Sonetos


Autor: Cláudio Manuel da Costa
Título: Sonetos
Idiomas: port
Tradutor:
Data: 06/06/2005

POEMAS DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA

 

Sonetos

 

Cláudio Manuel da Costa

 

I

Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apoio a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino: [1]

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.

II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio: [2]

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planêta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

III

Pastôres, que levais aa monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a tôda a terra,
Basta ver-se o meu rosto magoado:

Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastôra infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:

Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastôres, o que eu choro.

IV

Sou pastor; não te nego; os meus montados
São êsses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer dêles o seu estrago sente; [3]
Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno; [4]

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões dêsse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

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Fonte: COSTA, Cláudio Manuel da. Poemas de Cláudio Manuel da Costa. Introdução, seleção e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1966. p. 33 – 37.

 


[1] Pode ser assim entendido o terceto: “Bem sei que o Destino influiu estro divino na lira de outros gênios, para cingir (em) a verde rama de Apolo”, a saber, o louro.
[2] O verso vale o seguinte: “o esquecimento frio, que é como o sono vil”.
[3] Referência a metamorfoses antigas, como a de Filemão e Báucis em carvalho e tília; ou trata-se do velho topos, segundo o qual os corpos sepultados se transformam em árvores? Estrago: ruína, infortúnio, perdição.
[4] Verão: primavera.