DANILO SILVA PAES LANDIM
UNICAMP
RESUMO: O presente ensaio procura articular as configurações familiares encontradas no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector (1961), a uma reflexão sobre a representação feminina. Mesmo em meio a uma série de paradoxos visíveis nas personagens principais, é possível ver certa diferença de valores que as separam. A oposição entre o eixo exogâmico identificável no engenheiro Martim e o eixo incerto e pouco delimitado das primas Vitória e Ermelinda será colorida da seguinte forma: Martim seria representante de valores estabelecidos na cultura, e também, possivelmente, de um pensamento pretensamente universalista e neutro – figuração tradicionalmente masculina –, e o núcleo das primas seria um possível contraponto, que convida a pensar sobre a especificidade da representação feminina de fecundo potencial crítico em relação a qualquer universalismo.
PALAVRAS-CHAVE: estudos claricianos, representação feminina, família, A maçã no escuro.
ABSTRACT: This essay aims at articulating the family configurations found in the novel The Apple in the dark by Clarice Lispector (A maçã no escuro, 1961), to a reflection about the female representation. Even among a series of visible paradoxes in the main characters, it is possible to figure out certain value differences that separate them. The opposition between the identifiable exogamic axis in the engineer Martim and the uncertain and not so well delimited axis of the cousins Vitória and Ermelinda will be colored in the following way: Martim would be representative of the given values of the culture, and he would also be representative of a supposedly universalist and neutral thinking – traditionally male figuration –, and the cousins nucleus would be a possible counterweight that invites to think on the female representation’s specificity which brings great critical potential in relation to any universalism.
KEYWORDS: Clarice Lispector studies, female representation, family, The apple in the dark.
MINICURRÍCULO: Mestrando em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP desde 2015. Graduado em Letras (Português / Francês) pela USP em 2012, tem experiência em Literaturas Estrangeiras Modernas, tendo trabalhado, em sua iniciação científica, com o romance Malone morre, de Samuel Beckett. Atualmente se interessa por questões ligadas à imaginação, à hermenêutica crítica e ao feminino na literatura. Estuda o romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector, sob esses vieses.
REPRESENTAÇÃO FEMININA SOB O ÂNGULO DE MODELOS
DE FAMÍLIA EM A MAÇÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR
DANILO SILVA PAES LANDIM
UNICAMP
Introdução
Apesar das relações familiares não ocuparem lugar central no romance A maçã no escuro (1961)1, de Clarice Lispector, podemos concebê-las como pano de fundo da paisagem mais visível da obra. As dinâmicas familiares inscritas no enredo são, como se verá na análise aqui presente, reforçadoras de problematizações e de elementos que a crítica já pôde depreender da obra, além de revelarem outras problematizações mais ligadas à situação das mulheres. A partir da consideração das formações familiares e de suas reverberações na narrativa, tentaremos articular elementos já estudados como constitutivos do romance – alguns dos quais são a obsessão por apreender instantes fugazes, as dimensões ocultas e inquietantes de situações aparentemente banais, além das percepções de um estágio humano anterior ao pensamento organizado, racional e universalista – com outros elementos que identifico como associados à situação da mulher. Pretendo aqui mostrar, incorporando alguns dos temas já explorados pela crítica, que há dois polos familiares que se põem em atuação na obra e que, ao se encontrarem, provocam choques mútuos e propiciam mudanças no modo de ser das personagens principais – e que convocam a reflexão sobre a subjetividade feminina e a representação feminil.
