PROSA DE FICÇÃO FEMININA PÓS 64 NO BRASIL


PROSA DE FICÇÃO FEMININA PÓS 64 NO BRASIL
 

Profa. Dra. Marcia Cavendish Wanderley

 
“Minha profissão é a literatura, e nessa profissão há menos experiências de mulheres de que em qualquer outra, com exceção da arte dramática – menos experiências, quero dizer, entre as que são peculiares a mulheres. Porque a estrada foi aberta muitos anos atrás – por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot – muitas mulheres famosas, e muitas mais desconhecidas e esquecidas, que vieram antes de mim, tornando a trilha suave e orientando os meus passos. Portanto, quando vim a escrever, havia poucos obstáculos concretos em meu caminho” (Virginia Woolf, em discurso para a National Society for Women’s Service em janeiro de 1931).
A primeira metade da afirmação de Virginia Woolf, e ela está aqui falando da Inglaterra nos anos 30, poderia aplicar-se às mulheres brasileiras desta mesma fase quando muito poucas ingressaram com sucesso na carreira literária. Raquel de Queiroz (O Quinze), Dinah Silveira de Queiroz, um pouco mais tarde com Floradas na serra, Madame Leandro Dupré, como era conhecida literariamente a romancista de Éramos seis) e outras menos conhecidas foram exceções, privilegiadas com a aprovação de um público leitor e até, mas sem muita ênfase, de uma crítica literária então predominantemente masculina. O mesmo não se pode dizer, entretanto, quanto à segunda afirmação, pois no Brasil não havia (como na Inglaterra) para as mulheres que se arriscavam na área da literatura, um caminho suave e aberto por toda uma tradição de mulheres escritoras já amplamente reconhecidas como tal, e que inclui gênios literários da qualidade de Emily Brontë (Wuthering Heights) singularmente omitida neste time citado por Virgínia. Entretanto, a ausência desta tradição quantitativamente representativa – pois qualitativa tivemos sim, com a explosão de Clarice Lispector em Perto do coração selvagem (1945), um fenômeno comparável ao inglês – não parece ter impedido que nos anos 60 as mulheres irrompessem, com muita força, no universo literário brasileiro. Mais precisamente, no nebuloso período pós 64, quando os véus negros da repressão e da censura desceram sobre a população brasileira sufocando-a nos seus mais variados impulsos criativos, uma vereda, a principio tímida e mais tarde caudalosa foi aberta pela mulher no campo literário. Seja no romance conto ou novela, a prosa de ficção feminina abriu seu caminho no mercado editorial brasileiro tornando-se uma vertente com recepção garantida e cada vez mais ampla neste mesmo mercado. Resgatar, reunir e agrupar, segundo alguns critérios, toda essa produção vem sendo nosso trabalho há um ano. Um projeto ambicioso que não poderia esgotar-se em tempo tão exíguo mas que já apresenta alguns resultados que podem ser comemorados, como por exemplo, a produção de setentas verbetes, com informações biobibliográficas detalhadas, de escritoras que publicaram em editoras cariocas e paulistas, a partir daquela data até os dias atuais. Esta produção representa pelo menos a metade do trabalho a ser realizado, que quando completado, resultará na publicação de um catálogo que abrangerá todo o elenco de romancistas e contistas acima mencionado, precedido de um ensaio onde tentamos dividir toda essa abundante produção em algumas categorias . Divisão esta que embora não completamente definida pela variável geracional, terminou, por razões que se explicitarão no decorrer da análise, privilegiando-a .E embora as razões para a escolha deste marco inicial, 1964, possam parecer claras, para nós que vivemos os “anos de chumbo” da história brasileira, acreditamos também que existiram algumas relações, ainda não devidamente explicitadas, muito próximas entre a eclosão do chamado “boom” da literatura feminina nestes anos e o momento político e econômico vivido pelo país naquele período . Por isso não é demais retomar o fio desta meada e tentar trazer à tona este passado recente e extrair dele alguns elementos que nos ajudarão a entender a produção literária feminina que então floresceu. É isto que faremos agora
A Internacional da Juventude
Com este subtítulo, que glosa a expressão usada por Olgária Matos em A Internacional dos Estudantes (Matos, O., 1981) livro em que define e narra a história do movimento estudantil disseminado mundo afora em 1968, tentamos registrar a amplitude das transformações sociais que aquela geração provocou e das quais foi simultaneamente detonadora e vítima. Devastando, embora superficialmente como um furacão, as instituições mais estimadas pela sociedade patriarcal, aqueles jovens, hoje senhores e senhoras de 50 e 60 anos, provocaram rupturas contundentes. Foi uma geração sacrificada no altar da violação. Violação de normas e valores fatigados, armando revolucionariamente barricadas em torno da Sorbonne e do teatro Odéon na Rive Gauche como em 1848 os “comunards” o fizeram na Rive Droite. Abolindo hierarquias e empunhando a provocação como bandeira, estes estudantes liderados por Daniel Cohn-Bendit inspiravam-se em Marx e Marcuse e pregavam não apenas a revolução estrutural mas também a liberação do indivíduo. Rapidamente seus ecos fizeram-se ouvir por todo mundo (a Primavera de Praga e o Movimento Hippie dos E.U.A. entre outros, lhes são legatários). Um verdadeiro “arrastão” de juventude revolucionária varreu o mundo dos Estados Unidos à Argentina, da Bélgica à Tchecoslováquia, da França ao Brasil . “Movida por uma até hoje misteriosa sintonia