Resumo:
This essay attempts at the discussion of the conditions for the survival and permanence of art in the new millennium. It discusses post-colonial culture and tradition in Brazil in the face of the new technologies and trends quickly arriving from other more developed milieus. The essay draws the epistemological lines of resistance for esthetics and art in such a culture.
Texto:
INTRODUÇÃO
Os 500 anos de descoberta do Brasil provocam-nos uma indagação sobre as criações que ocorreram no país no campo da arte, da literatura e da cultura, para ficarmos no campo das ciências humanas. O que marca especialmente esta data é sua coincidência com o início do novo milênio, dentro da cronologia cristã, o que nos leva, simbolicamente, a sentir que estamos fechando uma era e iniciando uma nova. Tudo isso pode, concordo, não passar de uma impressão ligada tão-somente ao calendário gregoriano cristão, data historicamente nada significativa para árabes, indianos e judeus, por exemplo.
O panorama cultural global alterou-se a tal ponto no Brasil e no mundo, nos últimos dez anos, que muitas vezes nos indagamos se permanecerão uma literatura e uma cultura como a conhecemos agora, ainda escrita, culta, erudita e literária, dentro da tradição greco-judaico-cristã-ocidental. A compreensão do mundo nesses 25 séculos de história greco-cristã parte de premissas físicas e concretas, no máximo ligadas à eletricidade, no século XIX, e à revolução da eletrônica, do laser e da Internet, no século XX. Ocorreu uma revolução tão radical nesta última década que ameaça aposentar o papel como veículo de imprensa e de cultura escrita. Boa notícia para a ecologia, graças à melhor conservação das florestas. A difusão do computador em escolas, mesmo nos países pobres, com sua contraface do CD-Rom, o disco a laser, o email, a conversa on-line, a Internet, a vídeo conferência e o hipertexto representado das redes e conexões representa uma forma radicalmente nova de comunicação entre os seres humanos. O fenômeno da televisão, com a divulgação de arte e notícias de forma simulada ao real, através da cor, movimento e linguagem oral, por via eletrônica, depois aperfeiçoado com a televisão a cabo e o vídeo doméstico, criando a especialização do espectador, passou por uma transformação ainda mais gigantesca com o correio eletrônico e muitos outros avanços tecnológicos que aparecem diariamente.
A conseqüência social mais imediata deste fenômeno é a globalização e a unificação da sensibilidade humana através de um tipo de visão de mundo única ou predominante. Mas outra conseqüência disso é que é a hegemonia da língua inglesa e a cultura por ela engendrada, que difundem seus hábitos, cultura e arte — e, naturalmente, seus produtos negociáveis. Cria-se um novo império de dominação cultural moderna através do domínio da imagem e da palavra. Este só pode ser comparado ao império latino na antigüidade. Nem mesmo os Estados nacionalistas do século XIX conseguiram a mesma penetração mundial obtida pelo império anglo-saxônico atual, entendendo-se aí principalmente a hegemonia dos Estados Unidos. É uma forma inteligente de dominar mas que se deve, principalmente, ao fato de a Inglaterra, desde o século XVIII, já se constituir num país industrializado e capitalista, o que a capacitou a utilizar a língua como uma forma de exportação de sua cultura, através de um forte sistema educacional e um bem organizado sistema administrativo das colônias, que se aliavam para utilizar a língua inglesa como principal veículo de dominação. Esta se dava não tanto através de guerras, ou unicamente pelas guerras, mas através da exportação de cultura (ver The Empire writes back, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, London, Routledge, 1991. 1. Ed. 1989). Uma forma de dominação que já atua de forma cada vez mais próxima, pois é realizada através das chamadas “negociações”, seja no plano político ou econômico. Estes acordos quase nada têm de negociados, uma vez que os parceiros mais fortes sempre poderão “exportar” (isto é, impor) suas idéias e negócios com muito maior margem de aceitação (ou imposição) nas regiões humilhadas e ofendidas (ver Agnes Heller). Exemplo disso foi a “negociação” sobre a emissão de gases CO2, na última reunião de cúpula mundial, durante a qual os Estados Unidos e outros países do Primeiro Mundo, em lugar de reduzirem o grau de poluição que provocam no mundo, “negociaram” com países menos poluidores a comprarem deles uma certa quantidade “quotas de poluição”, uma vez que eles pouco poluem. Mas também pouco produzem. Assim, com esta “barganha”, ainda durante algum tempo continuará a poluição na atmosfera que a Terra como um todo provoca. Situação eticamente condenável que nos lembra as indulgências compradas pelos pecadores do Santo Papa durante o Renascimento. Daí a importância da apropriação das formas impostas pelos países dominadores, de que nos falam os autores acima.
Do ponto de vista da arte e da literatura, o computador trouxe para o leitor da telinha uma importante opção. Ele já não precisa dedicar-se apenas à observação passiva dos bonequinhos e filmes impostos pela televisão ou pela programação da TV a cabo. Ele se sente dono do universo, buscando seu assunto na Internet ou escrevendo em velocidade igual ou quase igual à do pensamento, ou pode conversar sobre inúmeros assuntos com pessoas de diversos pontos do globo, visitando endereços eletrônicos e informações de locais distantes sobre infinitos assuntos em fração de segundos. A vantagem que este espectador-leitor-escritor ganhou foi passar a utilizar, em sua leitura na Internet, quando na presença de ilustrações, os dois lobos do cérebro, quando antes só utilizava o direito, para a escrita. O ocidental pouco utilizava o lobo esquerdo do cérebro, que se destina às figuras ou desenhos. Com o computador, foi forçado, afirmam alguns especialistas, a usar os dois lobos, combinando figuras/desenhos e escrita. Aproxima-se assim da percepção do texto que tem o oriental, que sempre precisou, para interpretar e escrever o ideograma, combinar a leitura da figura visual à interpretação da escrita. (Ver também Pierre Lévy, A tecnologia da inteligência; O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1993. 1. Ed. 1990; e também O que é o virtual?, Rio de Janeiro, 34 Letras, 1999. 1. Ed. 1995).
