Raquel Alves dos Santos Nascimento
Universidade de São Paulo
RESUMO: Esse trabalho visa a examinar o potencial da recepção, na Alemanha, do livro Quarto de Despejo (traduzido como Tagebuch der Armut) de Carolina Maria de Jesus, valendo-se para tanto de resenhas de jornais alemães publicadas sobre a obra e a autora. A moldura teórica para a presente pesquisa fundamenta-se nos Estudos Descritivos da Tradução e o trabalho com o corpus que tem por base a Linguística de Corpus. Esta última viabilizou a identificação de palavras-chave nos textos estudados, que nos permitiram mapear possíveis eixos temáticos, a partir dos quais apontamos aqui algumas condicionantes da recepção da obra, tanto em uma perspectiva sincrônica ao examinar cada texto em particular, quanto diacrônica ao estudar a evolução de conceitos no tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus, Estudos Descritivos da Tradução, Linguística de Corpus, recepção de Literatura Brasileira.
ABSTRACT: This paper aims to examine the potential and the impact of the reception of Carolina Maria de Jesus’s diary Quarto de despejo (translated as Tagebuch der Armut) in Germany. It will resource to German newspaper reviews published about the work and the author, to try to find the elements that alow us to understand how and by which resources and agents, the translation of Quarto de despejo had seven editions in that country. The theoretical framework for this research is based on Descriptive Translation Studies and works with a corpus that is based on Corpus Linguistics. The latter enabled the identification of key words in the studied texts, which allowed us to map out possible themes, from which we point out some conditions for the work’s reception, both in a synchronic perspective, examining each text in particular, and in a diachronic one, studying the evolution of the concepts in time.
KEYWORDS: Child of the Dark, Carolina Maria de Jesus, Descriptive Translation Studies, Corpus Linguistics, reception of Brazilian literature in Germany.
MINICURRÍCULO: Mestranda do programa Estudos da Tradução do Departamento de Letras Modernas, FFLCH, Letras, USP. Possui bacharelado e licenciatura em Letras Português/Alemão pela Universidade de São Paulo (2011). Além da pesquisa acadêmica, é professora de alemão e trabalha com traduções e revisões acadêmicas e comerciais. Sua pesquisa atual concentra-se nos seguintes temas: Carolina Maria de Jesus, tradução, recepção, paratextos e literatura.
RECEPÇÃO DE CAROLINA MARIA DE JESUS NA ALEMANHA: ASPECTOS DE UM RECONHECIMENTO A PARTIR DA ANÁLISE DE PARATEXTOS
Raquel Alves dos Santos Nascimento
Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
Como entender o sucesso de Quarto de Despejo, primeiro livro de Carolina Maria de Jesus na Alemanha, um país tão distante culturalmente e geograficamente do Brasil?
Traduzido para o alemão por Johannes Gerold, o livro teve sete edições no período de 1962 a 1993. A primeira tradução foi realizada em um momento em que outros diários de cunho político-social estavam sendo traduzidos, como os diários de Erwin Behrens (Diário de Moscou), de Thilo Koch (Diário de Washington) e de Josef Müller-Marein (Diário do Oeste), revelando certa tendência da época por literaturas voltadas para esse viés.
O objetivo deste trabalho é apresentar alguns traços da recepção de Carolina Maria de Jesus e sua obra na Alemanha a partir de resenhas de jornais da época, escritas depois da publicação do livro.
Falar de recepção é pensar primordialmente em todas as condicionantes que envolvem a publicação da obra no país que o recebe: cultura, momento histórico, textos sobre o livro e no livro – os quais o teórico Genette (1987) chama de epitextos e peritextos respectivamente e ambos de paratextos –, agentes literários, público-alvo e outros. Do mesmo modo, devemos pensar sobre o potencial de recepção é que diz respeito às motivações e finalidades da tradução da obra para aquela determinada cultura.