Para facilitar a compreensão das características desses dois ramos familiares colocados no romance, faremos uma breve explanação do enredo: o engenheiro Martim foge após supostamente ter cometido um crime – ele teria matado a mulher. Ele dorme num hotel, mas o medo de ser flagrado o afasta daquele lugar. Perambula e divaga em contato com a natureza, e o tempo todo também foge da própria ideia de crime. Seu ato criminoso e que ele dificilmente reconhece como tal provoca uma busca por autoconhecimento, que parece ocorrer justamente por ele ter rompido com as normas sociais e ter se distanciado das alteridades que dificultariam a tarefa de encontrar o que em si não é um outro. Assim, independente de normas, ele procura encontrar sua própria inteireza. A busca tem acidentes e perdas à medida que vai tendo contato com pessoas e vendo seus traços se confirmarem ou se invalidarem, agonicamente. As primeiras pessoas que ele encontra estão numa fazenda, onde ele procura trabalho. A dona da fazenda se chama Vitória, e junto dela mora a prima Ermelinda. Como resume bem a filósofa Gilda de Mello e Souza:
A chegada de Martim perturba o isolamento em que as mulheres vivem e, aos poucos, o ritmo pacato da vida de Vitória e Ermelinda se modifica – a presença inquietante do homem pondo em relevo os problemas pessoais de cada uma. Levado pelo instinto, Martim uma tarde acaba possuindo a mulata e, logo mais, cedendo ao cerco de Ermelinda, torna-se seu amante. Para Vitória, também apaixonada pelo estranho, o amor se revela sob a forma de tortura, tortura que impõe a Martim através de tarefas cada vez mais duras, e a si, pela renúncia2 (SOUZA, 1964, p. 86-87).
Vitória e Ermelinda são primas, e em alguns momentos Martim suspeita que as duas sabem que ele está envolvido num crime. Efetivamente, apenas Vitória sabe do crime, e seu amor torturante por Martim a leva a hesitar entre deixar as coisas como estavam ou denunciá-lo à polícia. Como tinha uma rigidez moral que a impedia de admitir até para si mesma o amor que tinha pelo engenheiro, resolveu denunciá-lo e o romance termina com a prisão de Martim.
Exogamia e endogamia
Como esboçamos há pouco, inscrevem-se nas relações postas no romance A maçã no escuro dois núcleos familiares em conexão um com o outro. A antropologia estrutural lévi-straussiana pode ser levada em conta aqui para contrapor esses núcleos familiares, num esforço que poderíamos empreender no sentido de concebê-los como estruturas, em que pese o fato de estarmos lidando com uma realidade ficcional. Assim, apenas com um intuito meramente sugestivo para alargar a compreensão do romance, gostaria de propor a seguinte divisão nesses grupos familiares: há, primeiramente, o grupo representado pelas primas Vitória e Ermelinda – que vive um certo isolamento, e apresenta virtualmente uma tendência à sua própria destituição, já que elas não têm filhos que as possam suceder. Desse modo, apesar de ser fruto de relações exogâmicas, as primas não criam vínculos exogâmicos favoráveis à formação de subnúcleos familiares. O outro grupo, representado por Martim, sua mulher e seu filho, tem um destino claramente exogâmico. Já no primeiro contato entre esses dois núcleos, do qual emerge alguma tensão, percebe-se a tentativa por parte de Vitória de marcar seu poder para não sucumbir, poderíamos interpretar, ao possível triunfo da exogamia representada pelo histórico familiar de Martim. Há a desconfiança natural de um primeiro contato, evidentemente, mas também vemos certa hostilidade que persiste não só no diálogo entre os dois e o empregado Francisco, mas também ao longo da relação entre eles na narrativa:
– O que é que o senhor deseja. (…) / – Eu estava olhando, respondeu sem pudor. (…) / – Disso eu sei, disse a mulher do alpendre. (…) / – Ele estava com sede, é o que diz, falou o homem atrás de Martim (…) / – Já bebi, disse este com alguma candura (…) / – Que o senhor bebeu eu também sei. / – Bem, disse então Martim virando-se sem pressa, adeus (LISPECTOR, 1992, p. 56).3
Os valores atribuídos a essas personagens – maior sociabilidade na figura de Martim, e a rispidez na figura de Vitória – podem ser vistos como reflexos do valor sociocultural imputado aos diferentes tipos de família. Com base nas análises da antropologia estrutural expostas sobretudo nas Estruturas elementares do parentesco (1949), de Lévi-Strauss4, podemos depreender que o paradigma da família exogâmica é hegemônico e efetivamente propulsiona o arranjo de novas famílias, pela famosa tese da “troca de mulheres” entre diferentes clãs e formações familiares. Tendo sido esse o modelo responsável pela perpetuação da espécie humana em proporções abundantes, em contraposição ao modelo endogâmico, cuja expansão ocorre no interior de um mesmo clã ou unidade familiar e é mais limitada pelo número menor de parcerias sexuais propiciadoras de reprodução possíveis (de acordo com os estudos de Lévi-Strauss, há restrições à formação de parcerias sexuais mesmo para os sistemas endogâmicos), então podemos efetuar uma contraposição de valores entre esses dois modelos familiares. O valor positivo atribuído à exogamia vem de seu poder normativo coercitivo e pela adesão social em larga escala desse modelo; da mesma forma, igualmente entendemos que o modelo reverso, o endogâmico, é a contraparte negativa da exogamia por não promover em proporções tão elevadas a expansão do número de ramificações humanas, e também por ser culturalmente interdito como uma possibilidade abjeta da existência humana, que deve ser evitada a qualquer custo. O costume condena ao ostracismo aqueles que ousam se aventurar por esse caminho, inibindo o incesto.