Outra conseqüência associada à escrita no computador é a possibilidade de realizar o sonho de Stéphane Mallarmé, em seu famoso e inacabado projeto do Livre, como mostrei na Apresentação a Globalização e literatura (Rio, Relume-Dumará, 1999, p. 37-45): no computador, pode-se até certo ponto desobedecer à ordem linear do discurso, escrevendo, recortando, deslocando, apondo sílabas, palavras e orações numa rearrumação constante do discurso, o que não poderia ser feito no texto tradicional.
Todo este fenômeno teve lugar na última década do período que Lyotard denominou “condição pós-moderna”, implicando no fim das utopias que vinham se delineando desde o século XVIII, com os grandes enciclopedistas franceses e pensadores da filosofia transcendental alemã. Este momento, iniciado na década de 1970, a partir de uma crise generalizada no mundo das artes, corresponde ao fim da busca do “Make it new” poundiano e da originalidade do modernismo da primeira fase, e à passagem para a idéia de que “Nada é new“. Tudo é repetição, rearranjo de termos já presentes na ordem do discurso anteriormente enunciado. Na condição pós-moderna a literatura e o “fim do real na condição pós-moderna veiculam percepções, produzem subjetividades e anunciam os paradigmas de novas formas de pensar, sentir e estar no mundo”, nas palavras de Fernando Fábio Fiorese, um dos ensaístas do livro, que retomo na mesma “Apresentação” daquele livro.
A crise das utopias, o sentimento de déjà vu e de melancólico “sentimento do mundo”, na expressão de Carlos Drummond de Andrade, que se apodera de artistas e produtores culturais do pós-moderno explica-se pelo acúmulo de informações permitido pelo computador, o CD-Rom, o hard disk e outros meios de armazenamento de dados quase infinitos e até então impensáveis. A maior amplitude de informação, impulsionada pelas descobertas tecnológicas e científicas a cada dia trouxe, no plano das artes, a sensação de vazio e de nada mais te-se a inventar. Isso ocorreu, pelo menos no plano da retórica, ou seja, das artes.
À diferença dos jornais, cobertos do resíduo de tinta, borrão, provocado pelo chumbo, a graxa e por máquinas pesadas, manuais ou elétricas, cria-se uma nova realidadeclean, os programas de computador e os portais de informações científico-tecnológicas, propagandas e comunicação eletrônica, abrindo para um universo de possibilidades individuais. Esta realidade virtual que nem sequer tenta mais simular a vida real, mas que cria a vida, já foi considerada compatível com a ética e as características da sociedade capitalista e puritana. É o portal de um novo mundo da comunicação. Uma história da leitura, de Alberto Manguel (São Paulo, Companhia das Letras, 1997, 1 ed. 1996), mostra-nos a evolução que preparou este novo universo infinito de simulacros idênticos ao real, e muitas vezes superiores aos originais, obtidos numa velocidade inimaginável. A técnica acompanha o progresso da humanidade em relação a uma crescente imersão no capitalismo, em que time is money. Já não há manuscritos, rabiscos, textos inéditos e únicos rascunhados à mão ou numa máquina individual, caseira. As descobertas que faziam a alegria dos especialistas em ecdótica, hermenêutica ou genética crítica. O horror da página em branca de que nos fala Maurice Blanchot em L’espace littéraire já quase deixou de existir. Um texto é composto de recortes, reaproveitamentos, revisões: composições rápidas em que surgem, em questão de segundos, através de pequenos gestos técnicos, como o automático clicar de botões de recortar, apagar e colar, um novo tipo de palimpsesto. Não há tempo para hesitações. Time is money. Os moldes de cada escrita estão armazenados na memória do computador, resíduos de outros textos que podem ser facilmente reaproveitados, sem grande emoção humana, apenas por força da máquina. O mundo clean já se aproxima perigosamente de uma certa realidade de ficção científica, pelo menos para a classe média, em que as pessoas agem como robotizadas e dominados pela máquina. Ao menos este é o tema de filmes atuais realizados nos Estados Unidos: Matrix, Quero ser John Malkovitch e sem dúvida muitos outros, talvez menos criativos e convincentes.
A noção de reprodutibilidade técnica, anunciada por Walter Benjamin em “O objeto literário na época de sua reprodutibilidade técnica” repete-se e reproduz-se numa quantidade e velocidade inimaginável. O conteúdo filosófico e questionador do texto desaparece em prol da economia de palavras e de tempo. Se o meio é a mensagem, o fremir da máquina em movimento elétrico acelera a acumulação de gestos mecânicos, que não raro redundam em lesões nervosas por sua excessiva repetição.
Esta repetição, que deixava uma margem, um surplus, na teoria de Jacques Derrida, passa a ser questionada na sua produção positiva de sentidos por Jean Baudrillard emL’Échange symbolique et la mort (Paris, Gallimard, 1976). Essa série infinita de sentidos levaria a uma constante morte de significado na vida, eternamente perpetuada no capitalismo (série que pode ser interrompida pelos discursos marginais ao capitalismo, como as dos negros e das mulheres). Também Fredric Jameson em “O pós-modernismo e a sociedade de consumo” (cap. 1, in Ann Kaplan, org. O mal-estar no pós-modernismo; Teorias, práticas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, 1. Ed. 1988, p. 25-44), menciona (p. 30) uma “construção” do sujeito burguês, que nunca teria existido, e a emergência de uma “nova experiência de tecnologia citadina” (p. 40), que Walter Benjamin já apontara em Baudelaire.