O estudo sobre a recepção da obra de Carolina Maria de Jesus na Alemanha começa na recepção dela no país de origem, o Brasil. Como ela foi apresentada e representada naquele país e que direcionamentos de leituras foram exercidos sobre ela. Desse modo não há como não citar Audálio Dantas, jornalista que publica e escreve o prefácio da obra. Se pensarmos nos processos de reescritura e manipulação propostos por Lefevère. Leia-se:
(…) (re)escrita é manipulação, realizada a serviço do poder, e em seu aspecto positivo pode ajudar no desenvolvimento de uma literatura e de uma sociedade. As reescritas podem introduzir novos conceitos, novos gêneros, novos recursos, e a história da tradução é também a história da inovação literária, do poder formador de uma cultura sobre outra. Mas a reescrita também pode reprimir a inovação, distorcer e controlar, e em uma época de crescente manipulação de todos os tipos, o estudo dos processos de manipulação da literatura, exemplificado pela tradução, pode nos ajudar a adquirir maior consciência a respeito do mundo em que vivemos (Lefevère, 1992: vii).
Podemos dizer que o prefácio da obra feito por Audálio Dantas teve a função de direcionar os leitores da obra para o viés, embora mais sociológica e, talvez, menos literário. Para Perpétua (2014):
Os textos introdutórios – o da orelha, assinado por Paulo Dantas, e o da apresentação, por Audálio Dantas – ampliam a antevisão dada na intitulação ao conceder, por meio de um discurso persuasivo, uma direção de apreensão do sentido do diário para a área sociológica.
E ainda:
O objetivo de Audálio Dantas, ao pretender [em seu prefácio] a presentificação de Carolina, é o de enfatizar o valor sociológico do texto para que seja lido como testemunho real da miséria, escrito por quem a viveu, pessoa da classe mais desprotegida da sociedade.
Nuances desse direcionamento são percebidas também na Alemanha onde, além de sofrer adequações para o público alemão, constatamos a exaltação à leitura sociológica da obra. O pósfácio do tradutor é um exemplo claro disso quando diz: “As anotações de Carolina Maria de Jesus devem ser lidas menos como uma obra literária, mas contar muito mais como um documento humano único e autêntico…”
Assim como o prefácio, reescrituras como os paratextos – textos que conforme Genette (1987) falam sobre o livro – também podem servir para direcionar a recepção de determinada obra e formar/manipular opiniões sobre ela. Também a tradução da obra já pode imprimir traços de manipulação no sentido de adequar o produto, o livro traduzido, à sua cultura-alvo e às intenções do meio que a publica, suas tendências e crenças.
Ao pensar em adequações, pensamos também em um conjunto de regras de um polissistema literário que segundo Even-Zohar é específico em cada país ou cultura. Para o teórico o sistema literário é ligado a uma rede de sistemas que regem uma sociedade como culturais, econômicos entre outros, prefere chamar de polissistema:
(…) um sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas com intersecções e superposições mútuas, que usa diferentes opções simultâneas, mas que funciona como um todo estruturado, cujos membros são interdependentes (EVEN-ZOHAR 1999 a: 6).
Dentro deste sistema heterogêneo, há espaço para as literaturas canônicas localizadas ao centro do sistema e para as não canônicas, situadas na periferia. Sobre elas, Even-Zohar faz o seguinte esclarecimento e distinção:
(..) “por ‘canonizadas’ entendemos aquelas normas e obras literárias (isto é, tanto modelos como textos) que nos círculos dominantes de uma cultura se aceitam como legítimas e cujos produtos mais sobressalentes são preservados pela comunidade para que formem parte da herança histórica desta. ‘Não canonizadas’ quer dizer, pelo contrário, aquelas normas e textos que estes círculos recusam como ilegítimas e cujos produtos, em larga escala a sociedade esquece com frequência, (a não ser que seu status mude)” (Even-Zohar, 1999a: 10).
