ROMANCE NO FEMININO: TRACY CHEVALIER DIALOGANDO COM JOHANNES VERMEER – Cristina Susigan


Cristina Susigan

UPM – SP

 
 
Resumo: Este artigo tem o intuito de refletir sobre a escrita no feminino e neste caso como a autora empodera a sua personagem, também uma figura feminina dando voz num período, a Holanda do século XVII, onde a muher era invisível. Através do romance de Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, pretendemos fazer  uma reflexão de alguns dos elementos que constituem o chamado “romance de formação” (Bildungsroman) feminino, uma vez que assistimos à evolução da personagem principal e narradora da história, à perda gradual da sua inocência, à conquista da liberdade e ao seu crescimento extraordinariamente rápido, feito de várias rupturas afetivas, mas também da concretização de alguns sonhos impossíveis e o olhar feminino que desconstroi a mulher como objeto da narrativa.
 
Palavras-chave: Tracy Chevalier, feminino, romance de formação, mulher-sujeito.
 
Abstract: This paper is intented to reflect about writing in the feminine and in this case as the author powers your character, also a voicing female figure in a period, the Dutch seventeenth century, when the women was invisible. Through the novel by Tracy Chevalier, Girl with a Pearl Earring, intend to reflect some of the elements that constitute the so-called “novel of formation ” (Bildungsroman) female, since witnessing the evolution of the main character and narrator of the story, the gradual loss of innocence, the conquest of freedom and its extraordinarily rapid growth , made several emotional ruptures, but also of achieving some impossible dreams and the feminine look that deconstructs the woman as the narrative object.
 
Keywords: Tracy Chevalier, female, novel of formation, woman-subject.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ROMANCE NO FEMININO: TRACY CHEVALIER DIALOGANDO COM JOHANNES VERMEER
 
Cristina Susigan
UPM – SP
 
 
Introdução
O romance de Tracy Chevalier pretende traduzir em palavras o mundo pictórico de Vermeer, através de descrições de forte sugestão visual e simbólica, ao descortinar as preferências do autor e tentar perceber o fio condutor da sua produção artística. Chevalier soube captar/capturar de um modo raro e preciso o universo intimista de Vermeer. Ao desfiar-lhe as múltiplas cores, cambiantes, tons, tintas lavadas e coadas de que o livro é feito, na habilidosa mistura com a escrita. Abordagem das emoções continuadamente prometidas e sempre adiadas, da entrega a uma sensualidade permanentemente suspensa mais tátil. Mostrando-se e recusando-se, jogando com as palavras e com as imagens, que se enovelam e acrescentam.
Ainda que de maneira superficial não podemos deixar de referir o fato de que seja uma mulher a autora do relato, com o qual estaríamos, por assim descrevê-lo de um modo um tanto simbólico, ante a transmissão de uma história através do prisma da mulher. Uma história, não esqueçamos, que tem seu ponto de partida no olhar  masculino, o de Vermeer. Mas não é nossa intenção detalhar aqui um compêndio de características do relato feminino em contraposição ao relato masculino, nem tampouco meditar sobre como seria o resultado tratando-se de um autor homem. Seja como for, pensamos que no olhar feminino há uma maior tendência ao intimisno, ao deter-se em análises psicológicas que tratam de dar resposta ao porque de determinadas ações, e isto só resolve-se, por mais paradoxo que pareça, de forma intuitiva, em estreita dependência de sensações mais que de argumentos racionais.
 