Paralelamente a esta transformação de atitudes, ocorre um fenômeno inesperado no plano da crítica literária: sucede uma exaustão com os métodos semiológicos até então utilizados, desde o Estruturalismo e a crítica pós-modernista com base em Jacques Derrida, Paul de Man, Jonathan Culler, Gilles Deleuze e outros filósofos e críticos literários. Na medida mesma em que há na sociedade contemporânea uma hipertrofia do instrumental virtual, ocorre, paralelamente, um desejo de recuperar uma dimensão histórica ou até microhistórica (nova história, ou de história das mentalidades), que abarque a totalidade dos eventos sociais que constituem o tecido social como um todo e que pode ser reconstituído a partir do texto. “Nas palavras de Michel de Certeau, o que chamamos de realidade é um inventário (quiçá incompleto) daquelas pegadas deixadas num mapa coletivo já marcado por outros traços de outras viagens” (cit. in Claudia de Lima Costa in “O ‘outro” enquanto sujeito: a problematização pós-esturutalista”, in p. 263, p. 257-63, parte 4., O outro enquanto mesmo, in Identidade & representação, Raúl Antelo, org., Pós-graduação em Letras/Literatura Brasileira e Literária, UFSC, Florianópolis, 1994, 464 p.). Noutros termos, a realidade é histórica. Nos estudos posteriores ao pós-moderno assiste-se a um certo retorno à análise sócio-histórico-cultural, como por exemplo entre seus criadores, os historiadores franceses Claude Braudel, Jacques Le Goff e outros representantes da da escola, ou nos seus seguidores, o professor inglês Peter Burke. Contudo, já não é uma história ingenuamente realista, nos moldes de um Arnold Hauser, de um Norbert Elias ou, em menor grau, de um Erich Auerbach. Ela pressupõe a recriação mimética da realidade através de uma narrativa que passa a constituir uma história que não se quer científica, isto é, reprodutora do real, mas recriativa deste real. (Ver sobre Costa Lima Máscaras da mímese). Na encruzilhada entre o pensamento marxista realista e esta visão quase literária de história, passando pela revisão da obra semiológica de Jacques Derrida, encontra-se a figura revolucionária de Gayatri Spivak (ver artigo Internet).
Esta indiana não se considera indiana, para ela uma criação forçada por ingleses e outros povos dominadores da Índia, buscando uma falsa união para melhor conquistá-la. Na verdade, ela se considera natural de Bengali, onde nasceu, sendo o bengali sua língua materna. Desde os 17 anos está radicada nos Estados Unidos. Em suas conferências e ensaios procurou unir a sociologia marxista com o pensamento filosófico de Jacques Derrida, depois chamado de desconstrucionismo, nos Estados Unidos, quando ele passou a lecionar em Yale, após a década de 1970, dando origem ao que se chamou movimento pós-moderno. Questionando cada palavra, buscou contestar o conteúdo essencialista da linguagem, e unir a crítica à posição marginal ocupada pelas classes subalternas com a experiência feminista de revisão textual.
Assiste-se a um fenômeno que poderíamos definir como uma dupla crise do conceito de mímese. Na década de 1960-1970, o Estruturalismo desvinculou a noção de mímese da palavra e da linguagem, desatrelando-o do real social. A linguagem foi eleita como uma explicação hegemônica e autônoma de interpretação. A luta surda que se travou entre os críticos marxistas e os pensadores que buscavam a autonomia do texto literário redundou na noção de autonomia da dimensão do imaginário e do simbólico no texto literário, libertando o signo de uma mímese colada ao real. Este processo parece ter se invertido no momento em que o pós-moderno já se esgota com relação a uma mímese vassala do real. Enquanto, no período pós-moderno, a filosofia era uma preocupação constante dos críticos, sob o influxo do pensamento de Derrida, visando a contestar os pressupostos da filosofia transcendental metafísica, no momento atual os estudos culturais e a linha de discussão centrada no pós-colonialismo atrelam-se à sociologia e apresentam questionamentos políticos, não filosóficos, às questões da cultura.
Na última década do século XX Terry Eagleton (Theory of Literature, London, Blackwell,1993, 1. Ed. 1988) e Henri Lefebvre (The construction of space, Oxford, Anthropos, 1991, 1. Ed. 1974) desconfiam da hipertrofia da linguagem como sendo capaz de servir de explicação para a totalidade dos fenômenos sociais da realidade além dos textuais. Lefebvre chega a referir-se explicitamente a tal falência.
Também a partir do pensamento filosófico de Jacques Derrida e da semiologia, mas afastando-se rapidamente dele, Edward Said, Homi Bhabha, assim como Gayatri Spivak, utilizando em sua maior extensão o conceito de diferença de Derrida e ampliam-no não só para a definição de gênero no feminismo como, igualmente, para as camadas subalternas e as minorias políticas . Esta linha se constitui numa crítica pós-colonialista que se volta para as margens, em oposição ao eixo dominador eurocêntrico.
Na mesma vertente, os estudos culturais aprofundam as redes sociológicas deste saber questionador, afastando-se cada vez mais da indagação semiológica presente em Derrida, Kristeva e mesmo Foucault.
O texto liberta-se da clausura semiológica, na qual se supunha que o signo continha o todo social em si, como na afirmação de Julia Kristeva sobre o termo ideologema, e a crítica volta-se novamente para o social, embora o veja através de um sistema mimético de representação, não como um dado concreto, como no marxismo ingênuo. Contesta-se a linguagem como metalinguagem ou um discurso retórico autônomo, para além da ideologia. A ciência é posta em questão, até no campo das ciências exatas. A lingüística não mais se constitui na grande ciência da comunicação que tudo abarca, como queria Roland Barthes em Língüística e comunicação. Ela volta a ocupar um nicho dentro das ciências humanas. A sociologia, a história e a antropologia tornam a despertar o interesse do discurso teórico e crítico universitário. A comunicação de massa e a cultura canibalizam os campos da arte e da literatura, atrelando-os à sociedade do espetáculo atual, na feliz expressão de Guy Debord (em A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto; é um aspecto discutido também por Nestor García Canclíni em Culturas híbridas, São Paulo, EDUSP, 1997, 1. Ed. 1989).
