GIOVANNI RICCIARDI
Amém, amém! Fazia tempo que não acabava a leitura de um romance de muitas páginas – quase 500 – com alegria e satisfação e tendo lido tudo, tintim por tintim, página após página. Acompanhou-me ao longo de quase um mês, um tempo enorme para um leitor profissional, como penso merece ser chamado esse professor aposentado que continua mexendo e deleitando-se com livros. Isso me acontece quando gosto de um livro e fico saboreando-o aos poucos, sem pressa, bem sentadinho, tranquilo, despreocupado, como aquele leitor de que falava Ítalo Calvino in Se una notte d’invernoun viaggiatore.
Trata-se do romance de Luiza Lobo, Terras proibidas, publicado pela Rocco no ano de 2011, que traz como subtítulo A saga do café no Vale do Paraíba do Sul, uma estória local, portanto, limitada geograficamente à ex-província do Rio de Janeiro e temporalmente ao período 1840-1884, o período de maior surto da cultivação do café naquela região, que porém assume um valor exemplar, quase a demonstração daquele célebre ditado da Imitação de Cristo: Sic transit gloria mundi, assim passa a gloria do mundo, assim acontece com a história dos homens. Também a autora – que é uma professora e portanto uma pessoa que sabe refletir e tirar consequências – escreve:
…não era só a Cachoeira Grande que caía; era tudo o Vale. O abandono e pauperização das terras, primeiro prósperas com a árvore do anil, depois com o café, em seguida ocupadas por gado e suínos e finalmente dedicadas ao turismo, nos fazem pensar no nascimento, decadência e morte das civilizações (p. 482).
Tudo acontece em Vassouras, o umbigo do mundo ao longo de todo o romance, que de simples lugarejo torna-se antes vila (1833), depois cabeça de comarca (1837) e, finalmente, cidade (1857) e tudo acontece em torno de poucas famílias, entrelaçadaspara, como de costume, não desperdiçar o patrimônio: os Teixeira, os Ferreira Leite, os Leite Ribeiro, os Furquim e os Almeida: comerciantes, banqueiros, mas também plantadores de café, fazendeiros, políticos, maçons, mecenas, idealistas num tempo áspero e turbulento, sobretudo pelo problema da escravidão, visionários encanecidostambém em querer construir uma ferrovia que ligasse Vassouras ao Rio de Janeiro para melhor e mais velozmente escoar as safras de café.
Com o fim da escravidão tudo rui: as famílias, o trem, o café, a cidade, a fazenda Cachoeira Grande, hoje habilitada ao turismo cultural, onde, vejam só, “alguns hóspedes escutam, na casa-grande, ruídos de correntes arrastadas do porão” (p. 484).
Porém, que grandeza, que esplendor, que faustos nas fazendas do Vale do Paraíba do século XIX, o maior centro cafeeiro do mundo! Patético e fiel retrato dessa grandeza é o último banquete na Cachoeira Grande que foi oferecido à Princesa Isabel, acompanhado pelo Conde d’Eu, esperando com isso “que a princesa interviesse junto aos bancos, obtendo o adiamento da cobrança das dívidas de hipotecas vencidas, problema de todos os barões e fazendeiros do Vale do Paraíba” (p. 475): louça de Sèvres cor-de-rosa, francês o cozinheiro, vindo da corte, franceses os vinhos e todo o menu. Mas nada adiantou. As hipotecas vencidas foram cobradas e tudo ruiu. Sic transit gloria mundi!
Esse é o período que Luiza Lobo pesquisa e retrata com afinco e paixão, apoiando-se em cinco páginas de atenta bibliografia específica e pormenorizada e não esquecendo os 15 volumes de História do café no Brasil de Affonso d’Escragnolle Taunay, que é também personagem da história. Nada lhe escapa: o nome histórico de uma rua ou de um lugarejo e o seu nome atual, as genealogias das grandes famílias protagonistas:
O sobrenome Teixeira, assim como de outros cristãos-novos, aparece registrado em documentos a partir do século XII, quando passa a se usar em Portugal e na Galícia… (p. 243).
A reconstrução minuciosa dos ambientes da Cachoeira Grande e o gosto pelos pormenores, como nesta descrição da hora do chá ou, como preferiam os homens, do cafezinho:
Na sala principal do primeiro andar havia uma enorme mesa lateral coberta de doces, enquanto mucamas serviam bolos de aipim e broas de milho, alternando-os com frutas frescas – fatias de abacaxi, laranja e carambola – e toda sorte de docinhos: de coco, goiaba, ameixa, marmelo, mamão verde, ovos e, o auge do luxo, chocolate. Sobre a mesa também repousava uma imensa bandeja de prata repleta de quadradinhos de frutas cristalizadas, a última moda de Nantes, ao lado dos cristalizados nacionais: pedaços apreciáveis de mamão, abacaxi, laranja, goiaba, araçá, romã, carambola, envoltos em açúcar cristal e postos ao sol para secar em cima dos telheiros, é verdade que sem grande preocupação com higiene (p. 70).
