Rimas de Ventos e velas
Com a calma de um mar que guarda palavras sem tempo, tendo completado 80 anos de publicação mundial, a obra da escritora inglesa Virginia Woolf, “To the Lighthouse” ou “Passeio ao Farol”, uma das traduções para o Brasil. Considerado o mais importante romance-poema (uma nova espécie de poema sobre o sentido da vida e das relações humanas) de Virginia na Europa, a trama deste livro é relativamente simples, planeja-se um passeio de barco a um farol próximo; em um dia, mas dez anos depois, o passeio finalmente ocorre. Essa obra que é dividida em três “cenas”: A Janela, O Tempo Passa e O Farol, é uma leitura que proporciona grande concretude visual e clareza, e por ser uma obra livre de erudição e pedantismo, comunica-se com o leitor comum que há em todos nós, artistas ou não, isto é, com o common reader. De tão emaranhado na estruturação, é às vezes comparado com a composição de uma sonata ou é visto como a versão literária do pontilhismo, onde personagens protagonistas e figuras secundárias misturam-se umas as outras, como no processo da atomização. Há ainda em alguns capítulos, variação de luz, como no impressionismo, ou como diria o escritor John Lehmann “uma espécie de impressionismo interior”. Esta obra é considerada o mais visionário e formalmente perfeito de seus livros, onde a abundancia deslumbrante de imagens poéticas é observada a todo o momento na estrutura do livro, e segundo Lehmann “não são apenas meras decorações”. “A imensidão de água azul surgia diante dela; o antigo Farol, distante austero, no centro; e à direita,tão longe quanto a vista alcançava,diminuindo e declinando em suaves ondulações,as dunas verdes de relva fluida e selvagem ,que sempre pareciam correr para algum país lunar, inabitado pelos homens. Era essa a paisagem.”[2] Essa paisagem som por som tom por tom, foi re-criada ,sem barateamentos no texto e com profundo conhecimento, por Luiza Lobo escritora, Professora de Línguas Lusófonas na Universidade de Nantes(FR) e tradutora de “Passeio ao Farol”,além de Virginia Woolf, Luiza traduziu mais de trinta obras, entre ficção, ensaios e dicionários, dentre os quais Persuasão, de Jane Austen, O deus escorpião, de William Golding e contos de Edgar Allan Poe. Em 1994 lançou uma tradução bilíngüe do escocês, com introdução e notas intitulada 50 poemas, por Robert Burns (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994). Pelos oitenta anos dessa obra, segue abaixo uma pequena entrevista que realizei com Luiza Lobo sobre como revelar em palavras uma paisagem sem tempo ou espaço.
ENTREVISTA
1.“Re-criar é a meta de um tipo especial de tradução: a tradução-arte.”[3] “To the Lighthouse” seria esse tipo especial de tradução?
– Sim, To the Lighthouse teve, na primeira edição, em 1968, o título de O Farol, na Gráfica Record (não é a Editora Record), e o traduzi por devotação. Eu tinha 19 anos quando a comecei, e Virginia Woolf era minha escritora predileta. Propus o título ao dono da gráfica, e ele o aceitou. Eu escrevi meu primeiro artigo sobre sua obra no Globo, em 1970 (31-1-1970), com o título “Virginia Woolf – o romance e as mulheres”. Revi muitas vezes o texto dessa tradução, que foi republicada pela Nova Fronteira (1982), depois pela Ediouro (1a edição, 1993) e pelo Círculo do Livro, e hoje deve estar na 20a edição. O desafio desta tradução é respeitar as inovações estilísticas de Woolf, que acompanham o fluxo da consciência, com um ritmo e uma respiração típicos de seu estilo. Só não estou de acordo com a recriação total ou transliteração livre, pois creio que se deve respeitar o contexto e a cultura do autor que se escolheu traduzir, uma vez que ele é o autor, fundamentalmente.
2. Roland Barthes disse certa vez que deveríamos demolir a diferença entre a literatura e as artes visuais, e renunciar à pluralidade das artes, para afirmar, mais enfaticamente, a pluralidade dos textos…
– Sim, para Roland Barthes a lingüística teria um fator preponderante sobre a comunicação e outras artes, porque o ser humano sempre traduz suas sensações estéticas – de um filme, uma música, uma escultura – na linguagem, na palavra, no discurso. Assim, a lingüística seria o suporte de toda a compreensão estética e as sensações humanas.