O modismo do espetáculo, que caracteriza a nossa cultura como a do olhar sem críticaencontra o seu paroxismo em Paulo Coelho, que pontifica sobre teologia em O Alquimista, e é arrastado, na sua mais profunda glória, como o andor de um santo, nas laterais de uma linha de ônibus que percorre Paris. É um espetáculo inusitado vê-lo proferir conferências eruditas nas academias, e freqüentar banquetes, a convite do Presidente da França e as maiores editoras do país, locais que há 50 anos só sonhavam penetrar os maiores representantes da alta literatura francesa.
Há no entanto a possibilidade de uma autocrítica do próprio enunciador do discurso, que se coloca no texto como pessoa, e não mais como cientista, ou seja, um sujeito afastado do objeto de seu saber. O processo epistemológico dá lugar ao processo existencial. Passa a ser “travessia” (ver Luciano Zajdsznajder, A travessia do pós-moderno (Rio de Janeiro, Gryphus, 1992; ver também O pós-moderno, de Jair Ferreira dos Santos), e surge o apelo a “uma ‘leitura atípica’, aquela que não pretende nenhuma exaustão, nem tem uma metodologia a priori, deixando-se levar pelaexperiência, palavra que também se liga à idéia de travessia. Uma leitura a partir das zonas menos privilegiadas do texto, ou de suas margens no dizer de Derrida, emMargens da filosofia: das notas, dos títulos, das epígrafes, das referências intra-, inter- e extratextuais” (Evando Nascimento, Derrida e a literatura. “Notas de Literatura e Filosofia nos textos da desconstrução, Niterói, EDUFF, 1999, 363 p., “Questões de princípio”, p. 15-25, p. 20). Mas saber sem o sentir perde o sentido
Já foi muito repetido que a maior revolução deste século foi a revolução feminista. Esperemos que ela não se torne um projeto adiado ou fracassado como a Revolução Comunista. De qualquer forma, adiada ela já está, pois parte de suas propostas de autonomia no plano social teráo de ser adiadas para o próximo. Foi um longo caminho que começou em fins do século XIX, com os primeiros movimentos sufragistas e a entrada da mulher para a imprensa e o mundo profissionalizado da imprensa e da literatura, com George Sand, Jane Austen e Charlottle e Emily Brontë, mas que ainda enfrenta muitos preconceitos arraigados. A pesquisa sobre o cânone, o resgate das escritoras e a discussão teórica sobre gêneros foi o caminho depois seguido pela crítica, que depois estendeu este pensamento à recuperação literária a outras “minorias”, sexuais, raciais, os povos orientais e os que produzem literatura oral. Principalmente estes últimos eram desconsiderados pelos estudiosos oriundos do pensamento eurocêntrico, uma vez que, na definição de Derrida, a oralidade baseia-se no fonocentrismo, um tipo de discurso do ouvir-dizer que não passa pela recriação da escrita ou a escritura crítica. Contudo, hoje, é a fala, a oralidade que preside às manifestações culturais mais importantes na história. O que em Derrida só se redimia pela escrita, ultrapassando o fonocentrismo do ouvir-dizer, torna-se valorização do fonocentrismo, pela reconsideração da literatura oral, da manifestação política e cultural de povos com uma cultura mais oral.
A arte e a literatura, como bem nos mostra Nestor Canclini em Culturas híbridas, passam a ser divulgadas na sua forma de baixa literatura, incorrendo num conceito muito amplo de cultura, que corresponde, na verdade, à noção de mídia como foi criado neste século. A mídia é a comunicação para as massas — não se devendo confundi-lo com a literatura oral ou popular, que sempre existiu. Esta não empregava meios de ampliação da divulgação, e era realizada pelas classes populares ou dirigida a elas. Um processo justamente inverso ao atual, em que o povo recebe pacotes de mensagens e imagens, de linguagens decodificadas para ele por pessoas bem informadas da elite intelectual que douram a pílula do conhecimento do cotidiano, oferecendo-a em pequenas doses. Não importa o que digam os bem-pensantes, como Leyla Perrone-Moysés, em sua defesa das “altas literaturas”, a verdade é que toda sorte de discursos se cruza nos meios de comunicação mais diversos, numa rede de intertextualidades: muros, programas de televisão, revistas on-line, programas de alta ou baixa qualidade, livros best-sellers e o hiperrealismo, no computador. Termina em grande parte o preconceito contra o não-erudito. Há a mistura das artes, como já vinha mencionado no Auerbach, confundindo-se alta, média e baixa literatura.
Nas universidades e meios intelectuais fala-se de decadência e finissecularismo. Nas livrarias compram-se obras de esoterismo e auto-ajuda. A própria psicanálise entra em crise, substituída por tratamentos de menor duração (ver Elisabeth Roudinesco, Mais!,Folha de São Paulo, março 2000), ligadas ao corpo e a esoterismos. A situação é crítica para as letras. Não se vendem mais livros. Editoras se unem em cartéis e conglomerados. Utilizam portais de informática. Introduzem-se em homepages. Livros inteiros são disponibilizados na Internet, mas o pagamento de direitos autorais se faz à editora só após completar-se o milheiro de vendas. Tudo passa a ter dimensões globais. E, como nos cultos milenaristas ao final do primeiro milênio, onde muitos peregrinavam pelas ruas esperando o fim do mundo e se autochicoteando, alguns prenunciam o fim da literatura e da arte. A baixa literatura e arte ditam as regras do bom-tom entre os intelectuais. As obras da chamada alta literatura destinam-se a um público altamente especializado e com um objetivo definitivo: didático, profissional, ou estimulado por um programa de televisão ou filme que apelam para este ou aquele título, como se deu com o livro O Perfume, de Patrick Susskind, uma releitura rebaixada de À Rebours, de Houysmans, que alcançou grande nível de vendagem e de que hoje ninguém mais ouviu falar. É o fenômeno da moda, da alta costura em pleno domínio das letras.
