultado.
É importante assinar a habilidade de Hilda Hilst de relacionar, em sua linguagem, questões problemáticas que não se ligam somente ao governo. Na cena inicial de O Verdugo, ambientada no espaço doméstico, uma discussão sobre a “Lei” desperta um debate acirrado de cunho feminista, inflamado pela fúria das personagens “Mãe” e “Filha” que reivindicam sua capacidade de participarem das decisões ligadas aos assuntos políticos. No entanto, é curioso notar que essa atitude feminista no posicionamento das personagens não as acompanha durante toda a ação, pois essas personagens assumem, nos termos de Derrida, um caráter de indecibilidade: em certos momentos predomina a fragilidade e o fetichismo, perpetuados pelo senso comum; em outros, atitudes enérgicas nas quais a consciência e necessidade de mudança se instauram na representação da mulher.
Na peça O Verdugo, o casamento da filha somente acontecerá se o pai aceitar o trabalho “imundo” de enforcar o “Homem”, acusado de a todos incendiar com suas palavras de amor e igualdade. Devido a isso, instaura-se um conflito no íntimo do pai que se vê dividido entre: seguir a vontade da filha que o pressiona visando à realização de seu desejo, e o filho que se coloca em defesa do “Homem”. No instante em que se nota essa delimitação do caráter da mãe e da filha que, de início, encontram-se marcadas pela ganância e ambição por melhorias de vida via casamento, Hilda Hilst rompe com a concepção de feminino frágil e subordinado e reescreve essas personagens como determinadas a alcançarem suas metas. Vale citar o episódio em que, à certa altura, a mulher-verdugo indaga a existência de Deus e a ironiza por não haver intercedido na salvação de duas crianças assassinadas brutalmente nas proximidades da residência. A meticulosidade do raciocínio da mulher, que deseja apossar-se do dinheiro que o marido receberá, dirige-se, por fim, para a tentativa de convencer o esposo de que a resistência dos moradores da região à sentença de morte do “Homem” trata-se de mera manifestação de afronta e resistência ao poder e, não, amostra de amor ao próximo. Neste sentido, Hilda Hilst parece ilustrar, em seu teatro, o que a postulação foucaultiana sobre resistência e poder defende. Para Foucault (2005), a resistência não se caracteriza como um subproduto das relações de poder, pois ela não é nem anterior ao poder nem mesmo secundária a ele, pois se assim o fosse não haveria resistência. Para o autor, é necessário que a resistência seja como o poder. Isto é, tão inventiva, móvel e produtiva quanto ele.
Ser produzida e reprimida pelos sistemas jurídicos e, ainda assim, lutar pela emancipação de sua categoria valendo-se dessas mesmas formas de poder é a forma como se pode visualizar a questão feminina a partir da genealogia elaborada por Judith Butler (2003), em seu Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. A partir de relação com a teoria foucaultiana que também visa à elaboração de genealogia da sexualidade, entrevê-se a sugestão do processo de produção de sujeitos fadados a representar os próprios sistemas jurídicos que as criaram. Butler (2003), dessa forma, evidencia a perpetuação negativa envolvida na maneira com que o “poder” forma, define e reproduz a vida dos indivíduos por meio de suas limitações, proibições, regras e, até mesmo, sob a alegação de proteção. Ao colocar em evidência a questão do sujeito feminino, é necessário que se perceba ao longo de nossa literatura e história sua incessante procura pela legitimação de uma linguagem capaz de representá-las e promovê-las à visibilidade política. Além do mais, é preciso, também, permanecer-se alerta para as ambiguidades de uma lei que produz e oculta categorias, como é o caso da mulher, de acordo com suas exigências, na tentativa de excluir a diversidade e, assim, forjar a ideia da existência de um sujeito feminino estável, a errônea noção singular de identidade. Pois, como discute Butler (2003), o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos e variáveis como modalidades racial, classista, étnica, sexual e religiosa quase sempre foram separadas propiciando a descontextualização da especificidade do feminino.
É justamente com a noção reducionista da contraposição masculino/feminino, construída pelos sistemas de poder, que o teatro de Hilda Hilst procura romper. O patriarcado universal, crença numa hegemonia masculina, em O Verdugo, inverte-se e desloca-se para as mãos da figura feminina que se apropria dos elementos que representam a força masculina para executar o que parece impossível para seu par. O texto hilstiniano corrobora, neste sentido, para o que o texto de Judith Butler (2003) parece apontar como a urgente necessidade para as teorias feministas: a construção da categoria de “mulheres” não mais como sujeito coerente e estável a partir desses elementos que apenas reificam questões de gênero e identidade.
O que se apreende no texto literário de Hilda Hilst é a própria desestabilização da ideia universal de sexo binário macho/fêmea uma vez que nele o próprio gênero se torna um “artifício flutuante” com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, bem como o inverso, valendo-nos da expressão de Butler (2003). Ao constatar a circularidade existente nos estudos a respeito do gênero feminino, a pesquisadora nos oferece um panorama relevante sobre teóricas feministas que assumiram discordantes posições frente a esse debate, na genealogia histórica. Beauvoir, por exemplo, para quem o feminino institui-se como representação do Outro, já que o masculino primordialmente estaria ligado à noção de universalidade do gênero, problematiza ao tomar como ponto de partida a concepção de que a mulher repousaria no estigma de ser uma corporalidade renegada, projetada pelo sujeito abstrato da pessoa masculina.