Desdobramentos da contraposição de modelos familiares
Em consequência dessa contraposição, dentro da qual reconhecemos certo maniqueísmo que logo será desmontado ou visto por um outro ângulo, identificamos em Martim uma positividade, e nas duas primas uma negatividade, ainda que incorramos numa validação pura e simples de valores muito arraigados da cultura, que se confirmam, se reiteram e se promovem justamente pelo tabu às formações familiares endogâmicas ou sem destino claramente exogâmico – basta ver como a cultura valora negativamente mães solteiras ou mesmo mulheres que não pretendem ter filhos. De todo modo, Martim faz parte de uma configuração familiar atrelada a valores normativos e socialmente esperados nos costumes, por ser casado e ter um filho, ao passo que o espaço da fazenda de Vitória e de sua prima agregada Ermelinda pode ser concebido como o continente residual do esfacelamento das unidades familiares em que as duas personagens encontravam amparo em seu passado e com as quais, num certo momento, as duas romperam (Ermelinda talvez parcialmente o tenha feito, por ainda, como veremos, repetir um modo de ser que era seu paradigma existencial com a unidade familiar com a qual vivia em seu passado).
O trabalhador ali instalado, Francisco, tendo feito sua aparição inicial nos trechos do diálogo que descrevemos a propósito da entrada de Martim na fazenda, é um potencial agente para a formação de uma nova configuração familiar – exogâmica – naquele ambiente, mas em nenhum momento se coloca como pretendente das duas personagens femininas – e a recíproca é igualmente verdadeira (ou o olhar do narrador está tão ancorado no impacto da chegada de Martim à fazenda e nas reverberações que ele produz na existência das primas que a existência de Francisco é quase invisibilizada).
Vitória está nos seus cinquenta anos e é solteira. Por meio de Martim, nos momentos finais da narrativa, ela revê seu passado e percebe em sua própria história uma lacuna de relacionamentos românticos. É na conversa que ela tem com ele que ela se dá conta de que teria amado muito pouco ou teria deixado de lado a possibilidade de ser amada. Ela se recorda, na ocasião dessa descoberta, de uma história que poderia ter sido de amor, mas que não ocorreu concretamente, e tal lembrança serve de escudo para se proteger do constrangimento decorrente da percepção dessa falta de vínculos românticos em sua história, já que ela queria se desembaraçar da sugestão dada por Martim de que ela deveria encontrar um amor. A lembrança de Vitória consistia na visão que ela teve, quando jovem, de um rapaz armando uma fogueira e que demonstrou alguma inclinação em relação a ela, mas a história se interrompe aí e nada mais acontece. Apenas o “não-amor” acontece:
– Era a primeira vez que eu pisava neste sítio, e nunca pensei que ele terminaria sendo meu, continuou ela insistindo na nota da coincidência. Eu estava de férias e vi um rapaz acendendo uma fogueira no descampado. Fiquei de pé olhando, tinha um menino olhando também! exclamou garantindo a veracidade do fato, esse menino até já morreu, disse rouca. Vi o rapaz acendendo a fogueira, a poeira quente das folhas voava, esquentava – esquentava uma pessoa. (…) E eu… estava ali – eu, muito moça, muito linda, louca oh louca que eu era e ninguém sabia (…) eu era tão idealista! Eu estava de pé, assim mesmo, e eu – eu amava esse rapaz, eu amava esse rapaz e amava essa fogueira que ele acendia. Ele não disse uma só palavra! uma só palavra.
(…)
– E foi esse então o seu amor? – perguntou Martim com uma delicadeza de que ela não o julgara capaz.
– É, disse um pouco decepcionada, enxugando o suor. Esse também foi o meu amor.