O tratamento indiscriminado de qualquer produto como produto artístico, que passaria a ocupar o espaço das belas letras, belas-artes ou da arte erudita, chega ao ápice no fim do milênio. Já na última década do século XX surgem os estudos culturais. Não se sabe ainda se são a tábua de salvação para as artes ou a aceleração de seu processo irremediável de decadência. As universidades e as revistas especializadas deixam de tratar a literatura como linguagem específica para se dividirem em departamentos ou centros voltados para a política da literatura e os problemas sociais, abrindo espaço para estudos cada vez mais politizados: women’s studies (estudos feministas), cultura latino-americana, estudos hispânicos, arte, estudos sociopolíticos. A alta literatura enclausura enclausura-se entre públicos altamente especializados, nas rodas de intelectuais e dos bares, a literatura (assim como as exposições de arte e a música erudita) não é mais o assunto. Fala-se de cinema, de psicanálise, de música popular, da economia, da vida privada. Cada um no seu buraco de pombo, para usar a expressão norte-americana que indica o aprisionamento universitário numa excessiva especialização: “pigeon-holed“.
Ainda não se sabe se os estudos culturais vieram condescender em abrir espaço para a moribunda literatura, ou se vieram acelerar um processo de perda de prestígio que poderia ainda se prolongar por mais algumas décadas, dando espaço para se alcançar algum processo de salvação pelo surgimento de alguma novidade no cenário cultural. A crítica torna-se mais sociológica, histórica, política, antropológica e menos voltada para estudos específicos da literatura, como o eram Hugo Friedrich, Wolfgang Keyser ou Vossler, nos antigos tempos do estudo da estilística textual. Acirram-se os estudos de literatura e cultura, literatura e sociedade e arte enquanto mídia. A crítica e a arte podem até continuar a se voltar para a literatura e o cinema de arte ou a obra de artista, o problema é encontrar público, seja universitário ou o geral. Criam-se núcleos, pequenos grupos especializados que continuam a ler em segmentos: literatura de autoria feminina, afro-brasileira, roman noir, romance policial. É como no início da rádio FM: as rádios AM sobreviveram, mas precisaram se tornar cada vez mais especializadas, voltando para segmentos mínimos da população: donas de casa, motoristas de caminhão, noticiário, certas seitas, tipos de música e até mesmo rádio relógio.
O VIRTUAL NA LITERATURA E NA ARTE: pós-modernismo, pós-estruturalismo, pós-colonialismo, estudos culturais
O estruturalismo consistiu num período crítico eivado de intertextualidades, de citações cruzadas, entre textos e intertextos literários que, no dizer de Julia Kristeva, se autobastavam, conduzindo a outras citações e leituras, numa incursão infindável pelo texto do outro, numa rede interminável. Já no clímax deste movimento, ou seja, no pós-modernismo, Barbara Cassin, em Máscaras da mímese, A obra de LCL, org. Hans Ulrich Gumbrecht e João Cezar de Castro Rocha, Rio de Janeiro, Record, 1999, “Transmissão e ficção”, p. 34-35, p. 25-43,), desmancha a magia das citações e das aspas, mostrando que a citação, desde Diels, o estudioso da literatura grega, é que elegia, de acordo com seu “bom gosto”, os textos dignos de citação, pois na verdade a frase citada é uma apropriação. Toda a etiqueta do processo de citação entre aspas data apenas do típógrafo Guillaume, epônimo de “guillemets”, as aspas, em francês (p. 34). Assim, a “doxografia” não passa de um “objeto filológico que corresponde ao ideal de uma transmissão por pura repetição” (p. 35). Para rivalizar com o culto livro de Genette que lançou toda a escola de análise de texto desde a década de 1970,Palymsestes, desmerece Barbara Cassim, no período pós-moderno: caracteriza a doxografia é “o que ele diz” (phêsin, em grego), enquanto legein significa “querer dizer” e apaga o falante, para que subsista apenas a “repetição da fórmula” (p. 38). Sem dúvida é uma releitura do estruturalismo e da semiologia, em que a repetição do dito e da diferença do mesmo é que vão indicar o significado semiológico dos vocábulos.
Estudos tradicionais — como a antropologia, a filosofia e a história — vêm sendo submetidos a um “profundo questionamento de qualquer formação epistemológica” — afirma Claudia de Lima Costa in “O ‘outro” enquanto sujeito: a problematização pós-esturutalista”, in p. 257, p. 257-63, parte 4., O outro enquanto mesmo, in Identidade & representação, Raúl Antelo, org., Pós-graduação em Letras/Literatura Brasileira e Literária, UFSC, Florianópolis, 1994, 464 p.). O que sucede é a textualização, a “literalização” de todas as antigas ciências, num sentido que antes poderia ser identificado ao de uma ideologia, como vêm fazendo Hayden White e Richard Rorty em filosofia, e Clifford Geertz e James Clifford em antropologia (idem, p. 257). Essas teorias limitam-se a apresentar narrativas ou textos culturais sobre fenômenos textuais “construídos a partir de uma aglomeração de textos” (idem, ibidem). Paralelamente, desequilibrou-se a estrutura sujeito-cientista — e objeto de estudo. O “objeto de qualquer prática discursiva não é nada mais que a própria produção dessa prática e é específico a ela” (idem, ibidem). Rompe-se assim a universalidade e a estabilidade que antes cercava o sujeito do conhecimento. Coloca-se em cheque a crença hermenêutica na quest!ao da formação da subjetividade naas construções e operações epistemológicas e metodológicas (como no caso de Um Geertz, Gadamer ou Paul Ricoeur). Estabelece-se um certo pacto em que o próprio discurso cria o seu objeto, ao contrário do pensamento hermenêutico, que antes via o objeto como um já-dado para ser conhecido pelo sujeito (ver idem, ibidem).