No texto hilstiniano, a imagem da mulher em determinados momentos pode ser analisada sob a ótica da negação discutida por Beauvoir. Há momentos em que as personagens masculinas, como na peça O Verdugo, negam o potencial feminino. Apesar de incansavelmente procurar afirmar sua força e seu valor, a figura da mulher, no teatro de Hilda Hilst, sofre com a resistência masculina. Na peça em questão, temendo que o marido não cumpra as tarefas que garantirão melhorias nas condições miseráveis em que a família vive, a mulher assume uma posição de poder e declara aos juízes que ela mesma matará o condenado, no lugar do seu marido. Diante dessa surpreendente atitude, os representantes da lei imediatamente negam a mulher sua capacidade para realizar a façanha. Essa negação, no entanto, que inicialmente pode ser percebida na atitude dos homens que desacreditam na força da mulher e que de todas as maneiras tentam evitar a aceitação, termina, por fim, no consentimento mediante à incapacidade do masculino de concluir sua tarefa. Aceitação, esta, que marca a subversão do estigma de fragilidade e inferioridade da mulher que então passa a assumir um novo lugar dentro da escala de poder. Dessa forma, o corpo da mulher transforma-se no instrumento de libertação, conforme preconizado por Beauvoir, e deixa de ser apenas uma instância definidora e deformadora como é visto por correntes que atribuem ao masculino a concepção de Uno.
O corpo feminino, concebido como marcado perante o não-marcado masculino, passa a pelo processo de deslocamento em relação ao modelo falocêntrico e a ideia de Uno, atribuída sempre ao homem, no instante em que a personagem se apropria das vestes de seu marido e socialmente escancara sua não-diferencialidade, aparecerendo publicamente para executar o condenado com suas próprias mãos. Nota-se que o falocentrismo que, de acordo com Butler (2003), eclipsa o feminino passa em certo grau é subvertido no teatro de Hilda Hilst que des-cobre o lugar daquelas que representam o gênero indecidível para Jacques Derrida.
É importante ressaltar, no entanto, que quando se menciona o pensamento da desconstrução, a concepção de “falta” não surge imbuído de valor pejorativo. Diferentemente das teóricas feministas que associam esse “não ser algo” a uma apologia do falocentrismo, Derrida concebe a mulher como aquela que na condição de não-verdade carrega consigo a possibilidade de significação. De fato, a indecidibilidade que permeia o feminino significa a possibilidade de a mulher ser a verdade levando-se em conta que seu pensamento repousa na contradição de a não-verdade ser a verdade. Essa associação entre mulher e não-verdade de Derrida remonta à discussão sobre a oposição binária entre macho-fêmea. Em seu teatro, Hilda Hilst nos revela imagens de personagens femininas que indecidivelmente transitam entre feminilidade e masculinidade. Personagens que ao mesmo tempo apoderaram-se do logos falocêntrico e por outro lado situam-se no lugar de seres dominados e discriminados por uma estrutura representada pela Lei, que as subestima e insiste em enxergá-las a partir do senso comum.
A representação da mulher em O Verdugo de Hilda Hilst, bem como o pensamento de Derrida corroboram com a ideia de uma não instituição de lugares fixos de encarceramento da mulher. Logo, o que aparenta permear a escrita hilstiniana assim como a de Jacques Derrida, quando trazem à tona a questão feminina, parece não ser apenas a intenção de promover uma simples inversão de lugares. Não há fixação nem de identidades nem de lugares exatos em que as mulheres devam figurar, mas deslocamentos que consistem no reconhecimento do valor daquelas que historicamente estiveram rebaixadas. Parafraseando Rodrigues (2008), é como se em seus textos, Hilst e Derrida preferissem pensar a mulher a partir da marca do indecidível: nem feminista nem antifeminista. Ambos procuram situá-las em um novo âmbito que não o do mero verdadeiro/falso, numa tentativa de desorganizar essas oposições binárias cristalizadas, sem chegar a instituir uma solução. Buscam mostrar a mulher que não é nem um ser terrível e incomunicável como Deus, possuidora de divindade que reflete nela todas as graças da natureza e encanta a todos os homens, como Baudelaire a escreve, nem a militante que se propõe a buscar um lugar no alto da hierarquia social deixando o lugar de submissão na sedenta luta por sua instalação no lugar do poder falocêntrico.
É importante deixar claro que o esgotamento de discussões como esta, que elegem como foco de análise questões extensas como as inovações e deslocamentos na escrita de Hilda Hilst e a questão do feminino em sua literatura, é praticamente impossível. Nosso objetivo principal, neste breve ensaio, era o de verificar de que forma a autora desloca sua escrita carregando sua dramaticidade afastando-se e recorrendo a novos ideais poéticos ao mesmo tempo em que constrói personagens femininas diferentes das usualmente vistas em nossa literatura. Se em Gil Vicente, cuja maioria da obra compõe-se de autos, é pelo riso que se corrigem os costumes, Hilda Hilst surge no panorama da literatura dramatúrgica perturbando completamente a ideia do riso estampado na face da lei. Nas peças destacadas, personagens como o Trapezista, o Passarinheiro, o Verdugo e o “Homem” assassinados de forma cruel tornam-se ecos de uma voz autoral que pretende impedir o projeto opressor que a lei revela: “dar ao povo o que ele merece (…) resguardá-lo de toda e qualquer visão” (HILST, 2008, p. 226). Teatro de resistência, do silêncio ou político, independente das classificações que a ele sejam atribuídas, o que se assiste é a tentativa incessante de se pensar de outra maneira não só a questão da mulher, mas de alertar para a cegueira moral e “desmoitar” os coiotes adormecidos; para tanto, é que a voz de Hilda Hilst assume ares perseverantes de ruídos de metralhadora.
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