Resenha: "Liturgia do fim" – Paula Queiroz Dutra


RESENHA – LITERATURA E CULTURA
janeiro de 2017.
ARNAUD, Marília. Liturgia do fim. São Paulo: Tordesilhas, 2016. 150 p.
 

Paula Queiroz Dutra

Universidade de Brasília

 
Em seu segundo romance, a escritora paraibana Marília Arnaud apresenta a história de uma família em uma pequena cidade fictícia chamada Perdição. Com um narrador protagonista masculino, Arnaud retrata as raízes e as consequências de uma sociedade sexista e patriarcal. Narrado por Inácio, o romance relata o retorno desse homem, de vida aparentemente simples, mas que se consome em segredos, para a sua cidade natal, cujo nome já nos dá pistas de que algo se esconde nesse lugar onde ele passou sua infância e juventude. Entre presente e passado, Inácio navega por suas lembranças, às vezes bem amargas, de uma infância em um lar liderado por um pai opressor, uma mãe totalmente submissa e o sofrimento que esse ambiente austero, e por vezes violento, causou nele e em suas irmãs.
Professor e escritor, sempre enveredado pelo mundo dos livros e das palavras, seu refúgio desde a infância, Inácio inicia seu percurso relembrando o dia em que saiu de casa, aos 18 anos, expulso pelo pai. O sofrimento da mãe ante a partida do filho, silenciando sua opinião para não enfrentar o marido, é algo que fica como uma marca na vida de Inácio.
A relação do narrador com o pai, desde o início, foi marcada por enfrentamentos e decepções, afinal Inácio, mais interessado nos livros do que em desempenhar tarefas que o pai considerava mais ‘masculinas’, é constantemente rechaçado pelo pai. Em nossa sociedade, são vários os elementos e as instituições que exercem o que Guacira Lopes Louro (2007) chama de pedagogia da sexualidade, que tenta disciplinar os corpos para que sigam a norma heterossexual compulsória. A escola é, sem dúvida, uma delas, pois permite formas legitimadas de violência entre os próprios alunos, e tem um papel importante no processo de escolarização do corpo e na produção das identidades de gênero e sexual. Aprendemos, através das diversas redes de poder que constituem a sociedade, a classificar os sujeitos pela forma como eles se comportam e como se apresentam corporalmente. De forma semelhante, é na família que essa pedagogia também se exerce e, como vemos no romance, o pai critica e pune frequentemente os filhos com o intuito de mantê-los dentro da norma, do que se espera de homens e mulheres em uma sociedade patriarcal. No entanto, isso não se dá sem violência física, psicológica e emocional, e suas consequências para a vida de todos os membros dessa família são evidentes.
Trinta anos depois, cansado de lutar para esquecer as lembranças e os segredos que fizeram dele um homem triste e com dificuldade para se relacionar com os outros, além de um marido e pai ausentes, Inácio decide retornar para a cidade de Perdição e enfrentar os fantasmas de um passado que ainda hoje o atormenta. Abandona o emprego, a esposa e a filha e, sem data para voltar, viaja para o interior onde reencontra o pai, já velho e debilitado, bem diferente do homem autoritário cuja lembrança o acompanhou durante todos esses anos, e a empregada Damiana, única sobrevivente de uma época marcada por acontecimentos trágicos.
A casa em ruínas que Inácio encontra é palco de lembranças e medos que afloram, junto com muitos questionamentos sobre a própria vida, sua relação com o mundo e sobre o homem em quem se transformou. É também um espelho dessa família que se desestruturou por conta da opressão e do autoritarismo de um pai, silenciando sonhos e possibilidades de esperança e amor. O retorno a Perdição é uma busca por si mesmo, alimentado pelo desejo de recuperar o que se perdeu nesse caminho tortuoso de crescimento e mágoas, e também um reencontro com o pai com o qual talvez seja possível traçar mais semelhanças do que o próprio Inácio almejaria. O retorno é, portanto, reencontro e ruptura, fim e recomeço.
Este rito de fim, de Marília Arnaud, é marcado por um cuidadoso trabalho com a linguagem, o que dá ao texto ritmo e fluidez, transportando o leitor para um lugar remoto, cheio de lembranças por vezes sombrias, outras mais arrebatadas, como a descoberta do amor pelo jovem Inácio, carregado de elementos que caracterizam a obra de uma grande escritora. Através da narrativa de Marília Arnaud somos levados a refletir sobre as relações familiares e suas hierarquias, sobre a violência que ainda é tão comum no ambiente doméstico, sobre suicídio e também sobre a possibilidade de um dia encontrar na vida alguma redenção.
 
REFERÊNCIAS
LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da sexualidade”. In: LOPES (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 9-34.
 
Paula Queiroz Dutra é doutoranda em Literatura e Práticas Sociais na Universidade de Brasília e Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: qpaulad@gmail.com