Ao contrário das obras canonizadas, que estão no centro do sistema, podemos entender como não canonizadas a literatura regionalista, panfletária, infantil e traduzida, as quais se localizam, via de regra, na periferia do polissistema. As tensões entre periferia e centro é que permitem que obras canonizadas saiam do centro e por vezes, também, que obras da periferia se desloquem para lá. Isso explicaria o fato de a literatura traduzida vir a fazer parte, de modo representativo, no polissistema literário de outra cultura, quando existem lacunas para que isso aconteça. Nas palavras de Even-Zohar:
(…) quando um polissistema ainda não está cristalizado, a saber, quando uma literatura é ‘jovem’ este processo de construção; quando uma literatura é ‘periférica’ (dentro de um amplo grupo de literaturas inter-relacionadas), ou ‘fraca’, ou ambas as coisas; e quando existem pontos de inflexão, crises ou vazios literários em uma literatura (EVEN-ZOHAR 1999b: 84).
A partir disso, Quarto de despejo teria se localizado, então, na periferia do polissistema literário alemão. No entanto, a pergunta que se faz é: o que poderia ter interessado tanto aos alemães que os fizessem ter necessidade de inserir essa obra em seu sistema literário?
Podemos dizer de início que o sucesso nacional e internacional da obra somado ao interesse da já extinta editora Christian Wegner, detentora dos direitos de tradução de Quarto de despejo, na tradução de diários de cunho político-social, contribuiu bastante para a inserção de Carolina no sistema literário alemão. No entanto, não seriam talvez fatores suficientes para ocasionar as outras sete publicações existentes.
É nesse contexto de insuficiência de informações que buscamos o aporte teórico dos Estudos Descritivos da Tradução (EDTs), na tentativa de tentar responder essa pergunta e compreender melhor o processo tradutório no contexto da recepção, uma vez que os EDTs colocam o foco, até então depositado no processo tradutório e no texto original, no texto traduzido, em seu público alvo e na recepção, marcando, assim, uma mudança na maneira de estudar e compreender a tradução de literatura na década de 1970.
Somado a isso buscamos também na teoria dos paratextos de Gerard Genette (1982, p. 8) uma forma de analisar essa recepção a partir de textos, mais precisamente, de resenhas de jornal escritas sobre a obra na época. Genette define o lugar do paratexto como sendo “o lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público” e, ainda, “aquilo que por meio de um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (1982, p. 9-10). Nas palavras do teórico paratextos são:
Título, subtítulos, intertítulos; prefácios, preâmbulos, apresentação, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim; epígrafes; ilustrações; dedicatórias, tira, jaqueta [cobertura], e vários outros tipos de sinais acessórios, (…) que propiciam ao texto um encontro (variável) e às vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor mais purista e o menos inclinado à erudição externa nem sempre pode dispor tão facilmente quanto ele gostaria e pretende (p.10).
Amparada nessa afirmação, abordaremos brevemente as capas de três edições alemãs e respectivos títulos e passaremos para a análise de três resenhas publicadas em 1962.
CAPAS DAS EDIÇÕES ALEMÃS
Para fins unicamente demonstrativos, sem pretensões de maiores aprofundamentos, serão apresentadas as capas publicadas em 1968 pela Fischer Bücherei em Frankfurt, em 1979, pela Reclam em Leipzig e em 1983 pela Lamuv Göttingen:
Em uma primeira análise, podemos conjecturar que a primeira capa, publicada no lado oeste da Alemanha, então dividida, apelava para identificação visual, compondo a imagem de Carolina em uma capa amarela vermelha e preta, cores da bandeira alemã. Levando em consideração que as capas, entre outras funções, também tem fins mercadológicos, podemos dizer que poderia ter havido a tentativa de instigar o interesse alemão pelas cores e pela própria composição da imagem com uma mulher negra.