3. O Tempo (ou a falta dele) tem qual importancia, nesse livro de Virginia Woolf?
– O Tempo é um tópico fundamental nesta obra de Woolf e em todas as suas obras da maturidade, como The Waves (As Ondas), Between the Acts (eu o traduziria como No intervalo, mas o título da Nova Fronteira ficou Entre os atos…). O tempo sempre foi um tema da predileção de Woolf, representando uma metáfora para a morte e para sua insegurança pessoal diante da vida e os desafios de sua difícil condição psicológica. O tempo representa a constante mobilidade das coisas – como a morte dos seus dois irmãos, um deles na Segunda Guerra, e o bombardeamento de sua casa, em Londres. Um dos três capítulos de O Farol se intitula “O tempo passa” – e mostra a casa em que a família Ramsay passava as férias em ruínas, levando consigo todos os sonhos e bons momentos das pessoas, algumas delas já mortas, como a sra. Ramsay. Esta personagem de Passeio ao farol representa a mãe de Virginia Woolf, que ela perdeu aos 13 anos. É preciso lembrar que sua leitura predileta era, além dos gregos, Marcel Proust, cujo tema fundamental é a passagem do tempo, através do registro minucioso dos acontecimentos da sociedade francesa através de suas crônicas, depois reunidas em A procura do tempo perdido (1919-26). É esta leitura, conforme nos relata em seu Diário, e a de Joyce, que Woolf constrói sua noção de fluxo da consciência. Este constitui uma união ente a realidade externa e as sensações inconscientes das pessoas. Em Passeio ao farol, a noção negativa da passagem do tempo, associada à morte e à ruína, é no entanto superada pela figura de Lily Briscoe, talvez uma representação de sua irmã, a pintora Vanessa Stephen. A pintura do quadro impressionista da Sra. Ramsay no jardim, com o farol ao fundo, feita por Lily, que retorna à casa para terminar de pintá-lo, no último capítulo, que permite conservar e reconstruir o passado.
4. Segundo uma carta escrita por Virginia para seu amigo Roger Fry, ela diz que o Farol é mais do que isso, do que simples metáfora de alguma coisa “não sei lidar com símbolos, exceto dessa maneira vaga”…
– O farol, nesta obra de Woolf, já foi interpretado como símbolo fálico. Hermione Lee, por exemplo, tem um estudo muito bonito sobre o Passeio ao farol. Poderíamos imaginar a metáfora do farol da seguinte maneira: inicialmente todos buscam o farol à distancia, representando a figura fálica do pai. Mas é uma viagem que não acontece, pelas condições climáticas. Então, há um retorno à figura materna (Sra. Ramsay) e à arte da escrita, que é feita por ela mesma (a narradora) e pela pintura (Lily Briscoe). No livro, todos os homens falham – o Sr. Ramsay é um filósofo pretensioso e egocêntrico; o Sr. Carmichael nada faz de notório; na realidade, só as mulheres produzem, neste romance, sendo que a Sra. Ramsay é quem recria toda a beleza do quotidiano e une os amigos e a família ao seu redor, transmutando tudo o que toca em objetos iluminados. Poderíamos concluir que, se o farol é o símbolo fálico, a figura da mãe é seu complemento, a sua luz.
5. O elemento água nos livros de Virginia não é somente um, ambiente, um pano de fundo. É mais que isso: é sua linguagem e substancia vital. “O destino da palavra é tornar-se água?”[4]
– A água é o símbolo materno, justamente o que falta na vida de Woolf, pois depois da morte da mãe ela foi assediada sexualmente pelo meio-irmão mais velho; além disso, para pagar a universidade dos dois irmãos, ela e Vanessa tiveram de cursar a escola em casa, tendo aulas com o próprio pai, o biógrafo inglês Leslie Stephen, editor do Dictionary of National Biography (1885). Essa obsessão com a falta materna e o passado termina por levar Woolf a se suicidar no rio Ouse, enchendo os bolsos com pedras. Ela não resistiu à idéia de ser internada pela terceira ou quarta vez, vítima de anorexia e alucinações. A água é importante também no primeiro livro de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, através da presença do mar. Este é um elemento flexível, dúctil, muito próximo da experiência feminina.
6. Qual escritor ou escritora merece um convite teu para um “Passeio ao Farol”. Se fizer um dia bonito, of course?
– Minha escritora predileta no Brasil é Clarice Lispector, embora também aprecie a poesia de Cecília Meireles e Gilka Machado, e a obra de tantas prosadoras de ficção e ensaio. Selecionei 36 escritoras no meu Guia de escritoras da Literatura Brasileira, que acaba de sair pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com financiamento da FAPERJ. Seria injusto não levar todas para um passeio ao farol. Mas em termos de importancia e efeito sobre a minha maneira de escrever, Woolf e Lispector foram as mais importantes.
Por Danielle Fonseca é artista visual. Mora em Belém do Pará
[Título] Trecho de “Porto Solidão” (1980)
[2] Virginia Woolf, To the Lighthouse, pág.16.
[3] Augusto de Campos, in: O Anticrítico, 1986.
[4] Subtítulo da Bolsa de Pesquisa em arte “Rumo ao Farol”, de Danielle Fonseca, financiada pela Fundação Ipiranga (2007).