REPRESENTAÇÃO DA FIGURA FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA: O CASO LENIZA MAYER EM A ESTRELA SOBE – Rosa Maria Santos, Danglei De Castro Pereira


Rosa Maria SANTOS – UEMS

Danglei de Castro PEREIRA – UnB

 
Resumo: O artigo discute a obra A estrela sobe (1938), de Marques Rebelo, pseudônimo de Edi Dias da Cruz. A ideia central é valorizar a obra do autor e, neste percurso, comentar aspectos específicos de sua produção ao abordar os limites do cânone literário nacional quanto à diversidade do romance e heterogeneidade de produções no século XX. Acreditamos ser pertinente considerar aspectos da configuração feminina na tradição literária brasileira e refletir sobre o lugar de Leniza Mayer nesta tradição e, na medida do possível, apresentar um autor pouco conhecido ao público leitor não especializado ao comentar aspectos específicos de sua obra por meio da discussão de nosso corpus.
 
Palavras-chave: Rebelo. Marques Rebelo. Modernismo. Revisão do cânone.
 
Abstract: This article aims to discuss the novel A estrela sobe (1938, The Star Rises), by the Brazilian writer Marques Rebelo, pen name for Edi Dias da Cruz. Its central idea is to trace the author’s form of work and to comment on specific aspects of his production in order to understand the boundaries of the literary canon of the Brazilian novel in the 2oth century in terms of its diversity and heterogeneity. We think that it is suitable to the corpus of our research to consider the place of Leniza Mayer in the female configuration of the Brazilian literary tradition. Furthermore, this article will try to present to the non-specialized reader Marques Rebelo, as he is an author generally speaking little known, by commenting on certain specific aspects of his work.
 
Keywords: Rebelo. Marques Rebelo. Modernism. Canon revision.
 
INTRODUÇÃO
É comum encontrarmos referências às obras e autores do Modernismo brasileiro e nestas percebermos a ausência de apreciação crítica mais detida da obra de Marques Rebelo. São escassos os trabalhos científicos de maior fôlego que focalizem a obra do autor e, quase sempre, as referências às obras de Marques Rebelo compreendem aspectos temáticos associados a sua produção, deixando implícita a qualidade estética de seus textos.
A abordagem do romance A estrela sobe (1938), em nosso ponto de vista, garante a possibilidade de focalizar a diversidade de obras na tradição literária brasileira no século XX, fato importante para o amadurecimento de questões em torno da formação do cânone literário e, mais especificamente, o mapeamento da produção literária de autores como Marques Rebelo no contexto modernista no Brasil.
Nosso objetivo, neste estudo, é apresentar a trajetória diegética de Leniza Mayer, tendo como pano de fundo a representação da figura feminina no romance A estrela sobe, corpus específico da discussão.
 
MARQUES REBELO E A FIGURA FEMININA: UMA PROBLEMÁTICA
Marques Rebelo (pseudônimo de Edi Dias da Cruz) nasceu em 1907, na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Viveu parte de sua infância em Vila Izabel e no Trapicheiro, bairros cariocas e, posteriormente, em Barbacena/MG. Morreu em 1973 no Rio de Janeiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e produziu diversas obras, dentre as quais, destacamos: Oscarina (1931); Três caminhos (1933); Marafa (1935); A estrela sobe (1938); Stela me abriu a porta (1942); O espelho partido I (1959), O trapicheiro (1959); O espelho partido II (1963); A Mudança (1963); O espelho partido III (1969) e A guerra está em nós (1969).
Neste estudo focalizaremos o romance A estrela sobe. Esta obra aborda a trajetória de Leniza Mayer, moça humilde, que sonhava alcançar o sucesso como cantora de rádio, mas que vê seus sonhos diluídos ao longo de uma trajetória marcada pela convivência, nem sempre harmônica, com uma sociedade machista e preconceituosa. Entendemos que a trajetória de Leniza estabelece uma tensão em relação a personagens representativas da tradição literária brasileira no que se refere à representação da figura feminina, o que focalizaremos de maneira mais detida ao longo do estudo.
Um exemplo do que podemos denominar trajetória paradigmática da representação da figura feminina é a construção da musa romântica. Na caracterização da personagem Cecília em O guarani, por exemplo, prevalece o caráter idealizado e sentimental em muito sob a influência da figura feminina descrita como casta e submissa aos padrões patriarcais, o que compreende um dos paradigmas sociais esperados da figura feminina na sociedade brasileira no século XIX com desdobramentos nos dias atuais.
Vejamos como Alencar materializa em seu romance a personagem Cecília:
 
Caía a tarde.
No pequeno jardim da casa de Paquequer, uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre, que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas.
Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas.
Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor de gardênia dos novos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco (sic) de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas. (ALENCAR, 1998, p. 32-33).
 
