Resenha: "O Drible": Sergio Rodrigues – Patricia Maria dos Santos Santana


RESENHA
RODRIGUES, Sérgio. O Drible. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.  224 p.

Patricia Maria dos Santos Santana

UFRJ/CAPES

 
Minicurrículo da resenhadora: Patricia Maria dos Santos Santana é doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ e bolsista da CAPES. Lançou três livros de crítica literária e publicou diversos artigos científicos em renomadas revistas.
 
A paixão que o futebol desperta no brasileiro é imensa e foi a partir desse envolvimento que o escritor Sérgio Rodrigues decidiu escrever as linhas de seu último livro. Diz a sabedoria popular que o homem pode trocar de camisa, de profissão, de nacionalidade e até de mulher, mas não troca o seu time do coração.  Nos mais remotos locais deste país, sempre há alguém que tenha uma bandeira, um escudo ou a camisa de seu time. Nas tardes de domingo, existem rádios sintonizados no jogo da vez, esperando por um grito de gol do locutor.  O futebol é conhecido como “o esporte bretão”, pois, oficialmente, nasceu na Inglaterra, Londres, em 1863, quando representantes de dez clubes definiram suas regras e criaram a The Football Association, mas foi no Brasil que ele ganhou lar. Quando ouvimos que o futebol tem a cara do Brasil, consideramos o fato de que a prática do mencionado esporte, ao contrário da prática de outros esportes como o tênis, o golfe ou o ciclismo, não exige altos recursos, nem mesmo equipamentos caros ou áreas especiais para se jogar. Com duas pedras, dois tijolos ou um par de chinelos já se tem o espaço do gol formado. Os garotos brasileiros aprendem a jogar descalços no asfalto, na areia ou na terra batida.
O autor Sérgio Rodrigues nasceu em Muriaé, Minas Gerais, no ano de 1962, e vive no Rio de Janeiro desde 1980. Ficcionista, crítico literário e jornalista, ele é autor também dos romances Elza, a garota (2009) e As sementes de Flowerville (2006).  O Drible (2013) é o terceiro romance do autor. Foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras e tornou-se o grande vencedor do 12o Prêmio Portugal Telecom de Literatura, o mais importante do país. No livro, Murilo Filho é um famoso cronista esportivo que, aos oitenta anos, descobre portar uma terrível doença e se vê à beira da morte. Ele rememora os acontecimentos da época de ouro do futebol enquanto tenta se reaproximar de seu único filho, Neto, com quem brigou e rompeu relações há mais de vinte anos. Toda semana, em pescarias dominicais, Murilo Filho procura preencher com interessantes histórias de craques do passado o enorme abismo que o separa do filho já cinquentão. Neto, por sua vez, é um medíocre revisor de livros de auto-ajuda obcecado pela cultura pop dos anos 1980, que leva uma vida sem graça colecionando quinquilharias e conquistando mulheres que trabalham no pequeno comércio perto de sua casa, situada no bairro carioca da Gávea. Desde os cinco anos, quando a mãe se suicidou, sente-se desprezado pelo pai famoso e o culpa pela morte precoce da genitora.  O pai ganhou fama nos anos áureos do Jornal dos Sports, era celebridade da praia e da noite do Rio de Janeiro, foi companheiro de redação de Nelson Rodrigues e parceiro de Millôr nos jogos de praia. A tentativa de reconciliação de Murilo acaba sendo falha e, assim, Neto descobre um terrível segredo de família enterrado nos porões da ditadura militar.
Em O Drible, temos como núcleo do romance um problema familiar mal resolvido, um ajuste de contas do passado que o filho se encontra obrigado a fazer com o pai. O texto é construído através dessa tensa história entre pai e filho abrindo brechas para a magia futebolística na história de Peralvo, relembrado nas linhas do livro pelo narrador Murilo Filho como um jogador fenomenal que teria todas as habilidades possíveis para se tornar um ídolo maior e melhor que Pelé caso não morresse de forma precoce e trágica. O cronista esportivo vai recordar a sua própria trajetória e a carreira de Peralvo ao longo do livro: torcedor do América, Murilo Filho chega ao Rio em 1960 e vai trabalhar no Jornal dos Sports, comandado por Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, que também escrevia no jornal. Peralvo é da mesma cidade de Murilo, Merequendu, e chega à cidade dois anos depois para jogar justamente no América. O garoto é craque e, com a ajuda das empolgadas reportagens de Murilo, rapidamente passa a ser comparado a Pelé.
A memorável cena do drible que Pelé deu no goleiro uruguaio Mazurkiewicz na semifinal da Copa de 1970 é utilizada por Sérgio Rodrigues para retomar antigas questões sentimentais. A citada cena é vista e revista por pai e filho num antigo aparelho de TV, para explicar décadas de um problema familiar. Desse jeito, a trama estabelece novos sentidos narrativos para a palavra “drible” no livro. Como menciona o antropólogo Roberto Da Matta no clássico ensaio intitulado “Futebol: ópio do povo ou drama de justiça social?”, o futebol pode ser tomado como uma metáfora da própria vida, por meio da qual “nossa sociedade fala, apresenta-se, revela-se, exibe-se, deixando-se descobrir” (1986, p. 105).  De um acontecimento real, ou seja, de um drible dado em um jogo por Pelé, temos a oportunidade de ver o desenrolar de ideias e do próprio romance, concluindo o jogo de criação do autor. O livro coloca, de forma particular, o futebol como um dos personagens da história. Um personagem bastante decisivo.
O autor prova que é possível criar ficção lidando com os valores e com as tradições, com os absurdos e com as memórias, com a arte e com a imaginação que o futebol deposita em cada um dos brasileiros. Sua construção é feita através das pitadas do real (Pelé, Jornal dos Sports etc), do imaginário (Peralvo, o craque que nunca existiu, mas que seria maior que Pelé) e da história do Brasil (o regime militar) que se imbricam para formar o todo. Também podemos observar na obra uma crítica profunda à mídia, na análise de que o futebol brasileiro deve muito de sua evolução ao hábito do forjar, ou seja, na afirmação de que existe uma falta de veracidade ou uma mania de exagerar nos fatos sobre a realidade daquilo que acontecia em campo pelas narrações de futebol feitas no rádio. A proposta levantada se baseia, exatamente, no esforço que muitos jogadores tiveram de fazer para ficar à altura dos exageros que os radialistas diziam, corroborando a seguinte afirmação de Michel de Certeau: “algo na narração escapa à ordem daquilo que é suficiente ou necessário saber e, por seus traços, está subordinado ao estilo das táticas” (1994, p.154).  Era, então, a tática da exaltação como estratégia de vitória além dos gramados, adentrando também nas locuções e nas redações futebolísticas.
Apesar de ser considerado o país do futebol, o tema é ainda raro na literatura brasileira e ler o livro significa mergulhar nos últimos quarenta anos da história do Brasil e da crônica esportiva. O Drible procura ressaltar, de um jeito todo seu, a nossa cultura.
 
REFERÊNCIAS
 
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano 1: as artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
DA MATTA, Roberto. “Futebol: ópio do povo ou drama de justiça social?”. In: DA MATTA. Explorações – ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.