Autor: Lima Barreto
Título: RECORDA??ES DO ESCRIV?O ISA?AS CAMINHA
Idiomas: port
Tradutor:
Data: 06/06/2005
RECORDA??ES DO ESCRIV?O ISA?AS CAMINHA
I
Lima Barreto
A tristeza, a compreens?o e a desigualdade de n?vel mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de intelig?ncia. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em come?o, na minha primeira inf?ncia, estimulou-me pela obscuridade de suas exorta??es. Eu n?o tinha ainda entrado para o col?gio, quando uma vez me disse: Voc? sabe que nasceu quando Napole?o ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napole?o? Um grande homem, um grande general… E n?o disse mais nada. Encostou-se ? cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significa??o de suas palavras; contudo, a entona??o de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!…
O espet?culo do saber de meu pai, real?ado pela ignor?ncia de minha m?e e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de crian?a, como um deslumbramento.
Pareceu-me ent?o que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembara?o de linguagem, a sua capacidade de ler l?nguas diversas e compreend?-las constitu?am, n?o s? uma raz?o de ser de felicidade, de abund?ncia e riqueza, mas tamb?m um t?tulo para o superior respeito dos homens e para a superior considera??o de toda a gente.
Sabendo, fic?vamos de alguma maneira sagrados, deificados… Se minha m?e me parecia triste e humilde ? pensava eu naquele tempo ? era porque n?o sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do c?u e explicar a natureza da chuva…
Foi com estes sentimentos que entrei para o curso prim?rio. Dediquei-me a?odadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando as minhas primitivas no??es sobre o saber.
Acentuaram-se-me tend?ncias; pus-me a colimar gl?rias extraordin?rias, sem lhes avaliar ao certo a significa??o e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspira??es indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir…
Ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda a hora e a todo instante, na minha gl?ria futura. Agia desordenadamente e sentia a incoer?ncia dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente. Veio-me a pose, a necessidade de ser diferente. Relaxei-me no vestu?rio e era preciso que minha m?e me repreendesse para que eu fosse mais zeloso. Fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos, punha-me s? com um ou dois, ? parte, no recreio do col?gio; l? vinha um dia, por?m, que brincava doidamente, apaixonadamente. Causava com isso espanto aos camaradas: Oh! O Isa?as brincando! Vai chover…
A minha energia no estudo n?o diminuiu com os anos, como era de esperar; cresceu sempre progressivamente. A professora admirou-me e come?ou a simpatizar comigo. De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe passava pelas m?os um g?nio. Correspondi-lhe ? afei??o com tanta for?a d?alma, que tive ci?mes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu ent?o dois anos de escola e doze de idade. Da? a um ano, sai do col?gio, dando-me ela, como recorda??o, um exemplar do Poder da Vontade, luxuosamente encadernado, com uma dedicat?ria afetuosa e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira. Li-o sempre com m?o diurna e noturna, durante o meu curso secund?rio, de cujos professores, poucas recorda??es importantes conservo hoje. Eram banais! Nenhum deles tinha os olhos azuis de Dona Ester, t?o meigos e transcendentes que pareciam ler o meu destino, beijando as p?ginas em que estava escrito!…
Quando acabei o curso do liceu, tinha uma boa reputa??o de estudante, quatro aprova??es plenas, uma distin??o e muitas sabatinas ?timas. Demorei-me na minha cidade natal ainda dois anos, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ?timas e pelos progn?sticos da minha professora, a quem sempre visitava e ouvia. Todas as manh?s, ao acordar-me, ainda com o esp?rito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: Vai, Isa?as! vai!… Isto aqui n?o te basta… Vai para o Rio!
Ent?o, durante horas, atrav?s das minhas ocupa??es quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de ego?smo, onde eu n?o tinha conhecimentos, rela??es, protetores que me pudessem valer…
Que faria l?, s?, a contar com as minhas pr?prias for?as? Nada… Havia de ser como uma palha no rodamoinho da vida ? levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro… ladr?o… b?bado… t?sico e quem sabe mais? Hesitava. De manh?, a minha resolu??o era quase inabal?vel, mas, j? ? tarde, eu me acobardava diante dos perigos que antevia.