de inquietação e anseios, a juventude de todo mundo parecia iniciar uma revolução planetária” (Ventura, Z., 1998). E aqui encontraria as condições oportunas para crescer politicamente. A ditadura militar (iniciada em 64) afiava as garras e implantava o fascismo na educação, estopim de uma revolta que avocou a si responsabilidade maior que aquela assumida pela juventude dos países ditos democráticos: derrubar a ditadura militar. Uma guerra na qual se envolveu até os ossos e da qual saiu, em sua maior parte, vencida, exterminada ou banida. Mas quem sobrou, teve muito o que contar. A geração que vivenciou os fatos mais contundentes da história brasileira deste século, não poderia deixar de testemunhar a respeito. No campo da literatura este testemunho traz como novidade a participação, embora pequena como veremos adiante, de mulheres romancistas e contistas, politicamente envolvidas com a luta contra a ditadura e que usaram o disfarce da ficção para denunciá-la. Mas se foram poucas as que denunciaram, inúmeras foram as que despontaram, naquele período, no mercado editorial brasileiro. Um fenômeno que tem, em seus bastidores, todos os ensaios de revolução e transformação mencionados, além da revolução sexual, ainda não enfatizada, mas que já se prenunciava radical. Um “laisser faire, laisser aller” sexual que abalou o edifício patriarcal secularmente alicerçado propondo novos padrões para as relações entre os sexos, emolduradas por um estado de compromisso político na defesa da supressão da sociedade de classes pregado pela marxismo então em alta. Foram sonhos apenas parcialmente realizados. Se as relações entre os sexos foram, de alguma maneira, transformadas, as relações entre classes permaneceu, e até recrudesceu o caráter espoliativo do capital nesta fase de globalização plenamente instalada. Mas as mulheres, estas sim, mudaram bastante. Uma mudança que, à sua revelia, a prosa de ficção feminina registrará em detalhes. Tivemos a oportunidade de acompanhá-las neste movimento que, literariamente se inicia nos anos 60 e vem progressivamente aumentando na contemporaneidade, num rastreamento que tentou identificar a grande heterogeneidade ideológica norteadora das várias gerações de escritoras estudadas. Desde aquelas que, de tão imersas no próprio “eu” esqueceram a realidade circundante – postura quase generalizada das que, na juventude, pagaram um exagerado tributo aos famosos e inocentes “anos dourados” – às que rompendo o contrato geracional de autocrítica ou autocomiseração, olharam para fora e para mundo atrevida e acusadoramente. Mas antes de relatar os passos dessa experiência voltemos ao contexto histórico e às condições que permitiram a eclosão da prosa de ficção feminina no Brasil neste período.
A Ditadura e a Cultura
“Qualquer pessoa que se interesse pela história cultural brasileira deste período, terá forçosamente que enfrentar o problema da censura”.
(Renato Ortiz em “A Moderna Tradição Brasileira)
A advertência feita por este autor poderia parecer supérflua se não viesse acompanhada por informações fundamentais para a análise da contribuição literária feminina na literatura brasileira desta fase. Informações que dão conta do processo de consolidação de um mercado de bens culturais no Brasil dos anos 60 e 70 como decorrente da própria reorganização da economia instaurada pelo Estado autoritário, articulador da segunda Revolução Industrial brasileira e introdução do país no processo de internacionalização do capital. Ao crescimento do mercado de bens materiais sucedeu então o desenvolvimento do mercado de produtos simbólicos, fenômeno que acontecia paralelamente ao exercício do arbítrio, da censura e da repressão estatais. Representado principalmente pelo setor da mass media, quando a tv iniciaria sua trajetória rumo ao domínio total deste espaço, outros bens culturais teriam ali seu lugar garantido. A literatura seria um destes, o que se comprova com o intenso desenvolvimento do setor livreiro e a multiplicação do número de editoras que atuavam no país nos anos 40 e 50. Do ponto de vista do escritor isto significava a atraente abertura de um mercado consumidor e possível libertação desta categoria da dependência do patronato estatal. Este panorama que reúne repressão ideológica e política intensas e exuberância na produção e difusão de bens culturais poderia parecer contraditório, mas não é pois trata-se de uma repressão que diz “não à especificidade da obra e sim á generalidade de sua produção” (Ortiz, R., 1998) Controlada pela ideologia da “segurança nacional” a produção “bem comportada” é recebida pelo Estado autoritário ao qual se aliam os empresários culturais que, “politicamente neutros” aceitam sua campanha politicamente “moralizadora”. Moralismo abominado pela elite intelectual, mas absorvido por uma população submetida à doutrinação implacável do “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. É esse Estado, repressivo e ao mesmo tempo “promotor da cultura, a baliza sob a qual se desenvolverá a produção ficcional do Brasil naqueles anos, e principalmente após 68, pois passado o momento crítico de sua implantação, a intelectualidade havia sido razoavelmente por ele poupada até aquela data: Somente em fins de 68 a situação volta a se modificar quando é oficialmente reconhecida a existência de guerra revolucionária no Brasil”. Para evitar que ela se popularize, o policialismo torna-se verdadeiramente pesado, com delação estimulada e protegida, a tortura assumindo proporções pavorosas (Schwarz, R., 1992). Uma ficção inibida por uma censura drástica, subliminarmente internalizada e transformada numa autocensura. Situação esquizofrênica que colocava os escritores diante do impasse criado pelo vigência simultânea do estímulo à produção e das limitações da censura. Talvez isto explique a pequena participação da produção especificamente literária dentro da expansão alcançada pela industria e comércio livreiros a partir de 1964: apenas 1.141 exemplares de um total de 51.912.564 livros produzidos neste ano. É bem verdade que não seria bem em seu início que o regime cerraria mais tenazmente suas garras sobre a produção inlectual e criativa brasileiras. Reconhece-se mesmo que “uma vez que a revolução se instalou solidamente, sobreveio um período de três anos de relativa tolerância (Hallewell, 1985) O espaço do vencido era relativamente preservado desde que não representasse uma ameaça ao universo dos vencedores. Mas a partir de 13 de dezembro de 1968 as coisas mudam de figura. O “segundo golpe seria muito mais violento que o primeiro, com o fechamento do Congresso Nacional e destituição dos direitos políticos de todos os brasileiros. A imprensa passa a ser abertamente censurada e as leis de punição aos editores infratores que gradualmente vinham se tornando mais rigorosas, com julgamentos realizados a partir de então, por tribunais militares e não apenas civis (de que é exemplo a lei de n. 314 de 13 de março de 1967) são definitivamente concretizadas pelo decreto lei nº 1.077 de 26 de janeiro de 1970, estendendo a censura prévia a todos os livros publicados dentro do território nacional e não apenas a jornais e revistas ou livros de conteúdo manifestamente “subversivos” como acontecia até então. É dentro deste quadro de ambigüidades para a criatividade literária que a participação de mulheres romancistas e contistas irá crescer no universo editorial, protagonizando um fenômeno cuja análise não deveria prescindir do conhecimento das variáveis culturais, políticas e econômicas que desencadearam seu aparecimento.
A Vez das Mulheres
“Meus olhos molhados, insanos dezembros, Mas quando eu me lembro, são anos dourados… Ainda te quero, bolero nossos versos são banais. .. Mas como eu espero, teus beijos nunca mais…”
(“Anos dourados”, Bolero de Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda)
Os primeiros romances e contos femininos publicados a partir da data que estabelecemos como marco (64) foram escritos por mulheres que viveram suas juventudes (ou adolescências) nos saudosos anos 50, ou como são mais conhecidos no Brasil, “anos dourados”. Por que dourados? Tabus e preconceitos limitavam os passos daquela geração classe média pouco afeita a desafiá-los . No caso das mulheres o controle era exercido com severidade e a quebra da norma severamente punida. As moças deviam casar virgens apesar dos noivados tórridos e quando casadas qualquer deslize era fatal no comprometimento da reputação, e a infidelidade um direito abertamente atribuído aos homens, nelas assumia caráter de tragédia. O mercado profissional muito fechado e restrito, determinava a multiplicação de normalistas (Leila Diniz foi uma delas) e no ensino superior, na faculdade, como se chamava então, proliferavam ainda as escolhas dos cursos apelidados de “espera marido”. E era principalmente isso que se fazia. Esperava-se o príncipe que nem sempre era tão encantado. E tentava-se ser feliz com ele a vida inteira. Para a literatura da maior parte das escritoras desta geração, esta ideologia funcionou como um fardo pesado, e desprender-se dele uma tarefa hercúlea em que desperdiçaram forças que talvez se empregadas na construção de um discurso mais contestador e menos auto-analítico, produziriam resultados mais positivos. Seqüelas que comentaremos na oportunidade em que as reunirmos em grupos, e que foram, na maior parte das vezes, superadas pelas que persistiram através dos anos na busca de sua expressão literária.
E a despeito disso, foram anos dourados!
Dourados talvez pela esperança que animava aquela geração de intelectuais, e a “convicção de estarem vivendo um momento particular da historia do Brasil” (Ortiz, R.,1998). A utopia nacionalista e o desejo de promover o desenvolvimento de um país estagnado era a bandeira política. Vivia-se na “República dos Sonhos” como quis Nélida Piñon em seu quase épico romance homônimo e a juventude acreditava neles e se “empenhava numa forma particular de engajamento cultural diretamente relacionado com a militância política” (Hollanda H. B., 1978). Os últimos anos da década prometiam, com Juscelino e a indústria automobilística, uma decolagem rumo ao urbanismo industrial que, alcançado em parte, não alterou a estrutura do país divido por profundas desigualdades regionais e de classe. Mas não se pode omitir que é também no fim dos anos 50 que a “bossa nova” passa a embalar todos estes sonhos, românticos tanto quanto os filmes (principalmente norte-americanos) que a industria cinematográfica ainda não sufocada pela televisão produzia, e que se constituíam (assim como os seus astros ) em verdadeiras balizas norteadoras do comportamento da maioria dos jovens daqueles, um pouco banais, mas dourados anos. As conseqüências de todo o romantismo da década, romantismo de esquerda que acreditava em sua capacidade de mudar o mundo através da arte, e romantismo politicamente descompromissado, cultor de um solipsismo exagerado que já desponta na poesia da geração 45, se farão sentir, dramaticamente nos anos 60.