O que se poderia questionar aqui é se permanece um espaço irredutível que poderíamos chamar (ainda) de real. Que o real é impregnado de história, já nos disse de Certeau. Mas se este limiar é que o mundo real, aquele produzido pelo trabalho de todos, num retorno ao conceito marxista de trabalho e de produção relembrado por Lefebvre, então todas as interpretações e releituras são possíveis, e perde-se até mesmo a dimensão da ética na vida humana. Para Lefebvre, há três instâncias no que diz respeito ao real concreto, como em Platão, cada vez mais afastadas do real, em direção aos discursos de representação. Este pacto com a realidade, uma realidade que em si não teria nada de interessante, comenta Richard Rorty, no entanto nos permite uma saída para fora da desconstrução, em relação à construção de um discurso coerente que não fique circularmente eternamente se autoperguntando sua função social o tempo todo.
A LITERATURA NA ERA DO CULTURAL
Afirma Thais Flores Nogueira Diniz em “Representação e identidade nos anos 40”, in Antelo, Raúl, org., Identidade & representação, Florianópolis, UFSC, 1994, p. 237-43, que hoje o texto é “considerado como produto cultural, [e] é visto como absorção, réplica a outro texto ou a vários, e em que o que era entendido como relação de dependência ou dívida para com o antecessor passa a ser compreendido como um procedimento natural e contínuo de re-escrita” (p. 237). Lembra que identidade e representação são conceitos intimamente ligados, pois a “representação, a idéia, aquilo de que é imagem no ato da lembrança resulta em conhecimento da identidade”. Esta se define como uma experiência emocional que permite a cada ser perceber-se como entidade única, apesar de suas contínuas transformações. É a contradição de ‘ser-si-mesmo’ deixando de sê-lo. O conceito de identidade opõe-se ao de alteridade e o reconhecimento da identidade de dois ou mais objetos, ou sua identificação, pressupõe sua alteridade, que lhes permite continuar ‘o mesmo’, persistir no seu ser” (p. 237; ver Greimas, A. J.; Courtes. Dicionário de semiótica. São P;aulo, Cultrix, 1979).
Temos, assim, a pressuposição de que cada obra literária desenvolve elos intertextuais com outras obras — no sentido de intertextualidade que lhe atribuem Julia Kristeva emSemeiotiké e Jean Genette em Palympsestes. Neste sentido, já não haveria a idéia de influência ou preponderância de um autor sobre outro, uma vez que os textos funcionam como redes de sentido complexas e existindo concomitantemente na sociedade atual. No caso de autores cronologicamente anteriores, eles seriam retrabalhados e reinscritos num novo todo lingüístico, pelo autor posterior na tradição literária, tratando-se por assim dizer de um caso de tradução ou transliteração. Mas, para além deste conceito, vemos delinear-se uma tal complexidade de intertextualidades que se configura um problema de hiperrealismo, como na Informática, de signos ou conteúdos que remetem a outros conjuntos de signos ou de conteúdos, indefinidamente.
O cânone literário ficaria assim sob suspeita, podendo-se afirmar que não existe literatura “pura”, no sentido das “belas-letras”, uma vez que todo texto, em última instância, estaria inscrita na totalidade do social, ou na vasta palavra cultura. Desse modo, nenhum texto poderia deixar de estar inserto na história. Um cânone literário único e definitivo seria uma contradição, uma vez que a cultura está em constante mobilidade, assim como a parole (palavra), sempre móvel, com relação à langue(língua), mais fixa. O cânone sempre vai incorporar autores do passado que vão sendo revalorizados — é o caso das escritoras do século XIX que vão sendo resgatadas — e escritores quer atuais, quer passados, uns porque passam a ser considerados, outros porque, tendo sido antes bem considerados, saem de moda ou caem desuso. É o caso, entre nós, de Coelho Neto, que hoje ninguém mais lê. O caso modelar para este fenômeno é Shakespeare, cuja própria existência já foi negada e no século XIX foi valorizado como o mais original e valioso dos dramaturgos, sendo hoje reescrito e transfigurado de todas as formas, a cada montagem e leitura crítica (ver Thais Flores Nogueira Diniz em “Representação e identidade nos anos 40”, in Antelo, Raúl, org.,Identidade & representação, Florianópolis, UFSC, 1994, p. 237-43, por exemplo, a respeito das releituras de Shakespeare em nosso século)
A idéia de um kanon (em grego, vara de medir), de função puramente estética (ver Roberto Reis, “Cânon”, in José Luís Jobim, org., Palavras da crítica, Tendências e conceitos no estudo da literatura, Rio de Janeiro, Imago, 1992, Biblioteca Pierre Menard, p. 65-92, p. 70-1), isto é, com base na filosofia kantiana, que pregava o bem e o belo desinteressados, tornou-se obsoleta. O conceito cultural parece atropelar essa pureza metafísica de conceitos que se originou no pensamento da elite do século XVIII. A primeira pergunta na sociedade atual, supostamente democrática e republicana, é sobre a legitimação do conceito de belo. Quem será o juiz deste conceito? Em que definirá a medida desta beleza? Como afirma Roberto Reis: “O estudo da literatura seria melhor equacionado considerando-o dentro da dinâmica das práticas sociais: a escrita e a leitura estão sujeitas a variadas formas de controle e têm sido utilizadas como instrumento de dominação social” (idem, p. 72). A legitimação dessas obras e dos critérios seria feita pela universidade, pela crítica especializada ou a resenha jornalística nos meios de comunicação social — entretanto, no apagar das luzes do século XX, seria ainda este o critério usual? Sem dúvida, caminhamos na direção contrária à apontada por Harold Bloom em seu O cânone ocidental (Rio de Janeiro, Objetiva, 1995), que desejaria retornar a Shakespeare e apenas ao panteão de autores clássicos e anglo-saxônicos estudados em Yale até 1950. (No Brasil foram publicados recentemente, de Flavio Kothe, O cânone colonial e O cânone imperial, Brasília, ed. Da UnB).