– Durou tanto quanto a fogueira, disse Martim (…) ele não sabia como poupá-la de encarar a pobreza de sua história de amor (LISPECTOR, 1992, p. 268-269).5
Assim como os detalhes que ela traz para a sua história empobrecida de fatos e de transformações pessoais reforçam o vazio de sua existência, ela também se refere a outros momentos de sua vida enfatizando impressões dos espaços pelos quais ela circulou, dos objetos que ela viu, das sensações que ela teve e a menção que ela faz a pessoas é sempre circunstancial. É como se as alusões que ela fizesse não trouxessem uma dimensão realmente vital de sua subjetividade, o que acaba por enfraquecer o efeito perlocutório que seu discurso poderia surtir em seu interlocutor Martim – ou é esse o máximo de convencimento que ela consegue alcançar, é o máximo que sua posição de sujeito pode atingir, por conta da rarefação de relações sociais em sua história: é como se os objetos que tivesse visto fossem o cenário principal de sua vida, e as pessoas fossem secundárias, relegadas a segundo plano. Esse isolamento social pode tê-la impedido de aprender a selecionar os fatos que pragmaticamente são esperados nas comunicações correntes. É com essa disposição e essa comunicação fora dos esquemas convencionais e que não a promovem perante os outros que ela menciona a visita de alguns parentes ao Rio de Janeiro, onde ela morava antes de se instalar na fazenda. Ao tentar narrar essa experiência, também vemos um esvaziamento de sentido e uma saturação sensorial que ela julga importante trazer à baila, mas que é constrangedor e incompreensível ao homem, como vemos a seguir:
– Mas nesse tempo, continuou a mulher com o rosto de repente clareado pelo prazer e pelo inesperado acesso a um ideal inatingível, nesse tempo vinham em pratos enormes as costeletas de porco cheias de gordura, e quando eu saía do restaurante, via que as frutas nas quitandas se esborrachavam e então… (…) Não sei, disse enxugando penosamente o suor, mas era como se eu visse que as coisas são muito mais que a casca seca, o senhor por acaso me entende? Era como se eu visse que, se antes sentira nojo, era porque já então eu sabia que o perigo estava sob a secura (…) era horrivelmente maduro, sabe como é? E eu me sentia tão cansada como se fosse adoecer.
(…)
A mulher via que ele não entendia (LISPECTOR, 1992, p. 263).6
É com relutância, aliás, que ela admite o vazio de histórias amorosas e com mais dificuldade ainda admite a interpretação de Martim segundo a qual ela é medrosa. Vitória, apesar de muito resistente à interpretação sugerida por Martim e reiterada pelo narrador, dá alguns sinais de que seu movimento existencial mais espontâneo não consistia em tal isolamento, selado no deslocamento que ela realizou de uma grande cidade como o Rio para ir se instalar numa fazenda em meio a um descampado. Ao ser questionada a respeito das motivações que a levaram a se instalar na fazenda, ela responde (depois muitas idas e vindas em seu raciocínio difícil): “Fui eu mesma que quis vir para cá. Sei, sei que foi um erro, não precisa dizer.” Logo depois, ela diz:
Suponho […] que eu imaginava poder encontrar na fazenda aquilo tudo [aqui ela menciona aquelas frutas e comidas gordurosas já aludidas e que talvez tenham dado a ela, por contraste imagético, a ideia de que vivia sob certa superficialidade, pouco amadurecida pessoalmente] Mas depois […] me confundi um pouco” (LISPECTOR, 1992, p. 262).7
Como diz o narrador, ela escolheu corajosamente seguir pelo caminho do medo. Poderíamos explicar que essa coragem um tanto estranhamente colocada – já que se inverte a convenção semântica que opõe coragem ao medo – tem sua razão de ser no fato de que ela está associada ao fato de que, ao ter uma coragem ancorada no medo, assume-se um risco que também é pressuposto nos atos corajosos convencionalmente reconhecidos como tais, com sua positividade facilmente identificável. Escolher ter medo seria, do ponto de vista do narrador, um ato igualmente corajoso – ainda que polêmico: é um autossacrifício, uma martirização, é a aniquilação do sujeito, o apagamento pessoal, o esvaziamento de si. O título do romance nos sinaliza a centralidade desse gesto de aniquilação do desejo para a narrativa em si, no sentido de que o fruto proibido edênico seria a encarnação da inibição do desejo transferida para as personagens femininas encerradas em seu isolamento existencial.