Querendo retratar uma época não podia a autora desconhecer as ideias que pairavam sobre o Brasil naqueles anos e discuti-las com as personagens, começando pelo abolicionismo, as ideias republicanas, o gobinismo, os problemas entre o Estado e a igreja. De tudo diz, de tudo o que se passava no Vale e nas outrora “terras proibidas” naqueles anos a autora se interessa e escreve. Talvez até demais e até por demais pormenorizado.
Mas Terras proibidas, ainda que tenha uma capa que mais leva o possível leitor a pensar em um belo ensaio de história, é um romance, porque a autora inventa o que há entre e além dos documentos, porque tem personagens e tipos, porque tem sentimentos e paixões, porque tudo, do começo ao fim, do enforcamento do escravo Manoel Congo até o último banquete em honra da princesa Isabel, é eivado de um sentimento dramático e decadente, sem falar na estrutura profundamente… romanesca. Poderia dizer, lembrando os versos iniciais da Ode marítima de Fernando Pessoa, que este romance é, como o paquete pessoano, “clássico à sua maneira”. É um bom romance, legível, gostoso, que ultrapassa a Luiza de por trás dos muros (1974), Voo livre ( 1982) e Maçã mordida (1992) e a Luiza dos muitos contos esparramados em revistas e antologias. A experimentação acabou, o solilóquio exacerbado cedeu lugar ao gosto pela escrita e pela narratividade, características que estavam em nuce, sobretudo em Voo livre, se devo reconhecer como minhas algumas notas que eu escrevia enquanto lia o livro, de onde tiro este trecho de um forte panteísmo:
Mais uma vez lhe voltava a sensação do corpo, mesmo dorido, de existir, sendo, e voltar, amando, à matéria primeira, o ser. Sob o véu de espuma do mar que cobria, fumaça inexplicável toda a praia, sentiu subir-lhe pelo corpo uma onda de reconhecimento.
Sentindo nas mão o calor da areia, percebendo, ao longe, a perder de vista, o mar, sabendo, finalmente, que já não tinha dentro de si nenhum pedaço do mundo – gozou plenamente, uma, duas vezes – pois por fim completara o eterno abraço com a essência de si-mesma (p. 68).
Eis, se uma temática continua também no romance é a mulher, antes, nos contos, como reivindicação do papel da mulher, de sua liberdade e atuação nas estórias do dia a dia contemporâneo, agora, no romance, como pietas, como compaixão pelas mulheres daquelas fazendas e sobretudo da fazenda Cachoeira Grande: Maria, a primeira mulher de Francisco José Teixeira: “Sua seiva fora roubada, devastada, como a terra foratraída” (p. 133); Ambrósia, “misteriosa, calada, ensimesmada… não fosse filha do barão…não entrava na história. Ficaria morta e enterrada e lembrada apenas por uns poucos familiares que lastimariam a sua triste sina” (p.141-142); Maria Paula, condenada a se casar com o primo Caetano, viúvo de Ambrósia, ela com 18 anos, esse com 37; Ana que também teve de se casar com o cunhado Francisco, quando Maria, sua irmã, morreu, mas continuando a sentir-se uma estranha na casa. Rematando o retrato de cada uma dessas mulheres, a autora escreve à maneira de epígrafe: “Nenhuma mulher foi feliz na Cachoeira Grande”. Salva-se apenas Eliza, neta de Francisco José, porque é uma “irregular”, pois “é dada a bruxarias, se mete em macumba e em perigosos rituais ciganos” (p. 187). As outras, as mulheres normais são “importantes na medida em que trazem fazendas ou sesmarias de dote de casamento e que têm idade para casar e procriar. Baú recheado, prole e terras produtivas” (p. 132).
São essas as páginas dedicadas às mulheres, as mais íntimas e delicadas, as mais ternas de todo romance. Um romance histórico, portanto, bem dentro da definição que desse gênero deu-me numa entrevista, ainda não publicada, o saudoso José Saramago, que, recusando para si a designação de romance histórico, assuntava:
Eu acho que esta designação de romance histórico teve algum sentido talvez em fins do sec. XIX, por exemplo, com romances que eram reconstituições arqueológicas. Era como se cada romancista agarrasse numa máquina fotográfica e fizesse uma viagem ao passado e lá chegadofizesse umas fotografias e depois pusesse as fotografias diante de si e escrevesse para ser fidelíssimo àquilo que tinha fotografado….
Luiza Lobo fez tudo isso: agarrou a sua bela e clássica máquina fotográfica, tirou fotografias de tudo o que viu e entreviu nas suas cinco páginas de bibliografia e nos 15 volumes da História do café no Brasil de Taunay, visitou os lugares, as fazendas e as terras proibidas todas, depois sentou e tudo reinventou, lindamente.