A segunda capa traz imagens em preto e branco e apresenta um apelo mais social e talvez familiar. Há a presença de crianças pobres em frente a um barraco de madeira e uma mulher adulta (Carolina) a olhar por elas. Essa capa já prenuncia um pouco mais a temática do livro e poderia instigar o interesse alemão oriental que vivia sobre regime comunista pela evocação de uma certa condição de precariedade.
Publicada 20 anos depois da primeira edição, a terceira capa traz a imagem de uma Carolina em uma posição de bem estar ao fundo e coloca em primeiro plano um dos filhos, com aparência saudável, prenunciando talvez um presente e um futuro melhor.
Passando a observação dos títulos que segundo Genette (2009, p. 73) apresentam funções de identificar as obras, seu conteúdo e valorizá-lo, observamos primeiramente que também diferem entre si. O primeiro: “Diário da Pobreza, anotações de uma negra brasileira”, o segundo somente “Diário da Pobreza” e o terceiro “Diário da Pobreza, a vida em uma favela brasileira”.
Percebemos que o primeiro título coloca o livro como algo mais intimista de Carolina, sua perspectiva e vivência “anotações de uma negra brasileira”, ao mesmo tempo em que faz questão – como o título em português – de deixar claro o pertencimento de raça da autora; o segundo título busca a neutralidade. Não caracteriza a autora e despersonifica o relato como sendo o “Diário da Favela” e não mais somente de uma negra brasileira; por fim o terceiro, assim como o segundo despersonifica o relato e também o generaliza. Não é mais o relato de pobreza de uma negra brasileira, mas também a descrição da “vida em uma favela brasileira”. Podendo ser somente o Canindé, qualquer outra favela, ou todas.
Estas breves observações já nos permitem obter informações sobre algumas perspectivas de um público alvo em relação a uma obra, bem como da adequação necessária para cativa-los. No caso dos nossos três exemplos, estas seriam: caracterização mesmo que indireta do povo alemão pelas cores da bandeira, o apelo social caro às ideologias socialistas e o bem estar e esperança sentimentos talvez caros a um povo quase as vésperas da reunificação em 1990.
Buscando avançar um pouco mais na análise, observemos agora as resenhas de jornal publicadas na época sobre a obra. Segundo Genette elas seriam classificadas como epitextos, um dos desdobramento dos paratextos, caracterizado como o discurso do mundo sobre o livro e também:
Todas as mensagens que se situam, pelo menos na origem, na parte externa do livro: em geral num suporte midiático (conversas, entrevistas) ou sob a forma de uma comunicação privada (correspondências, diários íntimos e outros) (GENETTE 2009: 12).
É exatamente nesse âmbito que nossa pesquisa vai centrar sua observação. Como mencionado anteriormente, observaremos a seguir alguns aspectos de recepção da obra em questão na Alemanha, tendo como exemplo alguns excertos das três primeiras resenhas publicadas sobre o assunto.
AS RESENHAS DE JORNAL
As resenhas as de jornal sobre Quarto de despejo e sua autora Carolina Maria de Jesus foram escritas entre 1962 e 1996. Oito destes artigos foram conseguidos no Instituto para Pesquisa Jornalística de Dortmund (Institut für Zeitungsforschung – IZF) e os demais foram fornecidos pelo professor Klaus Küpper, autor da Bibliographie der brasilianischen Literatur. Prosa, Lyrik, Essay und Drama in deutscher Übersetzung (Bibliografia da literatura brasileira. Prosa, Lírica, Ensaios e Drama em tradução alemã). Eles foram publicados em jornais de média e grande veiculação na Alemanha. Os exemplos apresentado a seguir são das primeiras resenhas publicadas em 1962.
Iniciando a observação pelos títulos de cada uma das resenhas já podemos obter as primeiras informações sobre o conteúdo do texto, já que como vimos anteriormente, um título entre outras funções serviria para “identificar o conteúdo e valorizá-lo” (Genette, 2009: 73). Eles são:
Passando rapidamente os olhos por todos os títulos podemos perceber a referência à mitologia grega em “Augias”, a identificação de Carolina como poetisa, a associação de Carolina a personagens importantes da literatura alemã e, por fim, o direcionamento para as questões sociais brasileiras apresentadas ou não na obra.