Em 64 o ouro se transforma em chumbo liquido escorrendo sobre os sonhos daquela juventude e em 68 o sangue esvaído nos porões da tortura, o símbolo pleno do seu martírio. Os “anos dourados”, cobertos de azinhavre, enegreceram. Mas disso não falou muito a literatura de então . Uma literatura predominantemente produzida por homens, que subitamente silenciada pelo trauma do golpe, abriu espaço a que outras manifestações de protesto (espetáculos teatrais como Opinião, Arena Conta Zumbi e outros) altamente vendáveis no mercado de bens culturais, viesse à tona. Protestos que, a bem da verdade, não punham em risco o poder ditatorial e funcionavam como válvula de escape para uma juventude efervescente e amordaçada. “A literatura aparece desarticulada como se não tivesse encontrado a forma de adequar-se a essa efervescência (Hollanda, H. B., 1976). O comentário fotografa a retirada que não foi global, pois muitos ficcionistas tentaram sobreviver ao esmagamento através de críticas, alegoricamente disfarçadas, ao regime: Quarup e Bar D. Juan (Antonio Callado), “Agá” e “Os Ambulantes de Deus” (Hermilo Borba Filho), “Emissários do Diabo” (Gilvan Lemos) e “Roteiro da Agonia” (Gilvan Lemos), nos anos 60. Na década 70, mais explícitos foram L. F. Emediato, com Rebelião dos mortos, processado após obter prêmio, e Ignácio de Loyola Brandão com Zero: romance pré-istórico”, inicialmente publicado na Itália e proibido logo depois de sua publicação no Brasil e uma única representante feminina, de que tenhamos conhecimento, o que não é pouco dadas as condições da época, Heloneida Studart, com sua trilogia, O pardal é um pássaro azul, Passageiro da agonia e Padim Ciço, o primeiro destes escrito e publicado no calor da hora e sob a mira implacável da censura.
Mas de maneira geral pode-se afirmar que houve uma retração da prosa ficcional naqueles anos cinzentos e coincidentemente uma maior participação feminina relativa dentro desta retração. Como se os homens houvessem inconscientemente aberto um espaço para que as mulheres tivessem a sua vez no mercado editorial. O que na verdade não aconteceu. Uma rápida retrospectiva histórica constata que aquele foi um período agitado por forças sociais díspares, que vão do moralismo comportamental e fechamento políticos impostos pela ditadura ao desbunde artístico e sexual da juventude provocados pela própria repressão. A luta feminista, reativada internacionalmente aqui chega, a princípio timidamente e mais tarde ostensivamente integrando o coro das minorias reivindicadoras dos anos 80 (substitutivo da ênfase sobre a luta de classes das décadas anteriores) com propostas de ocupação de espaços sociais até então não reivindicados pelo sexo feminino. Que as mulheres começaram a ocupar estes espaços, disto não temos a menor dúvida. E a literatura foi um dos espaços mais cortejados por suas representantes dos setores médios, algumas delas já também se instalando no nobre espaço universitário que as acolheu com prazer quando a ele se candidataram. O mesmo se diga do mercado editorial, que acolheu com. complacência as mulheres que vieram a disputar com os homens o status de escritoras (romancistas e contistas principalmente, mas também poetas e ensaístas) pois, não apenas havia então bastante espaço livre neste mercado em plena expansão de produção (com a modernização do equipamento, crescimento da indústria da celulose e do próprio mercado consumidor em ascensão por conta do chamado “milagre brasileiro”) como porque a literatura que traziam à cena não lhe causaria embaraços com a censura. Assim, se a retração da produção literária masculina alargava ainda mais o espaço editorial, a oferta temática da literatura feminina naquele momento vinha atender às aspirações de um público de mulheres satisfeitas por se verem reproduzidas e analisadas até o esgotamento, em personagens construídas por representantes de seu próprio gênero. Acresce a tudo isso o fato de que essa literatura não se constituía em ameaça para os editores, permanentemente sob a mira da censura naquela fase. Isto porque não foi politicamente revolucionário ou contestatório, o discurso das mulheres que publicaram ficção nos anos 60. E se podemos dizer que ele fez a crítica de costumes, das relações de gênero e dos papéis destinados à mulher na sociedade até então patriarcal, usou para isso de uma linguagem prioritariamente queixosa e magoada, privilegiando, como cenário o seu mundo privado, onde os conflitos geralmente instalados em torno da família resolviam-se sempre de forma negativa para ela. A efervescência da sociedade envolvente não aparece nesta fotografia tímida, onde as mulheres, desenvolvem um interminável e lamuriento discurso diante de um espelho metafórico que lhes devolve uma imagem depreciativa. Todos aqueles fatos somados (alargamento do mercado, boas relações com a censura, e a retomada da luta feminista) talvez ajudem a explicar a copiosa participação da prosa de ficção feminina no mercado editorial que se inicia nos “anos de chumbo” e que termina por se afirmar, por razões diversas, nas décadas subsequentes. Mas não explica o seu conteúdo, contrastante ao da literatura feminina inglesa que ainda no século XIX foi marcado pela rebeldia e paixão de mulheres que queriam transformar o mundo e sua própria situação dentro dele. Emily e Charlotte Brontë, anti-vitorianas em pleno reino da hipocrisia produziram em linguagem, luxuriosa e proibida, personagens que revolucionaram comportamentos. George Elliot, ela própria modelo de ruptura, revelando em “Romola” os dilemas da obediência feminina: “The duty of obedience ends and the duty of resistence begins” (apud Showalter, 1977). E tantas outras que seguiram caminhos idênticos apesar do profundo treinamento repressivo da sociedade vitoriana, e que fizeram a força da literatura escrita por mulheres na Inglaterra, abrindo caminho para que, no século XX, repercutisse em obras grandiosas como a de Virgínia Woolf.