A situação de Ermelinda guarda algumas semelhanças com a da prima Vitória. Encontramos igualmente um vácuo no âmbito de suas relações sociais, e seu ingresso na fazenda em certa medida agrava seu isolamento, embora outros indícios apontem para uma maior sociabilidade de Ermelinda em comparação com Vitória. A narrativa também não se detém muito nos detalhes do passado de Ermelinda, mas colhe-se a informação de que ela tinha sido casada antes de ir à fazenda de Vitória. Podemos pressupor, com algum risco por estarmos nos baseando puramente nas omissões da narrativa, que ela não exercia atividades remuneradas, e também possuía poucos vínculos sociais – ainda que mais convencionalmente moldados do que os de Vitória. Assim, mesmo num cenário que a coloca num “destino exogâmico”, com uma sociabilidade maior, vemos uma negatividade e o vazio na ausência de projetos e na subordinação a uma relação conjugal que não a emancipa como sujeito. No capítulo inicial da segunda parte do livro (“Nascimento do herói”), momento em que Martim passa a se sentir seduzido por Ermelinda depois de tantas investidas por parte dela – abandonando o silêncio que até então ele vinha fazendo em relação à aproximação da moça –, ele faz um comentário que contribui para a caracterização do isolamento de Ermelinda: depois dela ter sugerido que ele a julgava “doida”, ele nega tê-la visto dessa forma, dizendo: “você não é doida. É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta (…)” (LISPECTOR, 1992, p. 120).8
Convém considerar a figura de Ermelinda e a de outras personagens femininas de A maçã no escuro sob o arcabouço conceitual apresentado por Simone de Beauvoir em O segundo sexo9: algumas ideias da filósofa se amalgamam com as formulações tecidas sobre os gêneros no romance. Explico: para não ameaçar o protagonismo masculino na vida pública, Ermelinda, respeitando sua condição de mulher casada, evita sair do seu confinamento doméstico e acredita estar sendo beneficiada por esse modelo de vida – de fato, há benefícios no sentido dela ter garantida sua sobrevivência material, mas eles são proporcionados às expensas do marido e por meio da renúncia a uma atuação na esfera pública. Findo o casamento por conta do falecimento do esposo, Ermelinda, desamparada financeiramente para prover seu próprio sustento, aceita viver como agregada na fazenda de Vitória, e sua dependência em relação a outrem perdura – sua condição objetal perdura: ela parece ter dificuldade para fazer luto de sua antiga condição de casada, e isso a encerra numa condição de contínua subalternidade tanto em relação aos próprios desejos, quanto em relação à Vitória – replicando assim o esquema de sua vida de casada precedente, dentro do qual ela se acomoda e assegura uma existência de poucos desejos possíveis, pois não implica uma nova ordem que exigiria dela o trabalho de romper gradativamente com os laços de sua existência objetal do passado. De certa forma, Vitória se beneficia, como o antigo marido de Ermelinda, dessa assimetria de poderes: portando-se ativa e agressivamente, para iludir-se com a posse de um poder que, pelos elementos elencados há pouco, podem ser apenas encobridores de seu próprio vazio, reina em sua propriedade e autoritariamente manda e desmanda em todos os que a cercam na fazenda, e ela tem essa conduta também em relação à Ermelinda. Ou seja, é uma relação de senhora e escrava, que é equilibrada pela aparente força de Vitória e a aparente fragilidade de Ermelinda, se concebermos as duas como integrantes de um sistema familiar, em que as deficiências de um membro asseguram a estabilidade e o equilíbrio de todo o conjunto familiar, seguindo um certo modo de conceber as dinâmicas familiares.10
Também uma articulação possível que se pode fazer sobre as personagens femininas e “a situação existencial” das mulheres destrinchada pela filosofia beauvoiriana se vislumbra nas alusões que se faz, no romance, à figura feminina a partir do olhar masculino: a mulher é, sob esse ponto de vista, a outra que confirma o homem. Já se pode perceber esse olhar nos pensamentos que são expostos na ocasião do contato que Martim tem com a “mulata”, ao final da primeira parte primeira parte do livro – pouco antes dele ter se interessado por Ermelinda –, cujo título, “Como se faz um homem”, anuncia uma espécie de explicação generalizante da constituição da subjetividade masculina. Nesse sentido, as percepções e impressões que Martim vinha recebendo e elaborando a partir da tentativa de recusar o expediente da linguagem verbal e os códigos de uma lógica convencional – e, paradoxalmente, expressas verbalmente pelo narrador – pareciam indicar a mulher como a alteridade que confirma o homem:
“(Ele) pareceu entender para que nascem mulheres quando uma pessoa é um homem. (…) Como se seu corpo por si mesmo não bastasse. Era o desejo, sim, ele bem se lembrou. Lembrou-se de que mulher é mais que o amigo de um homem, mulher era o próprio corpo do homem. Com um sorriso um pouco doloroso, acariciou então o couro feminino da vaca e olhou em torno: o mundo era masculino e feminino” (LISPECTOR, 1992, p. 102).