 
A fragilidade e pureza da sonhadora Cecília se confirmam no decorrer do romance de José de Alencar. A jovem que tem os lábios como “uma flor de gardênia dos novos campos” e uma “perfeição admirável” assume uma representação frágil e dócil, sendo objeto de desejo de personagens masculinos como Álvaro, Peri e Loredano. Não fosse a proteção de seu pai, Dom Antonio de Mariz, de Álvaro, espécie de herói medieval deslocado para o interior do Brasil inexplorado, e do índio Peri, que arrisca a própria vida para defendê-la inúmeras vezes no romance, Cecília sucumbiria à mercê de Loredano, anti-herói de O Guarani.
A personagem Aurélia, de Senhora, também de José de Alencar, possui, como Cecília, características frágeis que indicam a idealização romântica. Esta personagem, no entanto, traz certa ambiguidade que não impede sua ternura e ingenuidade; sob a égide do enlace passional que organiza a composição do romance:
 
O coração de Aurélia não desabrochara ainda; mas virgem para o amor, ela tinha não obstante a vaga intuição do pujante afeto que funde em uma só existência o destino de duas criaturas e, completando-as uma pela outra, forma a família.
(…)
Como todas as mulheres de imaginação e sentimento, ela achava dentro de si, nas cismas do pensamento, essa aurora d’alma que se chama o ideal, e que doura ao longe com sua doce luz os horizontes da vida. (ALENCAR, 2005, p. 87).
 
Após sofrer com o abandono do amado e receber uma herança do avô, Aurélia cria um plano para casar-se com Seixas e, com isso, “o ideal” de pureza da personagem parece ser questionado em uma trajetória diegética que se orienta, preliminarmente, por uma vingança:
 
A riqueza que lhe sobreveio inesperada, erguendo-a subitamente da indigência ao fastígio, operou em Aurélia rápida transformação; não foi, porém, no caráter, nem nos sentimentos que se deu a revolução; estes eram inalteráveis, tinham a fina têmpera (sic) do seu coração. A mudança consumou-se apenas na atitude, (…), dessa alma perante a sociedade. (ALENCAR, 2005, p. 213 – 114).
 
Inferimos que na descrição de uma permanência da “fina têmpera (sic) do seu coração” o narrador dá indícios de que não permitirá que Aurélia perca suas características frágeis de mulher submissa e casta para assumir a visão enigmática da musa realista com a qual sua trajetória diegética flerta. Na condução de seu plano de vingança e na forma distanciada e severa com que lida com Fernando Seixas e seu tutor ao longo de grande parte do romance, Aurélia vislumbra a independência por meio de uma aparente manipulação dos personagens masculinos.
Ao final do romance, apesar da decepção sofrida pelo abandono do amado em um primeiro momento, Aurélia perdoa Fernando Seixas e, inclusive, ajoelha-se diante dele:
 
A moça travara das mãos de Seixas e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelhado a seus pés a cruel afronta:
Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando teu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.
Seixa ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.
Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao tocador, e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas.
O que é isto, Aurélia?
O meu testamento.
Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro.
Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite, disse Aurélia com um gesto sublime.
Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for o bastante, eu a dissiparei. (ALENCAR, 2005, p. 237-238).
 
Entendemos, no entanto, que ao planejar a vingança e direcioná-la a Fernando Seixas Aurélia demonstra, mesmo que de forma sutil, um questionamento à submissão à figura masculina. O desfecho de Senhora revela, novamente, Aurélia como uma figura feminina submissa e casta diante do herói romântico “de longe seus olhos encontraram os de Aurélia, que fugiram para voltar tímidos e submissos” (ALENCAR, 2005, p 94). A trajetória de Aurélia anuncia, timidamente, um questionamento à submissão ao paternalismo descrito como um dos paradigmas na representação da figura feminina na tradição brasileira.
Esse perfil questionador, apenas vislumbrado na trajetória de Aurélia, encontra em Capitu, em Dom Casmurro, uma possibilidade de reconfiguração para trajetória da figura feminina dentro da tradição literária brasileira. Descrita de forma mais objetiva e irônica Capitu confronta os traços helênicos de Cecília e a submissão de Aurélia. O aspecto moreno e a ambiguidade psicológica de Capitu encontram na representação ambígua da personagem uma forma irônica de expressão das transformações sociais pelas quais passa o Brasil ao final do século XIX, aspecto apenas anunciado em Aurélia:
 