Hoje assistimos à transformação do livro num objeto de consumo e de utilidade prática. O best-seller oferece informações importantes. Paulo Coelho, por exemplo, decifra os passos para a depuração da alma, até a ascese maior, descortinando ao leitor o caminho até Santiago de Compostella. Outros explicam o Japão na época do Xogum ou o Egito no tempo dos faraós. São historiadores que facilitam o vocabulário e o aprofundado estudo cronológico, inserindo-o numa narração cheia de graça e regada a romance, aventura e ação. O leitor sente-se elevado à categoria de intelectual, sem precisar do esforço de estudar ou dirigir-se à universidade. A literatura mostra-se “um eficaz veículo de transmissão de cultura” (Roberto Reis, idem, p. 72), mas, também, um eficaz instrumento de dominação de classe e de grupos sociais altos. Tradicionalmente, houve a exclusão dos povos da periferia européia, os asiáticos, africanos, sul-americanos — processo que está sendo em parte revertido pela atuação da Associação Internacional de Literatura Comparada neste sentido, reunindo-se e estudando o Japão (último congresso) e a África (este ano). No entanto, dada a complexidade do mundo atual, uma listagem de “grandes escritores da literatura universal”, como existia nas universidades norte-americanas e européias até a década de 1950, ou a idéia de uma Weltliteratur, como o desejava Goethe, no momento da criação da Literatura Comparada, no século passado, parece inviável hoje, podendo-se antes imaginar a coexistência de diversos cânones destinados a distintos fins e voltados para diferentes regiões do globo. Estes cânones reconheceriam explicitamente os fins a que se dedicariam, pois o critério estético, eivado de metafísica, no sentido desinteressado e superior a qualquer interesse, parece pouco convincente e até aberto à suspeita, principalmente das classes mais subalternas, se elas receberem a educação a que têm direito — um processo que tem sido retardado indefinidamente no Brasil, com a contínua queda da educação e a manutenção do salário mínimo em 75 dólares mensais. No momento atual, a quebra do conceito de nacionalidade, bem exportado através dos impérios pela escola hegemônica do Romantismo, parece também perpetuar-se pela impressionante influência dos Estados Unidos em todo o mundo, constituindo-se agora como uma nação global. Se, como nos mostra o livro The Empire writes back antes havia o imperialismo capitalista e eficaz da Inglaterra desdobrando-se através da língua, da cultura como armas de dominação cultural expandindo-se na Índia, Austrália, Canadá, etc — com uma eficiência infinitamente superior aos impérios mercantilistas no século XVI de Portugal, Espanha e Holanda, por exemplo, hoje a lição inglesa é elevada a uma infinita potência com o império norte-americano e temos o mundo transformado em aldeia global quase que exclusivamente constituído a sua imagem e semelhança.
CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA: TRADIÇÃO E RUPTURA
Balizar a critica literária brasileira dentro desta rede de pensamentos filosóficos e lingüísticos não é tarefa fácil. Pode-se cair na armadilha do nacionalismo, enfatizando a importância de todos os críticos que se voltaram para um pensamento nacional. Assim, se destacaria a preeminência da escola da USP, liderada por Antonio Candido e Roberto Schwarz, e hoje seguida por inúmeros de seus alunos espalhados pelo mundo. Mas esse esforço poderia parecer um pouco infrutífero a partir da década de 1970, quando o pensamento especificamente “brasileiro” passou a se estender a um pensamento mais latino-americano, com pensadores como Roberto Schwarz, ou universalista, como é o caso de João Alexandre Barbosa, que incluiu nos seus ensaios estudos sobre Mallarmé e outros poetas simbolistas, na linha mais eclética de um Augusto Meyer. Inúmeras metodologias passaram a se cruzar a partir da década de 1970, as quais podem ser sintetizadas nos estudos de Literatura Comparada, que passaram a reunir estudos interdisciplinares dos mais diferentes teores. Mas com uma marcante diferença: não preconizava o fechamento em torno de temas da Literatura Brasileira nem com um instrumental oriundo tão-somente do Brasil. Esta foi uma das preocupações de Luís Costa Lima em um certo momento de sua carreira crítica: encontrar as raízes e as ramificações de uma crítica “autenticamente” brasileira (como ele desejaria ver surgir, enquanto “sistema intelectual brasileiro”). O esforço por encontrar algo totalmente autóctone tornou-se um tour de force. Aqui e ali, e no próprio pensamento de Costa Lima, surgiam influências, leituras, contágios, contaminações, apropriações. Na verdade, onde se encontrariam, em pleno século XX, esses pensamentos totalmente originais? Acabou-se por incorrer na teoria das intertextualidades, de Julia Kristeva, a partir do pensamento de Mikhail Bakhtin, e dizer-se que não é mais possível retraçar as influências e, como na rede entretecida de Jorge Luís Borges, e no Palympsestes, de Genette, todos os textos estão em todos os textos, na modernidade. Através da extrema circulação da Literatura Comparada no Brasil, a partir da década de 1980, e principalmente com a revista da ABRALIC n. 1, de Niterói, em 1991, passou-se a valorizar problemas genéricos, como a identidade cultural, a diferença filosófica ou de gênero, e a utilizar como metodologia a interdisciplinaridade, com a conjunção da história, da antropologia e da história. Abria-se um caminho internacional para os estudos da Literatura Comparada. Os apelos marxistas do local e do popular tornavam-se mais raros, e só voltaram a ocorrer no campo da literatura com a ruptura da idéia de erudito, e sua mistura com o conceito de arte popular ou baixa literatura.