Resenha 1
Os primeiros trechos foram retirados da primeira resenha publicada depois do lançamento da obra em 1962 em um jornal conservador alemão Rheinischer Merkur:
Bonn, 20.04.1962 – Die “Dichterin des Kehrichts” – Tagebuchblätter aus den brasilianischen Elendsvierteln (Poetisa do lixo – diário de um bairro de miséria brasileiro), Guillermo Baumfeld:
Há 46 anos nasceu Carolina em Sacramento, frequentou a escola por dois anos e aos nove começou a trabalhar como empregada doméstica. Quando tinha dezoito anos, casou-se e com vinte já era moradora da favela do Canindé em São Paulo. Sua existência resumiu-se em manter a vida de seu marido doente e de seus três filhos e, durante vinte e seis anos, levantar ao alvorecer.
(…)
Mas o livro não é somente um documento, também se destacam nele, em meio a toda realidade cruel, passagens de lírica suave e intensidade dos sentimentos humanos universais. Ela mesma, que se denomina poetisa do lixo diz: “A voz dos pobres não têm poesia”.
(…)
Seria Carolina de Jesus uma poetisa ou faria ela parte das descobertas que, como cometa, aparecem, escrevem um livro impressionante e depois desaparecem na escuridão? Há cem anos Harriet Beecher Stowe incitou à libertação dos escravos com A cabana do pai Tomás e “acordou“ o mundo para refletir. Hoje, seus outros livros são esquecidos mas essa obra a tornou imortal.
(…)
Carolina é uma poetisa, além de ser também alguém que denuncia.
Partindo do título da resenha – “Poetisa do lixo – diário de um bairro de miséria brasileiro” –, já podemos tecer algumas considerações. Se levarmos em conta as palavras “poetisa” e “lixo”, podemos inferir a mescla de noções vindas dos eixos temáticos que definimos inicialmente para esta pesquisa: poetisa (eixo literário) e lixo (eixo político-social). O subtítulo define, então, o tipo de texto e sua origem.
No primeiro trecho destacado, podemos perceber que o autor se ocupa em caracterizar Carolina primeiramente como alguém que “deu voz aos pobres, até então mudos”, para, em seguida, caracterizar a autora como uma mulher sofrida e de muita força, que luta para dar a seu “marido doente e a seus três filhos” o parco sustento.
Intrigante nessa afirmação, contudo, é o fato de ela estar equivocada. Não é possível reconstruir, na fortuna crítica sobre Carolina, esse mesmo perfil de mulher: a autora nunca foi casada e muito menos teve um marido doente. Por ser a primeira resenha escrita sobre a autora, não é possível saber de onde essa informação foi tirada. No entanto, as conjecturas nos levam a pensar que se trata aqui de uma tentativa, embora baseada em dados equivocados, de moldar e caracterizar uma Carolina que os alemães se interessariam em ler.
Outro ponto interessante é que o jornal em que foi publicada a resenha é de vertente conservadora da época e hoje é um suplemento extra do Die Zeit, jornal de grande circulação na Alemanha. Nesse caso, parece ser importante que Carolina, tendo filhos, tenha também um marido. E como esse marido não aparece na narrativa, é possível que o articulista tenha inferido o fato de ele ser doente.
Analisando a partir da perspectiva alemã, o caráter exótico da vida de Carolina, bem como o fato de o livro ser um diário (um registro autobiográfico, portanto), do qual ela é a autora, e se considerarmos, ainda o fato de que ela mesma pode ser também vista como um personagem do livro, é possível que o resenhista tenha se sentido autorizado a recriar sobre os fatos da vida da autora.