O livro contém todos os elementos de um romance histórico, possibilitando uma revisitação de um período de tempo particularmente ativo na vida do pintor Vermeer, na segunda metade do século XVII. A autora constroí uma narrativa linear, com as mesmas personagens do começo ao fim. Produz um romance no sentido tradicional, em que um único enredo conduz toda a trama. A originalidade do livro prende-se com a circunstância de o ponto de vista adotado ser de uma criada. A escritora expõe os recônditos sentimentos de uma moça na Delft do século XVII, chamada Griet, suposta criada, que mais tarde também é elevada à categoria de assistente e musa/modelo do pintor, que observa e descreve o trabalho do mestre ao mesmo tempo que partilha com o leitor uma etapa crucial do seu crescimento e da sua formação.
Vermeer pintou a mulher de notório silêncio, com os olhos voltados para baixo. Michelle Perrot (2005) observa que esse silêncio comum das mulheres, essa ausência de fala consistia em disciplina das famílias, dos corpos e da sociedade. De fato, no século XVII as mulheres holandesas eram submissas ao pai e posteriormente ao marido, sempre absorvidas pelos trabalhos domésticos, com o cuidado e educação dos filhos, portanto, o silêncio das mulheres de Vermeer não consistia apenas na ausência de fala, mas também de expressões, gestos, uma vez que a postura dessas figuras femininas era de escuta, espera, sem queixas, sem confidências. Chevalier em seu romance, transfere o poder para uma criada, na escala da sociedade, a mais silenciosa e invisível, empoderando-a.
Feito de transparências e de misteriosas obscuridades, de pequeníssimos detalhes e luminosidades súbitas. Um romance de cores e odores, textura onde subitamente se abrem rasgões de claridade, que logo se tolda e adensa. Um texto banhado por uma velada luz intimista, que, vinda dos interiores da casa que descreve e onde as personagens vivem, se escapa, indo-se recolher no atelier de Vermeer, que a toma e trabalha até a fazer parte visceral da sua pintura. Onde, ora se mostra resplandecente: em vermelho laca e amarelos ocres. Ora se mergulha a si própria na sombra: num branco de chumbo tingido de negro de ossos, num indizível verde seco, ou cinzento. História onde está abolida qualquer esperança para a criatividade feminina, que vemos anular-se a cada passo. Texto comovente na sua entrega à inocência, de que invoca a queda e por fim a perda. Enquanto nos dá a ver da genialidade artística, a solidão absoluta.
 
Se Vermeer colocava todo o seu interesse no real, na mulher escrevendo uma carta, vertendo leite ou pesando pérolas, Chevalier esforça-se em fornecer um retrato, realista das relações entre a incipiente burguesia e o mundo dos trabalhadores. A ação pertence a Griet, assim como a voz narradora da história. É a Moça com Brinco de Pérola – único dos quadros de Vermeer a explorar alguma dose de sensual e enigmático erotismo – que se movimenta.
 

  1. Bildungsroman: a mulher como protagonista

Outra questão teórica, particularmente relevante para a análise de Moça com Brinco de Pérola, é da metaficção historiográfica, termo cunhado por Linda Hutcheon em A poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção, e retomado em The Politics of Postmodernism, livros nos quais a crítica canadense argumenta que história e ficção são construtores discursivos, representações narrativas, ambas com seus poderes e limitações. Para Hutcheon, “A história, como relato narrativo, é inevitavelmente figurativa, alegórica, fictícia; ela é smpre já textualizada, sempre já interpretada” (1990, p.143) outro importante conceito de Hutcheon é do papel exercido pelo personagem marginal ou marginalizado, silencioso e silenciado, membro de qualquer uma das diversas minorias, habitante das margens da cultura dominante, personagem ao qual ela dá o nome de “ex-centric”. Hutcheon mostra como a literatura pós-moderna tem trazido para o centro narrativo esse personagem marginalizado, dando-lhe uma voz própria e um posição de sujeito de sua própria história (1990, p. 60-62).
Esses conceitos teóricos nos são extremamente úteis no exame de Moça com Brinco de Pérola. Nesse romance, Chevalier, usando tanto do seu conhecimento das obras e da vida de Vermeer como das fontes históricas sobre a Holanda do século XVII; utilizando uma sensibilidade refinada em relação ao mundo e à arte da pintura; e mostrando uma especial empatia com a busca da identidade e o desenvolvimento de uma subjetividade feminina, produz uma obra maravilhosa e precisamente evocativa do passado mas, também e principalmente, de forte e poética atualidade.
A existência real de documentos históricos e sua simultânea sujeição a regimes de signos cambiantes reúne-se, em aliança, com a brutalidade do real só apreensível por meio de textualização, ou, de sistemas significantes, na visão pós-estruturalista com a qual nos afinamos para construir nosso olhar sobre os objetos artísticos.
Na linha de abordagem pós-moderna tal como defendida por Linda Hutcheon, o que importa é perguntar como podemos nos relacionar com o que se deu no passado. Segundo Hutcheon, em A poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção, especialmente em “Historicizando o pós-moderno: a problematização da história” (1990, p. 120-40): “Quanto a disciplinas dedicadas a outros objetos, estamos nos referindo às neurociências cognitivas, tratadas em outros capítulos, e mencionamos apenas para marcar que o tema não se resume ao passado e à presença diante de um objeto ou acontecimento”. Em relação ao passado, vai se desenvolver a questão de como formular a relação entre a reconstrução histórica (construção de fatos históricos) e a reconstrução literária (de ficções artísticas) dos acontecimentos, objetos, documentos e relíquias, colocando em jogo a noção de verdade. É justamente da colocação em jogo, ou dinamização, ou ainda diálogo, e não do cancelamento desta, e de outras noções tradicionais, que trata nossa construção de objeto.
Na linha de discussão desenvolvida por Hutcheon, o que importa é a revisão problematizante da relação que queiramos estabelecer com a referência e não a eliminação desta noção. Uma negação do acesso ao referente não implica a negação da sua existência empírica, apenas sua inapreensibilidade. Um vasto material teórico é colocado em discussão, resgatando a historicidade dos argumentos que, em um momento, reuniram e, depois, apartaram a escrita histórica da escrita literária. Dentre eles, encontra-se uma figura da linguagem, a ekphrasis (representações de representações visuais)” – e considerá-la como: descrições verbais de imagens visuais capazes de gerar efeito de vida (HUTCHEON, 1990, p. 158-160).
Hutcheon se dedica especialmente a um tipo de romance que define como metaficção historiográfica, no qual Moça com Brinco de Pérola não se inclui, em termos narrativos, uma vez que não interrompe o fluxo ilusionista para denunciar seu artifício, mas sim em termos da intertextualidade entre arte e historiografia a partir da qual, e pela maneira pela qual, a narrativa se constrói, sob o ponto de vista da noção pós-estruturalista de discurso.
 