Uma Pausa Para Clarice
“Sinto a forma brilhante debatendo-se dentro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que devo dizer?”
(Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem, 1944)
Clarice sabia muito bem o que devia dizer, e disse-o magistralmente. Não sei se o mesmo pode ser afirmado, sem querer generalizar, a respeito da literatura feminina que nos anos 60 despontou no Brasil. Apesar da raiz forte da qual germinou, a poderosa voz de Clarice Lispector que lhe abriu caminho, esta literatura não apresentou o mesmo vigor . Vigor que nela foi imediatamente reconhecido por Antônio Cândido no artigo intitulado “No Raiar de Clarice Lispector” logo após a publicação de “Perto do Coração Selvagem” em 1944. Clarice inaugurou uma literatura feminina e feminista, mas sobretudo introduziu uma linguagem nova no universo realista que a circundava. “Os perigos de um súbito momento de clarividência” (Xavier, E., 1998) a respeito das constricções do universo feminino, mas também o impacto transformador desta revelação é sua grande contribuição para a causa feminista . Mas sua literatura é muito mais que isso. Foi o marco, a linha divisória entre as representações do universo feminino até então construídas no Brasil, e as que viriam depois. Mas as escritoras que mais se beneficiaram da irradiação de sua luz não foram as que imediatamente lhe sucederam. Clarice foi, como estas últimas, ideologicamente nutrida pelos “anos dourados”, mas o legado que estes lhes deixaram, repercutiu em sua literatura de forma singular . E esta não é a única herança de que desfruta. É descendente das Brontë na força e de Virginia Woolf na penetração psicológica. Não de uma psicologia ortodoxa, em torno de personagens à maneira do romance do século XIX, mas de uma capacidade de “deter-se em torno dos sinais (pois em Clarice tudo prenuncia) e neles palmilhar suas excrecências, cavidades, estremecimentos” (Corrêa. R., 1994). Um fio invisível a liga, enquanto romancista, ao “stream of counsciousness” do romance joyceano, mas nos contos, possui uma tal singularidade de expressão, que o processo criativo parece inaugurar-se ali, com ela. Não é realista, mas relata experiências . E a realidade contida nos relatos é sempre transfigurada pela significação transcendente com a qual brinda cada um dos fatos desse relato.
Clarice não é uma escritora dos anos 60, pois sua consagração como romancista foi alcançada com seu primeiro livro, Perto do coração selvagem ainda nos anos 40, ao qual se seguiram outros de qualidade próxima: O Lustre, 1946, A cidade sitiada, 1949, A maçã no escuro, 1961, A paixão segundo G.H.,1964, Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres”, publicado em 1969. Seus livros de contos entretanto, são todos publicados naquela década Laços de família, 1960, A legião estrangeira, 1964, Felicidade clandestina, 1971, Onde estivestes de noite, 1971 e A via crucis do corpo, 1974. Em 1976 publica seu último romance, A hora da estrela, substantivamente distanciado da produção anterior, onde descreve com voz emocionada e despida da crueldade que lhe é peculiar, a experiência de vida malograda de uma jovem imigrante nordestina no Rio de Janeiro. Ali, a visão amorosa da fragilidade humana subjacente às explicitas ironia e mordacidade com que trata em geral suas personagens, é a tal ponto evidenciada que o resultado pode resvalar para uma “talvez pieguice que aborrece a arte da modernidade” como disse Jorge Wanderley em ensaio sobre a autora (Wanderley, J., 1994) Um “kitsch”, talvez programado como programada parece ter sido a escolha pelo tema “social” dentro de uma obra desinteressada, até então, desse topos. E dizemos, até então, porque a cronologia aqui pode ter sido determinante, na medida em que este é um romance escrito após a dura experiência dos anos 60 vividos pela autora, onde à crueldade dos atos da ditadura militar, acresceram-se os fatos sombrios de seu próprio destino: o incêndio por ela provocado causando-lhe danos irreparáveis, a moléstia mortal de que é acometida. Um momento de fragilidade maior em que abre a guarda para deixar correr a emoção e em que demonstra a consciência de que algo mais deve ser dito, de que a injustiça deve ser denunciada.