Um dia, por?m, li no Di?rio de *** que o Fel?cio, meu antigo condisc?pulo, se formara em Farm?cia, tendo recebido por isso uma estrondosa, dizia o Di?rio, manifesta??o dos seus colegas.
Ora o Fel?cio! pensei de mim para mim. O Fel?cio! T?o burro! Tinha vit?rias no Rio! Por que n?o as havia eu de ter tamb?m ? eu que lhe ensinara, na aula de portugu?s, de uma vez para sempre, diferen?a entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por qu?!?
Li essa not?cia na sexta-feira. Durante o s?bado tudo enfileirei no meu esp?rito, as vantagens e as desvantagens de uma partida. Hoje, j? n?o me recordo bem das fases dessa batalha; por?m uma circunst?ncia me ocorre das que me demoveram a partir. Na tarde de s?bado, sai pela estrada fora. Fazia mau tempo. Uma chuva intermitente caia desde dois dias.
Sai sem destino, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada.
Passava por um largo descampado e olhei o c?u. Pardas nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabe?a, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V. Era a inicial de ?Vai?. Tomei isso como sinal animador, como bom aug?rio do meu prop?sito audacioso. No domingo, de manh?, disse de um s? jato ? minha m?e:
? Amanh?, mam?e, vou para o Rio.
Minha m?e nada respondeu, limitou-se a olhar-me enigmaticamente, sem aprova??o nem reprova??o; mas minha tia, que costurava em uma ponta da mesa, ergueu um tanto a cabe?a, descansou a costura no colo e falou persuasiva:
? Veja l? o que vai fazer, rapaz! Acho que voc? deve aconselhar-se com o Valentim!
? Ora qual! fiz eu com enfado. Para que Valentim? N?o sou eu rapaz ilustrado? N?o tenho todo o curso de preparat?rios? Para que conselhos?
? Mas olhe Isa?as! voc? ? muito crian?a… N?o tem pr?tica… O Valentim conhece mais a vida do que voc?. Tanto mais que j? esteve no Rio…
Minha tia, irm? mais velha de minha m?e, n?o tinha acabado de dizer a ?ltima palavra, quando o Valentim entrou envolvido num comprido capote de baeta.
Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou o bon? com o emblema do Correio e pediu caf?.
? Voc? veio a prop?sito, Valentim. Isa?as quer ir para o Rio e eu acabo de recomendar que se aconselhasse com voc?.
? Quando voc? pretende ir, Isa?as? indagou meu tio, sem surpresa e imediatamente:
? Amanh?, disse eu cheio de resolu??o.
Ele nada me disse. Calamo-nos e minha tia saiu da sala, levando o capote molhado, e logo depois voltou, trazendo o caf?.
? Quer para ti, Valentim?
? Quero.
Revolvendo lentamente o a??car no fundo da x?cara, meu tio continuou ainda calado por muito tempo. Tomou um gole de caf?, depois um outro de aguardente, esteve com o c?lice suspenso alguns instantes, descansou-o na mesa automaticamente e, aos poucos, a sua fisionomia de largos tra?os de ousadia foi revelando um grande trabalho de concentra??o interior. Minha m?e nada dissera at? ali.
Num dado momento, pretextando qualquer coisa, levantou-se e foi aos fundos da casa. Ao sair fez a minha tia uma insignificante pergunta sobre o arranjo dom?stico, sem aludir ? minha resolu??o e sem despertar meu tio da cisma profunda em que se engolfara.