O romance de Chevalier, nasce como intertexto pela apropriação que faz da pintura já em seu título, na reprodução da imagem na capa, sublinhada pela imagem de outro quadro do pintor (uma vista da cidade de Delft, onde habitava), enquanto embalagem de seu texto, mas também por meio narrativa propriamente dita: se não pela forma, pelos elementos da criação da realidade artística que insere, por meio da linguagem verbal, na tessitura da trama.
No âmbito mesmo da abordagem de Hutcheon, i.e., da poética do pós-moderno, não há mais hierarquia entre textos e para-textos ou contextos: a intertextualidade se dá como deslocamento da ilusão de um referente para a multiplicação ou deslocamento de referencializações. Nesses termos é que defendemos que o objeto artístico não seja visto apenas na forma da narrativa literária ou no aspecto temático mais banal do envolvimento amoroso. A materialidade do romance envolve, em sua temática e em sua trama, elementos técnicos da pintura como: a elaboração das tintas, os nomes, a compra e a manipulação das substâncias dos pigmentos, efeitos de luminosidade sobre a modelo e sobre a base da tinta na tela, mostra a redução em perspectiva por meio de um objeto ótico da época. Isto é parte da trama porque é constitutivo das relações entre as personagens e da intertextualidade ou metamidialidade da narrativa em relação à pintura. Tanto quanto podem ser consideradas as descrições da intervenção do cotidiano sobre a criação artística e vice-versa, quando o pensamento que rege a observação se associa a um regime que rompe as fronteiras entre arte e vida.
Se não há ruptura do ilusionismo realista na tessitura verbal da narrativa, há na narrativização do processo pictórico que descreve a feitura de uma pintura histórica. Ao dar aos dois elementos passíveis de abordagem indicial, em uma leitura iconográfica, o tratamento de objetos casualmente eleitos para resolver um problema de ordem técnica, a narrativa se torna metalingüística em relação à linguagem pictórica da qual extrai sua fonte de inspiração.
A pérola e o pano que envolve a cabeça da moça, reais no objeto histórico (imagem pictórica), são requisitados pela personagem literária do pintor, apenas, para resolver problemas do processo de pintura, ao invés de decorrer da caracterização social da personagem ou do seu possível envolvimento amoroso. Ao contrário, uso do brinco de pérola, que intitula o quadro, só termina por conduzir ao desfecho da narrativa porque o pintor o solicita para equilibrar a composição, com um efeito de luminosidade.
Vermeer literário mostra à moça o efeito da luz sobre o pendente quando usado por sua esposa, causando-lhe estranhamento, gera conflito e exige concessões de outras duas personagens: da moça, porque não tem a orelha perfurada e permitir perfurá-la lhe trará dor física e uma marca que implica problemas sociais, como uma metáfora de desvirginamento; e da sogra, porque deve extrair o brinco da caixa de jóias da filha, que as mantém sob vigilância e já está sendo enganada sobre a convivência entre a moça e o marido.
O torso com véu que envolve a cabeça da moça nasce da necessidade que o pintor sente de ver o rosto encoberto pela touca que ela usa. È um tecido dentre outros materiais que guarda no quarto de despejo e que serve de mediação entre a solicitação dele de ver o rosto para poder pintá-lo e o limite dela, em não poder admitir deixar os cabelos à mostra: outra solicitação do processo de criação artística que proporciona uma cena de intimidade entre pintor e modelo, na transformação da moça em pintura.
A narrativa denuncia a imagem visual da qual constrói a ekphrasis, não como realidade histórica, mas como realidade da criação artística. E este é um procedimento que simultaneamente ilude com seu efeito de real e mostra a desreferencialização de uma imagem artística por meio de um uso metalingüístico da narrativa sobre a criação da imagem pictórica: lugar em que também se situam os procedimentos metaficcionais da poética pós-moderna defendidos por Hutcheon.
Tomando outra categoria festejada pelo pós-moderno – e incorporada pelas artes cênicas contemporâneas, por serem artes do movimento e do efêmero –  para explicitar a riqueza dessa operação, podemos dizer que o romance se desenvolve como ekphrasis, não de uma pintura, mas, do work in progress  de uma pintura, ou como Renato Cohen, no seu Work in Progress na Cena Contemporânea (1998), prefere, por vezes, adaptar a expressão cunhada pela arte contemporânea, substituindo o segundo termo por – process, (processo).
 