O segundo trecho faz referência ao caráter mais literário da obra: “Mas o livro não é somente um documento, ao contrário, em meio a toda a realidade cruel, destacam-se passagens de lírica suave e da força de sentimentos humanos universais”. A afirmação leva Carolina de um extremo a outro: do relato documental e jornalístico da autora-personagem à dimensão da lírica, da prosa poética e da literatura. Nesse sentido, o trecho em questão confirma os dois eixos em torno dos quais gira o potencial de recepção do livro e busca compensar o caráter documental da obra com a alusão à sua manifesta literariedade.
Resenha 2
O segundo exemplo é de uma resenha publica no mesmo ano alguns meses depois em um jornal socialdemocrata alemão, Vorwärts:
Leipizig, 16.05.1962 – Augias in Sao Paulo – Tagebuch einer Negerin aus den Slums wurde Beststeller (Augias em São Paulo – Diário de uma A partir do título: “Augias em São Paulo – Diário de uma negra da favela torna-se bestseller”, podemos perceber uma referência ao deus grego Augias dos estábulos imundos, o que pode apontar para uma rede associativa passível de ser estabelecida por um público leitor alemão de formação clássica. Por outro lado, percebemos também certo descrédito ao mérito literário de Carolina, já que a ênfase do título parece denotar a surpresa de que tal diário pudesse se tornar um bestseller.
Publicada um mês depois da primeira resenha, em um jornal cujos leitores são basicamente os membros do partido socialdemocrata alemão (SPD), nesta resenha o autor se atém mais ao livro do que à Carolina. Importam aqui, a informação sobre o sucesso do livro, seu tema e a forma como os fatos foram contados: “de forma tão drástica quanto como acontece na realidade”.
O articulista não se preocupa, portanto, em traçar um perfil de autora que os alemães se interessariam em ler, mas em dar ênfase à temática e à forma como é expressa no livro, seu processo de publicação e, é claro, o fato de ele ,surpreendentemente, ter se tornado um bestseller em tão pouco tempo. Assim, tem-se a impressão de que o fato de o livro ser escrito por uma ex-favelada, negra e brasileira, fica em segundo plano. Aqui também não se tenta traçar qualquer perfil, seja ele real ou fictício da autora:
Resenha 3
O terceiro exemplo também do mesmo ano de um jornalista brasileiro que escrevia também para o jornal cristão liberal-conservador alemão, Christ und Welt.
Bonn, 13.07.1962 –, Die Schwarze Mutter Courage aus Canindé – Zu den Tagebüchern der Maria Carolina de Jesus (A mãe coragem preta do Canindé – sobre os diários de Maria Carolina de Jesus), Leo Gilson Ribeiro:
Com uma reação fulminante, a elite brasileira – intelectuais, imprensa e televisão, professores e estudantes, ministros e deputados – recebeu o choque elétrico deste desmascaramento de um mundo, que representa nas capitais do planeta um problema social de dimensões catastróficas.
(….)
O jornal fortemente conservador ”O Estado de São Paulo“ fala sobre um dos melhores livros brasileiros deste século“, o ”Diário de Notícias“ considera a obra um tapa sonoro na cara do governo brasileiro.
(….)
Em suas anotações Carolina escreve: “Há pessoas que duvidam da vida e só pensam na morte como solução. Eu lutei constantemente contra isso enquanto escrevi meu diário”. Como um eco distante soam as palavras de Kafka: “Na escrita existe um consolo estranho, enigmático, talvez perigoso, talvez salvador… Talvez a literatura nos leve a orar…” O livro da brasileira é testemunho de uma crença semelhantemente absoluta na transcendência da palavra, na sua força de transformar o meio circundante tal como lhe foi permitido vivenciá-lo concretamente. Como um “Negro Spiritual”, este livro amargo contém, ao lado de tanta tristeza, uma faísca de consolo, quando Carolina diz: “O homem não nasce nu – a esperança o veste.”