Que tem, tem – interrompeu Capitu. – E, se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?… Ele é atendido; se, porém… É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
– Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
– Você, jura?
– Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha me lembrado da definição que José Dias dera deles: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada. (ASSIS, 1995, p. 50).
 
A personagem machadiana pode ser entendida como questionamento à submissão da figura feminina perante as convenções sociais do século XIX, mas demonstra na busca pelo matrimonio com Bentinho uma das poucas possibilidades de reorganização da trajetória individual de uma personagem feminina ao final do século XIX.
Ao apresentar uma inquietação diante dos valores da sociedade burguesa/aristocrática que fazem, muitas vezes, da mulher um objeto de desejo e/ou contemplação, Capitu impõe sua vontade de cigana dissimulada ao jovem Bento e, com isso, contribui para o questionamento da submissão e passividade relacionada à figura feminina. A personagem de olhos de “cigana oblíqua e dissimulada” enfrenta Bentinho o impelindo a agir e a assumir as rédeas de sua vida, chegando a ordenar que o namorado, inseguro e ingênuo, “teime” com José Dias em busca de sua liberdade e, metonimicamente, de um novo caminho para sua trajetória na narrativa.
Este aspecto de imposição de uma forma de pensar, em nosso entendimento, possibilita uma aproximação entre a construção da personagem Capitu e Leniza, personagem central do romance A estrela sobe, de Marques Rebelo. Capitu, como demonstraremos em seguida, e Leniza são personagens que refletem as mudanças na sociedade no final do século XIX, indicando novos paradigmas para as primeiras décadas do século XX em relação à representação da figura feminina neste contexto.
Ressaltamos que não é objetivo do estudo estabelecer uma comparação minuciosa entre Capitu e Leniza; antes discutir a relação destas personagens com o contexto histórico do qual emergem e, com isso, valorizar aspectos específicos da constituição da personagem feminina no romance A estrela sobe, objeto de nossa discussão.
Feitas estas considerações preliminares sobre aspectos da representação de algumas personagens femininas na tradição literária brasileira iniciamos, na próxima sessão deste estudo, a focalização da personagem Leniza.
 
LENIZA: CIGANA DISSIMULADA?
Leniza pode ser entendida como representação das tensões sociais que envolvem a mulher real na primeira metade do século XX. Descrita como uma mulher que não vê no casamento uma saída e não hesita em usar seus dotes físicos e sexuais para alcançar seus objetivos a personagem inaugura um caminho distinto para a mulher brasileira no início do século XX. Ao se tornar uma cantora de sucesso e desejar a liberdade, Leniza torna-se uma personagem contraditória diante da submissão feminina descrita há pouco como paradigma na representação da figura feminina em um contexto paternalista como o do Brasil; mesmo nos dias atuais.
Lembremos que Leniza Mayer rejeita a situação de amante e o matrimônio e, com isso, busca o equilíbrio econômico através de ações individuais, o que demonstra o traço contraditório em relação às expectativas geralmente associadas à figura feminina no século XIX e início do século XX:
 
Um médico, Dr. Oliveira, que ela visitara muitas vezes e com quem fizera boa camaradagem, falara claro, de olhos untuosos, pegando-lhe na mão, que lhe montaria casa, lhe daria criados, automóvel…
O que mais?
Ele não percebeu a zombaria:
Jóias, vestidos, tudo.
Não acredita?
Talvez acredite, mas não me interessa agora. Pode ser que um dia…
Sabida!
Acha? – fez ela, arregalando os olhos, com ar muito moleque.
Da mesma espécie, recebera outra proposta. Era um médico também gordo, velhote, antipático. Fora feroz, gritando quase para que a ouvissem na sala de espera cheia:
Por que não propõe isso à sua irmã? (REBELO, 2001, p. 19-20).
 