A descrição verbal não é do resultado, da imagem pictórica, mas do processo de nascimento, desenvolvimento e finalização de uma obra pictórica, até sua partida para o endereço de seu solicitante: o mecenas. È quando também é bruscamente interrompida a vida da moça na casa do pintor, na condição de objeto artisticamente processável, na condição servil à família, à arte, e ao seu sentimento por seu criador. Na narrativa, assim como a história rejeitou essa personagem em sua inscrição, a vida social a teria rejeitado: objetos rejeitados pelo social também são objetos desejáveis à poética pós-moderna.
Uma pintura, que é um documento histórico anterior ao romance em três séculos, tem, por meio da voz silenciosa da personagem-título, o desenvolvimento de uma narrativa que transcorre de modo absolutamente realista, assim como a narrativa desenvolvida pelo olhar neutro da câmera cinematográfica. Mas uma diferença entre essas duas mídias traz mais um elemento metalingüístico a ser notado no romance.
No momento do desfecho, a esposa em crise, revoltada por ter sido enganada pela mãe e pelo marido, e enciumada, pergunta ao marido porque ele pinta a moça e não ela. Ele diz à esposa que ela não entende, e ela se revolta ainda mais, por isto implicar que a moça entenda e ela não. Para explicitar o absurdo que vê na resposta dele ela diz em relação à moça: “(…) ela não sabe ler!” (CHEVALIER, 2002, p. 182).. E, em um romance em primeira pessoa, podemos dizer que seja uma provocação metaliterária ao realismo que o caracteriza.
Novamente, na interface entre obra e referencialidade, aí está uma disjunção que o texto de Chevalier desafia. Estamos diante de uma forma narrativa escrita do testemunho em primeira pessoa. Mas, de uma personagem analfabeta do século século XVII, e construído por uma escritora americana do século XXI. Embora, como dissemos, a escritora não dissimule sua identidade, o gênero do romance se inscreve no cânone do testemunho, o que propicia à intertextualidade com as questões literárias que se estabelecem em torno dele, e com o que o debate contemporâneo lhe oferece.
É exatamente na problematização constituída entre objeto histórico, vestigial – que afirma que um passado extratextual realmente existiu – somado a uma contextualização histórica compatível – que, no entanto, não afirmam que esse passado extra-textual que existiu seja aquele narrado –, pela textualização literária e fílmica, que se encontra a ruptura pós-moderna, em relação à dicotomização entre a narrativização ficional e aquela historiográfica.
É nesse lugar de fronteiras rasuradas entre literatura e história, de ter acontecido ou não no passado, que Moça com Brinco de Pérola se insere respondendo à pergunta pela apreensão do passado que: seja na literatura, seja na história, embora com comprometimentos distintos, tudo o que temos são reconstruções imaginativas a partir de textualizações de objetos, registros, relíquias ou arquivos do passado.
Uma das estratégias narrativas mais características da literatura pós-moderna é a apropriação, releitura, e re-escritura de textos canônicos da literatura e da arte ocidental. Essa estratégia narrativa é de especial importância para o estabelecimento de uma literatura feminina de sobrevivência, de resistência, de subversão, e de imensa criatividade pois desafia os pressupostos e os vieses de cânones artísticos e literárias, estabelecidos a partir de critérios hegemônicos que privilegiam a cultura dominante, de cunho patriarcal.
A coisa mais impressionante sobre este romance é que ao mesmo tempo que é uma história absorvente, ela também faz uma interseção entre os dois predominantes pilares  da teoria feminista. O discurso da “imagem da mulher”, que é um dos fundamentos básicos dos estudos sobre a mulher como nós conhecemos hoje, aqui se releciona com o tema apresentada da “mulher como artista”. Não é necessariamente curioso, pois estes dois pilares do discurso feminista tratam a mulher como objetos e sujeitos. Precisamente o que Chevalier faz no seu romance é transformar a mulher enquanto objeto em sujeito: “(…) mas ele era meu mestre. E eu tinha que fazer o que ele dizia” (CHEVALIER, 2002, p. 60). Ironicamente é dada a Griet uma identidade através da qual supõe-se um papel ativo no objeto da pintura.
Esta não é a história de uma feminista antes do seu tempo, pois Chevalier segundo o artigo de Cibelli:
 