Iniciando novamente a análise pelo título: Die Schwarze Mutter Courage aus Canindé – Zu den Tagebüchern der Maria Carolina de Jesus, consideremos primeiramente “Die Schwarze” e “Mutter Courage”. Começando por “die Schwarze”, vemos aqui mais uma vez a tentativa de evidenciar a cor da autora, evocando com ela todas as redes associativas sociopolíticas aí implícitas, como escravidão e pobreza, por exemplo. Além de marcar uma diferença estereotípica em relação a Mutter Courage de Brecht, Anna: “a mãe Coragem de quem falamos aqui é preta (schwarz)!”.
Já “Mutter Courage”, além de fazer associação direta à célebre personagem de Brecht, Anna, comerciante que sai a trabalho com seus três filhos, dois meninos e uma menina (assim como Carolina), em meio a guerra dos trinta anos, faz alusão também à crítica feita por Brecht de que a guerra não melhora ninguém, pelo contrário. Segundo PEIXOTO (1991) Brecht teve influências do Romance Simplicissimus, de Jacob Christian Grimmelshausen, autor alemão do século XVII, que afirmava que a “guerra torna os homens piores e não melhores” (p. 192). Também Carolina faz uma afirmação que vai ao encontro da crítica de Brecht: “Os pobres são tratados tão mal que são obrigados a abrir mão de sua bondade…”.
Voltando a Anna, a Mãe Coragem de Brecht, na verdade o que vemos não é uma mãe como todos esperavam, que faz de tudo pelos filhos (como Carolina), mas uma mãe que, na guerra, se preocupa em ganhar seu dinheiro mesmo perdendo seus filhos. Nas palavras de PEIXOTO (1991): “o dinheiro faz Coragem perder os filhos” (p. 192). Ou seja: a guerra, a pobreza “faz homens piores”, tira a sua “bondade”. No entanto, Carolina mostra que para escapar à regra, basta querer e fazer diferente. E nesse ponto, as duas obras se encontram novamente. Para PEIXOTO (1991), a peça de Brecht deixa claro ao público que qualquer uma das personagens poderia ter agido de outra forma se quisessem. Carolina Maria de Jesus dá testemunho disso com sua escrita.
O articulista faz ainda uma referência ao imperador Marco Aurélio, que se dedicou à filosofia estoica. Na passagem destacada pelo autor do artigo, quando Carolina relata sobre o racismo dizendo que “o homem está no mundo de passagem e deveria se preocupar em viver em paz e não odiar seu próximo durante sua viagem na terra”, parece mesmo haver um diálogo com o estoicismo, que tinha como um de seus preceitos aceitar escravos como “iguais aos outros homens, porque todos os homens são igualmente produtos da natureza” (RUSSELL, 2004: 253)
Outro ponto importante é a relação feita aqui entre o papel existencialista da escrita de Kafka e a de Carolina Maria de Jesus. Segundo o articulista, ambos usam a escrita como uma forma de se manterem vivos. Para isso, Gilson Ribeiro utiliza uma citação de Carolina, que diz: “Há pessoas que pensam na morte como solução. Eu lutei constantemente contra isso enquanto escrevi meu diário”. Como contraponto de comparação, ele utiliza a seguinte citação de Kafka: “Na escrita existe um consolo estranho, enigmático, talvez perigoso e talvez salvador…”1. Em outras passagens ele declara em cartas que seria a escrita o que o manteria vivo.
Em sua tese de doutorado “Die Tagebücher von Franz Kafka, ein literarisches Laboratorium 1909 – 1923” [Os diários de Franz Kafka, um laboratório literário 1909 – 1923], Andrea Rother apresenta de forma pormenorizada um estudo sobre os diários de Kafka e a importância deles na vida do escritor. Juntamente a isso são apresentadas algumas considerações sobre o gênero diário que talvez venham reforçar a nossa análise: “O diário é um lugar de transição. A vida é transformada lá em escrita… escrever pode dar moldura à vida e, assim, servir de apoio” (p. 4).2
Carolina também encontra na escrita uma saída para sua realidade dura e é nos papeis catados no lixo que encontra a matéria prima para o que chamaria de seu alimento: a escrita. O articulista reconhece essa característica, busca na literatura alemã um paralelo e o encontra em Kafka. Da mesma forma, conforme comentamos acima, ele busca outros correlatos em figuras exponenciais, canônicas para características de nossa autora, e os encontra em Bertold Brecht e até mesmo no imperador romano Marco Aurélio.