Conforme o excerto, a protagonista, deixando implícito que não deseja ser amante de nenhum homem, pelo menos “agora”, rejeita a condição de amasia, mesmo manifestando sentimentos afetivos ao longo da narrativa por Oliveira.
Fica implícito que Leniza entende que a situação de amante e protegida implica no abandono do sonho de conquistar seu próprio espaço na sociedade e, ingenuamente, vê na carreira artística um caminho para este objetivo. Em um diálogo tenso com Oliveira que sentencia: “– engana a você mesma. Por que, afinal, que é que você quer? Que é que você espera da vida?”. Sua postura diante da consideração de Oliveira é contestadora e evidencia que seu desejo é algo distinto à condição de mulher amada e dócil ao afirmar que espera “– (…) muito, ora! Mais do que supões. Quero ser livre, Oliveira! Dispor de mim, você não compreende? Dispor de mim. Fazer o que entender” (REBELO, 2001, p. 23).
Oliveira insiste em unir-se a ela que sentencia: “– Não sei o que quero, Oliveira. Sei é que não quero o que você me tem proposto” (REBELO, 2001, p. 21). Diferentemente de Cecília, Aurélia e, mesmo, Capitu; Leniza não deseja a proteção masculina e/ou o casamento para atingir a condição de equilíbrio social por entender que ao aceitar o casamento, no caso a concubinagem, estará desistindo de si mesma e de seus sonhos. Ao contrário, o que a personagem deseja é a “liberdade”, materializada na passagem “quero ser livre, Oliveira! Dispor de mim”.
Entendemos que a trajetória de Leniza é importante na representação da personagem feminina na tradição brasileira no que se refere a um questionamento à submissão da figura feminina em termos históricos no Brasil. Sua trajetória no romance, no entanto, reflete a marginalidade da mulher nessa sociedade, aspecto materializado na narrativa pela forma com que a personagem é penalizada pelas escolhas que faz ao longo da diegese. Em outros termos: ao escolher a liberdade Leniza deve aceitar as consequências impostas pela narrativa, entre elas, o sofrimento financeiro, a humilhação e, em alguns casos, as cenas que beiram a prostituição em uma utilização consciente do próprio corpo como moeda de troca.
Podemos dizer que o título do romance A estrela sobe é irônico e a trajetória da personagem e sua atitude contestadora indica uma não adesão do narrador ao percurso escolhido pela personagem, o que configura um traço irônico no interior da narrativa. A ironia está na apresentação de um percurso narrativo de ascensão de Leniza; mas que tem como focalização a queda e a punição da personagem. Temos, então, um narrador onisciente que, paradoxalmente, apresenta um percurso de esperança à personagem; mas demonstra ao leitor o preço que as opções da personagem geram em sua trajetória individual.
A ironia do narrador não permite que a liberdade almejada Leniza signifique tranquilidade e harmonia, o que entra em consonância com a linha paternalista presente na sociedade brasileira, em linhas mais gerais. Exemplos deste percurso irônico na narrativa de Marques Rebelo é apresentado na focalização das demais personagens femininas que compõe a trama de A estrela sobe. A focalização de vedetes de rádio novela, cantoras e mulheres da noite que, naquele período, tentavam romper as regras impostas pela sociedade e acabam vivendo de aparências ao passar de mão e mão, como Nair e Dulce, e, posteriormente, Leniza são metonímias de uma trajetória de decadência para mulheres que ousam deixar a proteção paternalista.
Descritas como mulheres vulgares, até mesmo na fala de Dona Antônia, Nair e Dulce são exemplos de comportamentos “perigosos” associados à trajetória feminina:
 
– Seiscentos bagarotes, me disseram. Que mina heim!… Não queres saber mais de outra vida, não é? (e pensava: esta aí está na vida)
Mas Leniza pediu desculpas, ia entrar, estava muito cansada do ensaio, (Dona Antônia comentava o tal “cansaço do ensaio” ao seu modo: – que vaquinha! Também nunca se enganara com ela… Era só ver aquela cara…) Depois, com calma, vira contar tudo. Era o que Dona Antônia pedia, exigia: tudo! Queria saber tudo! Diziam que este negócio de rádio, lá dentro é uma pouca vergonha, uma grossa bandalheira. Nunca acreditara, nunca! Só acreditava no que via. Levantava piedosamente os olhos para o céu: Deus é testemunha. Agora tinha a prova. Ela que era uma menina direita (carregava no “direita”), não se iria meter lá dentro se fosse como diziam.
– Falam muito, Dona Antônia – (Que bandida! Era de se escarrar na cara!) (REBELO, 2001, p. 56).
 