Essa ideia de uma entidade que confirma a subjetividade masculina será desdobrada nas seções seguintes, que vai tentar delinear linhas de força recorrentes no romance e que parecem apresentar uma ideia sobre os gêneros a partir da ideia do fruto proibido edênico.
O fruto proibido como chave interpretativa
Entendemos que a chegada de Martim à fazenda desestabiliza o quadro de poderes ali colocados. Há uma saturação simbólica no romance que autoriza leituras muito diversificadas e talvez até antagônicas, e, portanto, nosso ângulo de observação e análise das relações em jogo no romance será uma escolha entre muitas possíveis. De todo modo, nossa leitura é encorajada pela temática do pecado original que o romance convoca, já no título. Acreditamos produtiva a consideração a algumas significações do fruto proibido edênico, da tradição judaico-cristã, sobretudo nos desdobramentos da expulsão das criaturas humanas do paraíso. Essa é uma das várias formas claricianas de retorno a uma verdade original, anterior à constituição do sujeito, tão bem delineada no texto “Menino a bico de pena”11.
Vejamos então como o retorno à tal verdade transcendental poderia estar organizado em A maçã no escuro. Uma vez que a desobediência que acarretou a interdição ao paraíso afastou os seres humanos da divindade una, da fusão harmônica com um mundo ao qual, após nos separarmos dele, apenas podemos fazer referência pela mediação da linguagem e não pelo acesso direto aos fenômenos e aos referentes, instaura-se uma falta fundamental nos sujeitos. Expulsos do paraíso, é como se tivéssemos perdido nossa inteireza viva – somos seres a quem falta algo. Temos no fruto proibido, portanto, o significante do inacessível pelo qual nossa inteireza poderia ser restituída. A propósito dessa volta, não posso deixar de mencionar uma leitura muito fecunda de Rodolfo Piskorski12, e que está resumida no artigo “O significante fálico em A maçã no escuro”, de cuja linha argumentativa faremos uso parcial para mostrar a reverberação de certas noções ligadas ao fruto proibido ao longo do texto clariciano. A partir do conceito de suplemento, de Derrida, usado para compreender o que é a significação, Piskorski entende que
(…) somente através do suplemento, que é esse elemento que sempre já é definido como secundário, instrumental e desnecessário, é possível que se construa a ideia da origem e do elemento inicial como algo completo, pleno e presente a si. O suplemento, apesar de ser o ‘mal necessário’ que ameaça substituir e desfigurar quando é chamado apenas para completar e auxiliar, é na verdade o responsável por retroativamente criar o estado originário que deveria, por definição, ser perfeito e acabado (PISKORSKI, [2012? 2013?], p. 2).