Relevante ainda é o fato de o articulista ser brasileiro, crítico literário renomado, que morou na Alemanha e escreveu para jornais alemães. Gilson Ribeiro aproxima Carolina ao viés literário e compara sua trajetória, sua escrita e sua reflexão à de personagens da literatura alemã – Mãe Coragem e Cinderela –, associando-a, assim, não apenas a autores canônicos como Brecht e Kafka, mas também a personagens ligados a uma forte tendência da literatura alemã expressa nos Märchen, ou contos de fada.
Últimas Considerações
A breve observação das capas, títulos e uma análise um pouco mais aprofundada de alguns trechos de resenhas sobre Quarto de despejo e sua autora Carolina Maria de Jesus, foi capaz de nos fornecer os primeiros indícios de recepção da obra na Alemanha.
Nesse sentido, temos que a recepção de Quarto de despejo pode estar inserida prioritariamente no viés político-social da obra, atrelado ao caráter exótico de um contexto político-social diferente contado em primeira pessoa.
Os trechos selecionados mostraram-nos que, cada articulista dá a seu artigo uma ênfase peculiar motivada tanto por suas próprias convicções, e sua leitura singular da obra, quanto pelo jornal para o qual escreve. Fica clara, nos poucos casos analisados, a tentativa de atrair para a obra a atenção do leitor alemão, o que ganha corpo na caracterização da autora, de forma até mesmo arbitrária, e também na caracterização da forma de escrita e aproximação de Carolina a personagens e autores consagrados da literatura alemã. No entanto, em alguns trechos há a presença de adjetivações e caracterizações desnecessárias o que pode caracterizar a perplexidade de constatar como uma negra favelada consegue sucesso no mundo da literatura.
Sendo este artigo parte de uma pesquisa de mestrado que se encerra deixando abertas portas para o surgimento de novas pesquisas, podemos dizer, em suma, que além de contribuir para a divulgação da literatura brasileira na Alemanha a tradução da obra teve também a função de desviar o interesse alemão pelo Brasil do plano da exuberância da natureza para relatos relacionados a condições de injustiça social.
Referências Bibliográficas
EVEN-ZOHAR, Itamar (1979). Polysistem Theory. In: Poetics Today, vol. 1: 1-2.
Teoria de los polissistemas, disponível em:
http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/EZ-teoria-polisistemas.pdf. Acesso: 01/07/2014
GENETTE, Gérard (2009). Paratextos Editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo. Editora Atelie.
KAFKA, F. (1992). Nachgelassene Schriften und Fragmente II. Kritische Ausgabe. Frankfurt a.-M.: Fischer Verlag.
LEFEVERE, André (1977) Translating literature: the German tradition from Luther to Rosenzweig. Amsterdam: Assen.
LEFEVERE, André (1990). Translation, History and Culture. London, New York: Pinter Publ.
MUNDAY, Jeremy (2001). Introducing Translation Studies. Theories and Applications. London: Routledge.
PEIXOTO, F. (1991) – Brecht, vida e obra. São Paulo: Paz e Terra.
PERPÉTUA, Elzira (2014) – A Vida Escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Ed. Nandyala.
SINCLAIR, John (2004). Trust the Text – language, corpus and discourse. London & New York: Routledge.
NOTAS
1 Kafka, Franz. Briefe 1902 – 1924. Org. v. Brod. P. 28
2 “Das Tagebuch ist ein Ort des Übergangs. Leben wird dort in Schrift transformiert… Schreiben kann dem Leben einen Rahmen verleihen und damit Halt geben.”