Percebemos o tom de preconceito quanto à profissão de cantora de rádio “que vaquinha”. O narrador, através de sua onisciência, se mostra preconceituoso ao induzir o leitor a criticar o comportamento das mulheres que cantavam no rádio no que descreve como um espaço de “bandalheira”.
A busca individual por liberdade de Leniza esbarra, então, na representação que a sociedade faz de sua condição de órfão e pobre em um espaço de trabalho que tende à promiscuidade. Ao invés de reforçar a liberdade individual da personagem, o narrador parece compactuar com a descrição de decadência moral associada a sua profissão, o que acabará por destruir Leniza, nas palavras do narrador, “antes era uma menina direita” (REBELO, 2001, p. 56).
A trajetória de Leniza representa a de muitas mulheres trabalhadoras do início do século XX que eram e, ainda hoje, são tratadas com inferioridade e à mercê de alguns homens inescrupulosos. Na fábrica de balas, por exemplo, Leniza é assediada pelo responsável da “seção, a antipatia em pessoa, era um rapaz de costeletas e bigodinho caprichado, ‘O Irresistível’. Só admitia uma maneira de justiça: fossem gostoso com ele. Moça nova que entrasse tinha que se submeter aos seus ataques de ternura” (REBELO, 2001, p. 14). No laboratório de especialidades farmacêuticas, segundo emprego da personagem, as funcionárias eram obrigadas a “servirem de cobaias para as novas fórmulas de seus depurativos e fortificantes” (REBELO, 2001, p. 14).
Como forma de fugir a este espaço agressivo, Leniza vale-se de suas qualidades: a inteligência e a beleza. A personagem vale-se de sua condição de mulher inteligente e bonita para ascender socialmente; mas também para sobreviver em um contexto de precariedades sociais. Fica implícita a intenção machista e preconceituosa do narrador, mas ao descrever a trajetória da personagem o foco narrativo apresenta uma forma inusitada de representação da figura feminina na literatura brasileira ao tangenciar a submissão da personagem e evidenciar as consequências desta opção na trajetória da personagem.
Leniza, nesse sentido, foge à submissão e torna-se algo distinto do que se espera da figura feminina na primeira metade do século XX, ou seja, a esposa correta e dedicada, aparentemente feliz, de acordo com padrões sociais vigentes no período. Esta trajetória parece encontrar em Dona Manuela, mãe de Leniza, que “aprendeu a ler, a escrever, a contar, trabalhos de agulha, trabalhos domésticos” (REBELO, 2001, p.11) um paradigma irônico, pois o que ela consegue é revelar-se “uma extraordinária cozinheira”.
A trajetória de Leniza é, por isso, um caminho possível: optar pela individualidade e liberdade em suas ações. Esta opção, porém, traz, metonimicamente, o sofrimento e as dificuldades enfrentadas pela mulher no início do século XX.
 
LENIZA: “ESTRELA QUE CAI”
Ao iniciar a obra descrevendo Dona Manuela como “mestiça disfarçada” que ficou órfã aos seis anos de idade e fora criada por um coletor federal para, por fim, ser transformada numa “excelente cozinheira”; o narrador deixa uma pista de sua linha de representação irônica diante da trajetória da personagem Leniza. Esta observação é ampliada pela forma com que o narrador apresenta o lugar que pobres e mestiços, principalmente mulheres, ocupam nas primeiras décadas do século XX na sociedade:
 
Viúva, sem filhos, que alugava cômodos. A casa ficava numa ladeira da Saúde. Estreita, iluminada a gás, um lampião aqui, outro lá em cima, a ladeira era iluminada à antiga, com grandes pedras desiguais, que um capim raquítico parecia separar. Quando chovia um pouco mais, transformava-se numa cascata, que impossibilitava o acesso. Não tinha saída. Terminava junto ao corte a prumo da pedreira. A casa era exatamente a última do lado direito, quase colada à pedra, velha, maltratada, um forno! Comprimiam-se as três no quarto da comadre, porque os outros estavam alugados (REBELO, 2001, p. 11).
 