É assim que fazemos a inclusão, com honrarias, de Clarice Lispector neste rol de ficcionistas que se inicia nos anos 60 . Uma inclusão que vê na sua obra a questão feminista confundindo-se com a questão literária numa forma de inquietação que não foi assumida por suas sucessoras, navegadoras em mares semelhantes, os do universo privado e familiar mas sob uma calmaria inibidora da transfiguração criativa. E mais, com a certeza de que ela foi a ponte dourada que deveria ter sido atravessada por todas as que a sucederam na difícil arte da expressão literária .
Uma tarefa retomada
“A partir da produção feminina brasileira nos últimos dez anos, é possível dividir esses textos em dois grupos principais, com subdivisões internas: o primeiro compreende aquelas autoras que talvez se destaquem no estilo, mas não conseguem renovar seus papéis enquanto mulheres na tradição literária: e o segundo aquelas que apresentam uma nova voz no seu discurso. As tendências do primeiro grupo são: 1) existencial; 2) experimentação textual; 3) alegoria política. No segundo grupo notamos, por outro lado, a ênfase no humor, e o uso da forma de diário, cartas, poemas, sob o ângulo do erotismo” (Luiza Lobo, em “Dez anos de literatura feminina brasileira”, Crítica sem Juízo, 1993, p. 48-65 – o artigo diz respeito à década de 1975-1985).
Depois da pausa, a tarefa mais difícil, ou seja, a de agrupar, discutir e analisar a copiosa produção de que viemos falando até agora e tentar, sem cometer grandes enganos, uma avaliação consistente de seus resultados. Não é tarefa que tenhamos inaugurado, pois como sê vê acima, dela tratou Luiza Lobo no ensaio aqui citado. Na verdade nosso estudo segue seus passos e persegue suas idéias. Assim como a crítica literária revisionista persegue o fio da prosa de ficção feminina através dos tempos aqui tentamos nos guiar por um estudo anterior procurando enriquecê-lo e aprofundá-lo com os recursos da interdisciplinaridade. Um caminho pela primeira vez palmilhado no Brasil por Lúcia Miguel Pereira que em sua análise da obra de Machado (“Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico”), publicada pela primeira vez em 1938 e principalmente em Prosa de ficção no Brasil: de 1870 a 1920 (1950) já utiliza pioneiramente esta abordagem analítica . E esta é uma citação que homenageia a primeira representante do sexo feminino no Brasil a aventurar-se no caminho íngreme da crítica literária, até então exclusividade masculina, e sugere aos estudos literários feministas, este trabalho de recuperação da ensaística desta área.
Retomemos o texto de Luiza Lobo quando nos informa que “apesar da ditadura no período 1964-84, com o início da abertura política em 1979, a participação feminina na literatura brasileira aumentou de forma impressionante no período 1975-85. No decênio anterior, estabeleceu-se o curioso fenômeno de que as mulheres participaram ativamente das guerrilhas e no movimento civil, mas, relativamente, pouco escreveram sobre temas políticos na ficção” (Lobo, L., 1993). Estas são verdades que tivemos a oportunidade de confirmar neste trabalho, e até mesmo explicá-las a partir da correlação existente entre os dois fatos: sem problemas com a censura e auxiliada pelo crescimento da indústria cultural a prosa de ficção feminina encontra caminho aberto para expandir-se. E se isto vai acontecer ainda timidamente na década de 60, crescerá extraordinariamente a partir de 1975, data em que a famosa abertura ainda não se concretizara. É verdade que algumas das escritoras que se inserem nesta fase e que são praticamente contemporâneas de Clarice Lispector, já vinham publicando seus contos e romances desde a década 50 e embora não tivessem alcançado a complexidade narrativa da primeira, encontraram uma recepção calorosa de um público leitor. É o caso de Lygia Fagundes Telles, com seu romance “Ciranda de Pedra” (1954). Valorizamos nele a bem construída atmosfera abafada em que circula a protagonista (Virgínia) enredada nos laços familiares tragicamente desfeitos .Solitária e triste, esta personagem perambula de uma família à outra (a da mãe já morta e a do pai que não a assume) sem encontrar um espaço para si mesma, realizando nesse périplo uma tímida crítica aos valores da tradicional família burguesa paulista. Um queixume prolongado a que fariam eco muitas das autoras que publicaram seus romances e contos nas décadas seguintes.