(…) não tem o caráter de derrubar estereótipos femininos ou transcender sua classe social. Chevalier discute o interesse nascente de Griet na arte sem igualá-la à Vermeer ou de mulheres artistas holandeses como Judith Leyster ou Rachel Ruysch. Ns mãos de Chevalier, Griet é uma persona fictícia dotado de valores protofeministas. (2004, p.589).
 
 
 
Como já foi dito anteriormente, nos últimos anos o trabalho de Vermeer tem sido objeto de mais de um livro. Muitas das pinturas do mestre holandês retratam mulheres nas suas tarefas domésticas. O romance de Chevalier pode não ter sido o único a dar vida a um dos quadros de Vermeer, mas é a mais rica e complexa narrativa do que uma mulher poderia ter sido no seu tempo. Moça com Brinco de Pérola transforma o objeto de uma pintura em mulher humana, que respira, e é esta visão que, ao reimaginar um mundo de igualdade, torna este trabalho primordial.
Em relação às artes visuais a representação não pode ser considerada uma atividade politicamente neutra. A questão da representação se situa entre o feminismo e a arte. Argumenta-se a forma pela qual a repetição inerente às imagens culturais tem a função particularmente ideológica de apresentar e posicionar a subjetividade “feminina” ou “masculina” como estável e fixa.
A decisão de Vermeer de pintar Griet – fazendo dela o objeto da sua pintura – paradoxalmente transforma Griet de um objeto – uma criada – em um sujeito: “Eu vou pintá-la como eu a vi pela primeira vez, Griet. Apenas você” (190). Carregada de simbolismo, pois envolve as rígidas convenções de representação da época, se desenvolve entre Vermeer e Griet: a pose do corpo, o virar do rosto para o pintor, o mostrar da orelha, o entreabrir dos lábios, a retirada da touca e – o pedido final – usar os brincos de pérola.
Através do seu olhar fixo, Griet torna-se mais do que apenas uma jovem criada; ela torna-se conhecida como algo de uma dimensão profunda, imortalizando-se. A criada – uma pessoa silenciosa, que faz o trabalho de forma a ser invisível, para que a casa funcione – aqui torna-se visível. A transformação de Griet de criada em uma jovem mulher faz-se gradualmente. Num primeiro momento ela senta-se (um luxo na sua condição de criada). Depois ele pede que ela tire sua touca e mostre o seu cabelo. Chocada, Griet recusa o pedido de Vermeer e reflete: “… Eu nçao podeira mostrar a ele o meu cabelo. Eu não sou este tipo de garota que deixa seu cabelo solto” (192). A resistência de Griet é uma marca da sua própria subjetividade, a confiança em si mesma é maior, vai além de ser simplesmente um objeto para ser pintado.
 
 
Referências Bibliográficas
CHEVALIER, Tracy. Moça com brinco de pérola. São Paulo: Betrand Brasil, 2002.
CIBELLI, Deborah H. “Girl with a Pearl Earring: Painting, Reality, Fiction.” Journal of Popular Culture 37.4 (2004): 583-592.
 
COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004
 
HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro:Imago Editora, 1990.
 
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Tradução: Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005.