 
Neste excerto, percebemos que o narrador faz questão de apresentar detalhes da pobreza do lugar em que as personagens viviam. Leniza, Dona Manuela, a comadre, o porteiro, Seu Alberto e os outros hóspedes da pensão eram agrupados como animais em um espaço de precariedades. Mais adiante, ao apresentar a costureira Judite, outra moradora do bairro, como uma mulher que se deu mal na vida. Judite evidencia as consequências de transgredir as regras sociais, dando mostras dos perigos que rondam as mulheres em seu enredo, metonimicamente, na sociedade: “Judite, uma vizinha que fora desencaminhada com promessas de casamento (…)” (REBELO, 2001, p. 15).
Outro detalhe em relação a ironia do narrador é o preconceito com que apresenta as personagens. O percurso estilístico é alinhar características físicas a profissão e cor de pele dos personagens. Por exemplo: “A enfermeira – uma mulatinha magra, simpática, mas de guarda pó impecavelmente limpo (…)” (REBELO, 2001, p.52). A primeira vez que o Julinho, pianista da rádio, é citado na obra é chamado de “mulatinho do piano” (REBELO, 2001, p. 53). Em outro trecho, o narrador faz questão de colocar “o mulatinho mostrou a dentadura – dente sim, dente não” (REBELO, 2001, p. 60). Estes detalhes “guarda pó impecavelmente limpo”, “tocador de piano”, “dente sim, dente não”, entre outros evidenciam um narrador preconceituoso que também direciona o olhar face às inovações sociais das primeiras décadas do século XX a uma hierarquização social de origem étnica de difícil solução, mesmo nos dias atuais.
Fica implícito que apesar de os personagens adquirirem certa cultura e aprenderem a ler, escrever, “tocar piano” e “cantar”, o que determina sua trajetória social não são suas qualidades intelectuais, antes o lugar em que se encontram na estratificação social. No caso da figura feminina, este espaço parece ter uma possibilidade de alteração em linha positiva, qual seja, a adesão a uma proteção social, ou seja, encontrar um homem que fosse responsável por ela; no caso de Dona Manuela, mãe de Leniza, o coletor federal e o marido morto:
 
A filha tinha, então, seis anos, e a família do coletor federal aceitou-a para criar, Aprendeu a ler, a escrever, a contar, trabalhos de agulha, trabalhos domésticos. Revelou-se uma extraordinária cozinheira. Quando o advogado de maior prestígio na cidade foi eleito deputado federal e transferiu-se para o Rio com a família, o coletor, por chaleiramento, fez questão que a trouxessem como cozinheira (REBELO, 2001, p. 11).
 
Fica implícito pelo encadeamento narrativo que a trajetória de Leniza e sua mãe é determinada pela morte do patriarca ainda na infância da menina. A primeira, Dona Manuela, aceita seu destino de viúva pobre, enquanto Leniza parece lutar contra esta trajetória. Para sobreviver, Dona Manuela tem que lavar roupas para os hóspedes. Esta situação de empregada dos hóspedes, todos homens, mostra o nível de relacionamento entre homem e mulher na narrativa. A convivência com os hóspedes na juventude da menina Leniza é um dos índices da rebeldia da personagem, mais uma vez, denunciando o tom pejorativo na focalização do romance, pois para o narrador, esta visão “impura do mundo” é provocada pelo contato com o cortiço, o que determina, prematuramente, “rasgaram-se (…) muitos dos mistérios da vida” (REBELO, 2001, p.12).
A personagem perde a ingenuidade da donzela frágil e indefesa aos moldes de Aurélia e Cecília e começa a descobrir os perigos e os prazeres de ser mulher e viver próxima de muitos homens, pois “via-os constantemente nus, nos quartos de portas abertas, de propósito ou não, no chuveiro e latrina comuns; ouvia as suas conversas livres, seus ditos pesados, suas anedotas bocagianas” (REBELO, 2001, p.12).
O aspecto irônico, nesse percurso, é mostrar que a saída mais tranquila para Leniza é permanecer na submissão e aceitar a corte de Oliveira. Ao focalizar uma personagem em busca de novos paradigmas como é o caso de Leniza e evidenciar, nas entrelinhas, as regras da sociedade, o narrador apresenta a vida miserável de mulheres abandonadas como, por exemplo, o caso da comadre, que após a morte do marido fica sozinha, esquecida por todos.
Esta mesma projeção negativa é feita à Leniza e sua mãe, o que, em parte, parece justificar a trajetória da protagonista do romance. O resultado, no entanto, é apresentado, metonimicamente, na decadência de Nair e Dulce, espécie de antecipação da trajetória lacônica de Leniza ao final da narrativa:
 
Não a abandonei, mas, como romancista perdi-a. Fico, porém, quantas vezes, pensando nessa pobre alma tão fraca e miserável quanto a minha. Tremo: que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do céu uma luz que ilumine o outro lado de suas vaidades (REBELO, 2001, p. 115)?
 