Ansioso, deixei-me a ficar ? espera de uma resposta dele, notando-lhe as menores contra??es do rosto e decifrando os mais t?nues lampejos de seu olhar. Houve um segundo que ele me pareceu ter suspendido todo o movimento exterior de sua pessoa. A respira??o como que parara, tinha o cenho carregado, as rugas da testa larga e quadrada fixadas, como se tivessem sido vazadas em bronze, e os olhos im?veis, orientados para uma fresta da mesa, brilhantes, extraordinariamente brilhantes e salientes, como que a saltar das ?rbitas, para farejar o rasto prov?vel da minha vida na intrincada floresta dos acontecimentos. Gostava dele. Era um homem leal, valoroso, de pouca instru??o, mas de cora??o aberto e generoso. Contavam-lhe fa?anhas, bravatas portentosas, levadas ao cabo, pelos tempos em que fora, nas elei??es, esteio do partido liberal. Pelas portas das vendas, quando passava, cavalgando o seu simp?tico cavalo magro, com um saco de cartas ? garupa, murmuravam: ?Que songamonga! J? liquidou dois…?
Eu sabia do caso, estava mesmo convencido de sua exatid?o; entretanto, apesar das minhas idiotas exig?ncias de moral inflex?vel, n?o me envergonhava de estim?-lo, amava-o at?, sem mescla de terror, j? pela decis?o do seu car?ter, j? pelo apoio certo que nos dera, a mim e a minha m?e, quando veio a morrer meu pai, vig?rio da freguesia de ***. Animara a continuar os meus estudos, fizera sacrif?cios para me dar vestu?rio e livros, desenvolvendo assim uma atividade acima dos meus recursos e for?as.
Durante os dois anos que passei, depois de ter conclu?do humanidades, o seu car?ter atrevido conseguia de quando em quando arranjar-me um ou outro trabalho. Desse modo, eu ia vivendo uma doce e med?ocre vida roceira, sempre perturbada, por?m, pelo estonteante prop?sito de me largar para o Rio. Vai Isa?as! Vai!
Meu tio ergueu a cabe?a, passou a olhar demoradamente sobre mim e disse:
? Fazes bem!
Acabou de tomar o caf?, pediu o capote e convidou-me:
? V?, comigo. Vamos ao coronel… Quero pedir-lhe que te recomende ao doutor Castro, deputado.
Minha tia trouxe o capote, e quando ?amos saindo apareceu tamb?m minha m?e, recomendando:
? Agasalhe-se bem, Isa?as! Levas o chap?u-de-chuva?
? Sim senhora, respondi.
Durante quarenta minutos, patinhamos na lama do caminho, at? ? casa do Coronel Belmiro. Mal t?nhamos empurrado a porteira que dava para a estrada, o vulto grande do fazendeiro assomou no portal da casa, redondo, num longo capote e coberto de um largo chap?u de feltro preto. Aproximamo-nos.
? Oh! Valentim! fez pregui?osamente o coronel. Voc? traz cartas? Devem ser do Trajano, conhece? S?cio do Martins, da Rua dos Pescadores…
? N?o senhor, interrompeu meu tio.
? Ah! ? seu sobrinho… Nem o conheci… Como vai, menino? N?o esperou a minha resposta; continuou logo em seguida:
? Ent?o, quando vai para o Rio? N?o fique aqui… V?… olhe o senhor conhece o Azevedo?
? ? disso mesmo que v?nhamos tratar. Isa?as quer ir para o Rio e eu vinha pedir a Vossa Senhoria…
? O qu?? interrompeu assustado o coronel.
? Eu queria que Vossa Senhoria, senhor coronel, gaguejou o tio Valentim, recomendasse o rapaz ao doutor Castro.
O coronel esteve a pensar. Mirou-me de alto a baixo, finalmente falou:
? Voc? tem direito, Seu Valentim… ?… Voc? trabalhou pelo Castro… Aqui para n?s: se ele est? eleito, deve-o a mim e aos defuntos, e a voc? que desenterrou alguns.
Riu-se muito, cheio de satisfa??o por ter repetido t?o velha pilh?ria e perguntou amavelmente em seguida:
? O que ? que voc? quer que lhe pe?a?
? Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isa?as ia ao Rio estudar, tendo j? todos os preparat?rios, e precisava, por ser pobre, que o doutor lhe arranjasse um emprego.
O coronel n?o se deteve, fez-nos sentar, mandou vir caf? e foi a um compartimento junto escrever a missiva.
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Fonte: BARRETO, Lima. Recorda??es do Escriv?o Isa?as Caminha. Rio de Janeiro, Ediouro, 1990, p. 27-31.