Mas Lygia Fagundes Telles não é bom exemplo para a tese que aqui se defende, a do descompromisso social com que a prosa de ficção feminina faria sua estréia neste período, pois em 1973 já tentaria filtrar, em livro ainda hoje muito comemorado, As Meninas, as transformações iniciadas pela sociedade brasileira nos anos 60 e consolidadas nos anos 70: a tragédia política vivida pela juventude estudantil (e não só por ela, digamos) a abertura do universo das drogas para a classe média e a liberação sexual inaugurada pelas jovens dessa mesma classe. Embora aplaudindo a empreitada a que se propõe a autora, a tentativa de dar conta do universo social envolvente, inaugurando do ponto de vista da prosa de ficção feminina um discurso que se queria político, nos arriscamos a dizer que esta não foi uma tarefa bem sucedida. Talvez porque as experiências narradas não tenham sido vivenciadas pela autora, que delas deve ter sido resguardada por sua própria origem social, as personagens não convencem em seus papéis, sejam os de: revolucionária nordestina liberada (Lião), ou de beldade alienada e permanentemente drogada com problemas psicanalíticos (Ana Clara) ou mesmo de burguesinha récem-saída do internato (Lorena, esta última até mais convincente), três jovens interagindo num pensionato religioso do Rio de Janeiro, cenário irreal como a própria história contada . Se “Às meninas” falta força vital, à apresentação das mesmas estão ausentes as regras básicas da construção de um texto literário. O entrechoque das vozes narradoras, que repetem os chavões dos discursos político e psicanalítico da época (com destaque para os da esquerda e da iniciação no universo das drogas), entre os quais insere-se a voz autoral (através do narrador implícito) promovem uma tal confusão narrativa que o leitor nunca sabe muito bem, “quem” está falando. A descontinuidade temporal é outro problema não resolvido. Embora os capítulos estejam numericamente ordenados a confusão temporal se estabelece, comprometendo a estrutura do romance. Convenhamos entretanto que se não cumpre inteiramente a proposta de trazer para a ficção o contexto histórico envolvente, o romance tem o mérito de tentar deslocar para o campo do coletivo a temática da ficção feminina, envolvida então prioritariamente com o privado, ou seja, com o universo restrito da família, com as relações ali construídas e as repercussões destes dramas sobre as vidas destas romancistas e contistas das quais falaremos neste bloco. Experiências que, na maioria das vezes, foram transformadas em textos subjetivos e pessimistas quanto à possibilidade da auto-realização da mulher dentro desse contexto. Dentro deste quadro, As Meninas é uma tentativa arejada e como tal o avaliamos aqui, embora dois anos mais tarde , um ensaio mais bem sucedido de trazer à tona a arena política da época, tenha se concretizado. O pardal é um pássaro azul (1975), de Heloneida Studart, embora alegórico, é mais eficiente em seu programa de crítica política e de costumes. Mas dela falaremos mais tarde pois trata-se de um episódio isolado em meio à corrente predominante daquela fase. Voltemos às suas águas.
A Voz Lastimosa
“Para mim, romper o casamento significou precipitar-me de cabeça no vazio. Procurei emprego. Até então nunca tinha considerado a possibilidade de me sustentar. Resolvi emagrecer para fixar minha postura de velha. Estou, agora, com o corpo que terei quando velha: cinqüenta quilos, apenas dois mais do que meu peso na mocidade. Alimento-me com reserva, cultivo o prazer de esboçar a magra versão óssea da figura que começa a caminhar para suas cinzas.”
(Rachel Jardim, Inventário das cinzas)
Conservo aqui a citação utilizada por Luiza Lobo para exemplificar a imagem deplorável que faz de si mesma a escritora naquele romance (que inclui um diário autobiográfico) pois nada me pareceu mais contundente como imagem do tormento sofrido por essa geração de mulheres, subitamente jogadas numa realidade para a qual não possuíam, nem competência prática e nem força psicológica para enfrentar. Ao realizar o inventário, com lucros e perdas, da juventude da geração dos anos 60, uma geração “que iria experimentar os limites não apenas na política mas também no comportamento”, Zuenir Ventura foi cruel mas também fidedigno quando avaliou os resultados destas mudanças para as mulheres. As novas regras criadas em torno das relações conjugais eliminavam as noções de ciúme e de traição, valores considerados fetiches da moral burguesa, defendendo-se a crença de que, assim, as “relações amorosas ganhariam em consistência e solidez”. Esta era a teoria, aceita por muitos, mas na prática resultou em catástrofes conjugais de tipos variados, principalmente separações, onde as mulheres foram as perdedoras mais notáveis. “Na prática isso significava para elas deixar a confortável condição de apêndice econômico, a segurança psicológica de um lar, e partir para a arriscada aventura da experimentação existencial, que se podia traduzir na busca de uma profissão, em novas e descomprometidas relações, ou às vezes, em um mergulho na solidão” (Ventura, Z., 1998). É o impacto desses mergulhos que iremos ouvir, repetidamente, nestas vozes lastimosas, cujo acompanhamento iniciamos aqui com Rachel Jardim. Buscando, por caminhos diversos, marcar sua presença na prosa de ficção brasileira, escreveu livros autobiográficos como Os anos 40, coleção de crônicas de sua infância e adolescência vividas em Juiz de Fora e no Rio de Janeiro, bem no estilo “retrato da mineirice familiar”, detestada, mas de certa forma cultuada. Visitas, namoros, o catolicismo contestado, muita literatura e principalmente o sentimento da “diferença” em relação ao comum dos mortais, perpassam a narrativa de uma escritora ainda experimentando a pena.