Notemos que, no final deste romance, o narrador não explicita o desfecho para Leniza e, com isso, deixa implícita sua visão negativa diante da personagem que, para salvar-se, deve aceitar uma luz vinda do céu “que ilumine o outro lado de suas vaidades”.
O romance apresenta algumas inovações formais que alinham o romance ao espírito inovador do Modernismo. Uma destas inovações é a focalização em cortes espaciais e digressões temporais que interrompem o fluir da leitura, criando lacunas no enredo. As interrupções criam espaços vazios no relato, fragmentando o enredo e abrindo caminhos para as inferências metonímicas como a inevitável decadência da personagem ao final da narrativa.
Um exemplo deste processo é o momento em que Leniza discute com Oliveira pondo fim ao estranho relacionamento entre os personagens. O corte temporal é apresentado como cisão da ingenuidade de Leniza que, sem nenhuma explicação por parte do narrador, no próximo parágrafo, aparece na cama com Mário e “vende” sua virgindade em troca da indicação de um “lugar” como cantora:
 
Não há luz, nem estrelas no retângulo negro da janela. A luz do abajur põe o quarto numa penumbra vermelha, reles e suspeita. O elevador sobe, desce, desce, sobe… Vem o quebrar das ondas fracas contra o cais, vem o chiado das ondas vencidas, fugindo por entre as pedras. Vem o vento do mar que balança, leve, as cortinas, que arrepia, leve, os corpus nus suando. Vem a dor do amor que leva Leniza da terra para o céu, numa vertigem (REBELO, 2001, p. 70 – 71).
 
 
Com a descrição eufêmica do “elevador que sobe e desce” e a “dor do amor que leva Leniza da terra para o céu”, o narrador quebra o último fio que liga Leniza à ingenuidade. O prolongamento é, ao mesmo tempo, a fama e a liberdade e, posteriormente, a dor e o sofrimento. Temos a sensação de que o narrador quer mostrar que ela escolheu o caminho difícil ao invés de ficar com o mais “fácil” , aproximar-se de Oliveira e ser sustentada por ele na condição de amasia.
Ao fugir à trajetória de sua mãe e buscar a “liberdade”, Leniza delimita sua trajetória de decadência, algo já previsto pela condição de órfã e de difícil solução na construção da personagem. Marques Rebelo ao focalizar a presença da mulher no mercado de trabalho, a chegada do rádio, a industrialização e a movimentação das pessoas nas ruas apresenta o contraste entre a pobreza e a riqueza ao focalizar, segundo Bernd (2011), trajetórias narrativas dos que eram excluídos e formam a diversidade social brasileira ao serem objetos de focalização em muitos dos romances do século XX.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo apresentamos aspectos da construção da personagem Leniza no romance A estrela sobe, de Marques Rebelo. Nossa reflexão considerou a importância de autores como Rebelo na renovação temática em nossa ficção literária. Ao confrontarmos a personagem feminina de Marques Rebelo com outras personagens femininas na tradição literária brasileira percebemos que a submissão da mulher perante a figura masculina permanece de forma irônica no romance, o que, para nós, é o legado do romance.
Entendemos, por isso, que a ironia do romance é aspecto estrutural da narrativa ao revelar que, mesmo em personagens femininas que tentam enfrentar o mundo como Leniza, a trajetória libertadora a ser construída implica em sofrimento e dificuldades. Como reflexão final deste estudo, esperamos contribuir para o avanço da fortuna crítica de Marques Rebelo e evidenciar, sobretudo, a qualidade estética de sua produção, aspecto entendido como relevante no estudo de sua obra.
 
REFERÊNCIAS
 
ALENCAR. J.  de. O Guarani. São Paulo: Ática. 1998.
ALENCAR. J. de. Senhora. XXXSanta Catarina. Avenida Gráfica e Editora, 2005
ASSIS, J. M. Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Nova Cultural, 1995.
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