Ou seja, há um dúbio caráter no suplemento: ele nos dá acesso à imagem fiel da origem, mas o processo falha por não dar acesso direto a ela, por demandar intermediação, tornando-a cópia do original, e, portanto, infiel. Ora, Martim perambula pelo mundo tentando ancorar sua identidade em algum lugar depois de ter supostamente tentado matar sua esposa. Se pensarmos na articulação da temática do pecado original com a trama do romance, desliza-se facilmente para a noção de que Martim estaria repetindo o pecado original, para poder se reumanizar, e vive uma ilusão de plenitude ao não sentir as consequências do seu ato enquanto estava na condição de fugitivo da lei, pois só uma entidade divina estaria a salvo da lei, só ela teria essa inteireza. Ele confirma por vezes ser portador de uma verdade transcendental, que ele tenta registrar por escrito, mas não consegue – no capítulo 8 da segunda parte (“Nascimento do herói”) –, pois é tão humano como os outros e só tem acesso à realidade pela linguagem convencionalmente instituída pelos humanos para suplantar a falta de um acesso direto ao real. Mas a consequência do crime se consuma no fato da sua prisão, adiada para o desfecho da narrativa, como se houvesse, pela postergação de uma consequência inevitável da humanidade, a sugestão de que a lei é um imperativo insuperável e irrenunciável, mesmo que seus efeitos não se façam sentir de modo imediato. O fracasso que se abate sobre Martim quando ele tenta registrar a sua verdade transcendental – se é que ela existe – já prenuncia que só conseguimos expressar aquilo que é “alcançável”, só conseguimos representar os fenômenos, e jamais somos apresentados diretamente a eles. Tal queda também é possível de ser visualizada e se impõe pela emblemática tentativa de um homem aniquilar a mulher. Nesse sentido, a leitura de Piskorski a partir da noção de suplemento reforça esse dado simbólico que pode ser aproveitado para vermos como a dualidade entre masculino e feminino importa para o romance: na origem bíblica, ao homem (Adão) foi concedida a presença de uma auxiliar, a mulher (Eva). E é esse caráter auxiliar da mulher que Martim quer extirpar de seu horizonte ao tentar matar sua esposa, se aceitarmos a mesma radicalização de leitura proposta por Piskorski. Martim triunfaria, com esse assassinato, em voltar (imaginariamente, claro) a ter acesso direto, sem suplemento, ao real. A divisão sexual nos moldes do Gênesis bíblico seria um dos emblemas da falta de todos os seres humanos – nenhum gênero é capaz de alcançar, por si só, os referentes e as fontes originais de qualquer discurso.
O fruto proibido como chave de leitura do romance consegue implicar as personagens principais do romance numa lógica sistêmica que articula tanto a negatividade das limitações sociais e existenciais das duas primas – e talvez, de forma pouco profunda, da mulata – quanto a positividade atribuída a Martim. Em outras palavras, poderíamos compreender que é colocado em jogo pelo romance uma representação do vazio feminino, reforçado ainda mais pelo caráter subalterno e auxiliar da mulher no ato da criação divina e que se replica abundantemente na obra clariciana. Tal vazio se camufla sob o manto da saturação simbólica e dos paradoxos com que o feminino é figurado – a negatividade dos paradoxos podem ser a formalização do vazio de que estamos falando (as rosas da personagem Laura, do conto “A imitação da rosa”13, por exemplo, podem ser lidas como um vazio, já que fulguram uma beleza efêmera e são alvo da retórica clássica do carpe diem – “colher o dia que passa”; tal beleza atrai a personagem mas também sabemos que elas provavelmente a fazem mergulhar em depressão ou a entrar em estado de loucura; tal vazio é, ademais, patente nas duas primas de A maçã no escuro, como vimos com um pouco mais de detalhes). Ao mesmo tempo, a contraparte desse vazio é a plenitude viril ilusória encarnada por Martim, legitimada, diríamos, pela pretensa universalidade e neutralidade do homem – ao contrário da não-universalidade e não-neutralidade da mulher –, buscando alguma forma de se agarrar às coisas em si sem auxiliar, sem suplemento, sem instrumentos de mediação entre ele e o mundo, autossuficientemente.
Imaginação como desconfiança
Até o presente momento, as linhas de força que pudemos apontar de certa forma não se desviam muito de um imaginário muito comum sobre a subjetividade masculina e feminina. É como se, até agora, o romance estivesse simplesmente reforçando os valores existentes e os pensamentos prontos. Entretanto, acredito igualmente poder ver nele focos de resistência aos modelos estruturais e míticos aqui analisados: primeiramente, o fato do elemento masculino positivo estar fora das normas que ele se arroga conhecer ao expor as fragilidades comunicativas e sociais das duas mulheres já se revela como um desvio da rota que estava validando os dados já conhecidos da cultura – que atribuem ao homem a universalidade e o pensamento conceitual. Além disso, as mulheres supostamente vazias e ignorantes das regras da vida são justamente aquelas que representarão uma ameaça real a esse mesmo homem, por poderem denunciá-lo à polícia e igualá-lo na condição limitante e de sujeição antes reservada apenas ao feminino – são os dois gêneros que estão impedidos de acessar diretamente a realidade e os dois gêneros também estão sujeitos à mesma lei e sem os delírios de plenitude com que o homem antes sonhava. Martim engendra sua própria humanidade quando se vê subsumido às leis existentes e, portanto, é um ser a quem também a falta é inerente à sua condição.