O conflito entre nacional e autêntico e uma crítica livre, de caráter quem sabe francês, nos moldes de Sainte-Beuve, esteve presente no Brasil desde os seus começos. Em Alencar, “Como e por que sou romancista” e em Machado de Assis, “O instinto de nacionalidade” o importante era diferenciar-se do pensamento europeu, hegemônico, eurocêntrico. Naquele momento, de fixação das fronteiras nacionais e de uma identidade própria (até certo ponto identificada com a idéia de exótico, de tropical, de indígena e selvático) dizer-se brasileiro era criar uma diferença e afirmar-se uma identidade própria. Entretanto, os críticos literários tradicionais como Santiago Nunes, Artur Araripe, Sílvio Romero e José Veríssimo, prestaram uma atenção apenas periférica ao problema da nacionalidade. Ela se restringia à questão do tema e das descrições no que dizia respeito a cenas de natureza “brasileiras”, isto é, o que resumia a teoria da “cor local”, uma das bases do Romantismo. A verdadeira preocupação desses críticos era, entretanto, o problema estético dos textos. Estudavam a sua eficácia, sua recepção pelo público, a utilização de um vocabulário adequado, oriundo do português e não afrancesado, a descrição de pessoas da classe popular e com o vestuário típico do povo brasileiro que não denotasse influência estrangeira nem descrições excessivamente cosmopolitas ligadas a Paris.
Assim, a crítica literária brasileira nasceu não há 500 anos, mas há menos de 200, no século XIX. Surge com a independência do país, quase no Romantismo, e vence inúmeros problemas. O primeiro, é o analfabetismo do povo. Machado, como bom cronista dos costumes de sua época, assim define o grau de instrução e a política do país: somos 70% de analfabetos (ver crônica de Notas semanais). O segundo, é a ausência de universidades (a Universidade do Brasil data de 1920) e faculdades dedicadas à literatura. Até 1940, quando se cria a primeira Faculdade de Letras do país, os escritores estudavam Direito. Isso leva a uma certa generalização nos seus comentários críticos. A falta de leitura sistemática de autores, críticos, da literatura greco-latina ou de importantes histórias literárias que nos antecederam leva a um ecletismo e um generalismo de estilo que foram denominados de impressionista. É o domínio do sentimento sobre a racionalidade. Vale a impressão pessoal sem fundamento num estudo mais aprofundado ou em comparação a autores antes estudados com afinco. É grande a leitura de obras literárias mas quase nula a procura por obras filosóficas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, como se constata através de seu Livro de Consulentes do século XIX. Outro problema é o elitismo de todo sistema intelectual brasileiro. Permitia-se, por exemplo, o ingresso à Biblitoeca Nacional, por exemplo, apenas a homens brancos, de terno, gravata, bengala e chapéu. Jamais descalços (escravos) nem mulheres (esperta foi George Sand, que se vestia de homem e adotou pseudônimo masculino, em pleno século XIX francês).
Conclusão
Nos 500 anos de descobertas do Brasil, talvez devêssemos cobrar de nós mesmos uma crítica pós-colonialista que implicasse na autonomia com relação às dependências do passado, nos moldes do pensamento que surge na Índia, como base para a criação de um país totalmente independente, embora constituído por um rede de línguas e culturas unificada pelos ingleses e outros dominadores artificialmente. No entanto, essa hipótese é remota dada a conjuntura globalizada do mundo atual. O fim da colônia terminou, do ponto de vista cultural, no Romatismo do período monárquico, realizando uma mudança de eixo de influência de Portugal para a França. A influência francesa culminou com o modernismo, no qual muitos manifestos, como o Pau-Brasil e o Antropófago tinham suas bases no Manifeste Caniballe, de Picabia, por exemplo (ver Benedito Nunes, Oswald canibal, São Paulo, Perspectiva). Mas por volta de 1950 a influência francesa foi substituída pela norte-americana, num grande império mundial de bases extraordinariamente globalizadas. Uma crítica pós-colonial nos levaria de volta à dicotomia nacional versus internacional. A um pensamento autóctone. As dicotomias se mostram cada vez mais abertas à suspeita num mundo complexo. Seria o autóctone o indígena? O africano? Ou o retorno à cultura do português? E que fazer com os imigrantes europeus e japoneses? Desse ponto de vista, parece-me que no multiculturalismo que deve prevalecer na cultura e na arte, nosso sistema intelectual brasileiro, que já lutou tanto para ser puramente “brasileiro” durante tantas décadas, deveria reunir os fragmentos da cultura que o compõem e se autoquestionar no sentido de influir no processo o máximo possível. A criação de uma teoria totalmente pura e autóctone, independente e original lembra-nos as teorias racistas do final do século passado e início deste. E o movimento em direção à globalização torna-se inevitável. O que não quer dizer automático nem regulado exclusivamente por outros. A lição da apropriação, já proposta entre nós pelos modernistas, parece ser o único caminho possível para uma teoria e uma prática crítica entre nós e em qualquer parte do mundo hoje, ligado por uma quase visível rede comunicacional que realiza a predição da aldeia global de McLuhan, aldeia global, multicultural mas na qual alguns exportam saberes e bens e outros os importam. Daí a importância da permanência da crítica literária e cultural.
Este texto foi escrito para uma conferência durante o Simpósio Internacional BRASIL 500 ANOS: CAMINHOS DA HISTÓRIA, SÍNTESE DE CULTURAS, realizado na Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, de 9 a 14 de abril de 2000, sob a coordenação da Profa. Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa, da Pró-Reitoria de Extensão e do Forum das Nações. Foi paricalmente publicado em jornal local.