O fato das mulheres poderem ser vistas como porta-vozes da crítica à pretensa universalidade do homem no romance me parece um momento importante na obra, no sentido de mostrar que, se o feminino existe, não é como simples suplemento validado pelo mito do pecado original, mas sim para se afirmar como vertente crítica do pensamento, como vertente que suspeita, que desconfia desse lugar tão seguro que fora reservado aos homens. Assim, a busca de inteireza de Martim, ancorada nos valores que já estão dados, se fragiliza diante da suspeita e da denúncia que Vitória lança sobre ele, que o conduzem à prisão tanto no plano simbólico quanto no plano literal.
Considerações finais
Um romance da dimensão de A maçã no escuro mereceria, evidentemente, mais espaço para análise, a partir de outras chaves interpretativas. No entanto, acredito que pensar num vazio que se transmuta em excesso simbólico não só nesse romance, mas nas obras claricianas de modo geral, me faz acreditar que tentar destrinchar o maior número de leituras possíveis é também cair nas armadilhas de uma retórica que sempre pende para um excesso infindável.
Ademais, um estranhamento de leitura pode ter sido causado pela completa ausência de considerações ao pai de Vitória no romance. Não ignoro que a presença dele como ser doente pode ser bastante significativa. Entretanto, também não acredito que se deva atribuir o vazio em que a personagem se encontra ao pai. O preço a se pagar, talvez, para podermos visualizar um contorno mais amplo e menos particularizado da figura de Vitória – com a potência transgressora da suspeita e da crítica – e que possa ser compreendida como momento de resistência crítica ao pensamento universalista, é ver no pai dela um detalhe que a constitui, mas que não a resume. Desse modo, ela pode adquirir o estatuto de representante feminino clariciano capaz de opor força a um conjunto de dados culturais que sempre reservam ao feminino o vazio e a mudez.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo (1949). São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. v. 1, Fatos e mitos. v. 2, A experiência vivida.
LÉVI-STRAUSS, C. Estruturas elementares do parentesco (1949). São Paulo: Vozes, 2013.
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro (1961). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
LISPECTOR, Clarice. A imitação da rosa, em Laços de família (1960). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Menino a bico de pena, em A descoberta do mundo (1984). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
MANDELBAUM, Belinda. Psicanálise da família. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. (Coleção Clínica Psicanalítica).
PISKORSKI, Rodolfo. O significante fálico em A maçã no escuro (2012? 2013?). Acesso em 10/12/15, às 20h: www.priberam.pt/DLPO/defaut.aspx/?pal=f%C3%A1lico. p. 1-10.
SOUZA, Gilda de Mello e. O vertiginoso relance (1963), em Exercícios de leitura. (Coleção O Baile das Quatro Artes). São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 79-91.
NOTAS
[1] LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
2 SOUZA, Gilda de Mello e. “O vertiginoso relance”, em Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 86-87. (Coleção O Baile das Quatro Artes).
3 LISPECTOR (1992), p. 56.
4 LÉVI-STRAUSS, C. Estruturas elementares do parentesco. São Paulo: Vozes, 2013.
5 LISPECTOR (1992), p. 268-269.
6 LISPECTOR (1992), p. 263.
7 LISPECTOR (1992), p. 262.
8 LISPECTOR (1992), p. 120. Grifos meus.
9 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. v. 1, Fatos e mitos. v. 2, A experiência vivida.
10 MANDELBAUM, Belinda (2008, p. 44) alude a uma corrente de estudos acadêmicos da família que tinha essa perspectiva sistêmica para fins de aplicação clínica, a partir da década de 1950, em Palo Alto, na Califórnia.
11 LISPECTOR, Clarice. “Menino a bico de pena”, em A descoberta do mundo (1984) Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 240-243.
12 PISKORSKI, Rodolfo. O significante fálico em A maçã no escuro, em www.priberam.pt/DLPO/defaut.aspx/?pal=f%C3%A1lico (2012? 2013?, p. 2).