Pertencendo a uma geração anterior (é contemporânea de Lygia Fagundes Telles e sua companheira nos queixumes) foi certamente influenciada, enquanto jovem, pelas novas e atraentes idéias que circulavam principalmente entre a elite intelectual. Entretanto, sua herança de tradicional família mineira certamente perseguiu-a, tornando menos fácil para ela, do que para as cariocas em geral, assumir aquelas mudanças tão radicais e desbundadas. Estas dificuldades ficariam patentes em outro livro, O penhoar chinês, onde “malgré elle même” (pois avalia-se ali libertária e moderna) constrói e defende uma verdadeira teoria da feminilidade, à maneira mineira. Ali a mulher é sinônimo de calma, ponderação, introspecção, delicadeza, qualidades que vão sendo metaforizadas pelos desenhos configurados nos riscos de um bordado, no mencionado “penhoar chinês”. Para bordar é preciso ter um risco, para viver, é necessário um mapa que nos guie no caminho das emoções permitidas e legitimadas. Não se critica aqui as cumplicidade e aliança com o universo feminino que o texto manifesta, mas sim que esse universo pareça tão fechado e sem saída conduzindo a uma solidão inevitável como aquela a que estará condenada a personagem (Elisa) no final do romance, apesar da vida variada (um casamento e várias experiências amorosas) de que desfrutou. Uma solidão que é aceita quase como a um estigma compartilhado por todo o gênero feminino e transmitido através das gerações. A mãe ensina a bordar e a sofrer, parece nos dizer este texto consagrado ao cultivo do privado e da casa enquanto espaço inviolável da cumplicidade feminina. Longe do clima fúnebre de O inventário das cinzas é no entanto uma narrativa que recende uma imensa tristeza, melancolia que se literariamente é de alguma forma capitalizada, transformando-se numa atraente atmosfera, em termos ideológicos reafirma as limitações femininas diante do mundo público dos homens. Do ponto de vista da realidade política e social vivida pelo país naquela data (o romance foi publicado em 1985, mas certamente escrito ainda em pleno clima do regime de exceção) a do lento retorno a um estado democrático após o rugir da ditadura, nenhum rumor. As personagens vivem em instâncias etéreas, e em tempo de rememoração proustiana, o seu “percurso de solidão” (Madureira, P. P., 1985) constrangimento a que são condenadas as mulheres naquele universo patriarcal.
Retomando esta história dos constrangimentos provocados por aquela ética severa dos homens sobre a psicologia feminina, Helena Parente Cunha em Mulher no espelho (1985) desloca para Salvador (Bahia) o cenário do enredo, que, para quase toda essa geração de mulheres escritoras, parece estar no âmago de sua imaginação criadora, a história de sua própria imagem vilipendiada pela espoliação masculina: “E vou começar a minha estória. Agora, na superposição de meus rostos, em convergência de datas. Aqui no cruzamento de meu corpo com o espaço de minhas imagens. Tenho o que dizer pois vou dizer-me a mim mesma (Cunha, H. P., 1985) mas, como qualquer pessoa que se põe diante da memória ou dos espelhos.” O recurso confessional é mais uma vez o caminho literário eleito e o lamento dorido é prolongado nesta autora que sob uma dupla identidade (a real, passiva e a do espelho, revoltosa) realiza uma reflexão ininterrupta em torno de si mesma e de seu “estar no mundo”: Não desejo narrar a mulher que me escreve. Quero narrar a mim mesma somente” (Cunha, H. P.) Mas quem é ela? Perseguindo obsessivamente a própria identidade, a voz narradora (a do espelho) descreve amarga e punitivamente a mulher que reflete: “a heroína do fracasso cotidiano, do sofrimento anônimo, da miséria sem remédio”. Diferente do sofrimento elegante em que se compraz Elisa, a personagem de Rachel Jardim em O penhoar chinês, e do desconforto vago e intelectualizado de Virgínia em A ciranda de pedra, a personagem, inominada, de Mulher no espelho é sangrenta e sexual na flagelação que se inflige, de um lado e se submete, de outro. Autoflagelação que se transforma em ódio derramado sobre o universo familiar que a cerca e do qual tenta se libertar por rompimento violento, que termina em remorso partilhado pela personagem e seu duplo. Este aspecto autopunitivo do comportamento das personagens de grande parte da prosa de ficção feminina deste período é comentado pela própria autora em artigo onde fornece uma espécie de guia para a leitura de sua obra e que foi traduzido para o inglês: “The woman shaped by patriarchal ideology could not escape from the prison without shouldering the burden of self-reproach, without paying the price of transgression. The narrative of several women authors attest to this feeling of guilt and the protagonist of Mulher no espelho is no exception to the rule (Cunha, H. P., s/d). E realmente as violências que são praticadas no romance contra a “instituição” e o “Nome do Pai” são penalizadas pela morte do filho chorado por ambas, a mulher real e a mulher refletida: “Agora estamos paradas, uma olhando para a outra, os pés roídos de ratos. Os espelhos multiplicam as imagens até o infinito. Mas nosso remorso nos une. Meu rosto no espelho é o dela. Ela sou eu. Eu sou ela.” No final os espelhos se rompem metaforizando o reencontro da própria personalidade e da identidade feminina da protagonista.
Este é o desfecho de uma narrativa contada através de espelhos que da realidade histórica circundante nada mostram, confirmando a hipótese de que o excesso de subjetivismo e a contínua reflexão autobiográfica desta fase impediram a filtragem de uma realidade social em que o registro das mudanças (políticas e comportamentais) poderia estar presente. Este comentário não significa a exigência de uma literatura politicamente engajada com a causa revolucionária dos anos 60 mas a indicação da existência de um roteiro adotado e partilhado por muitas na prosa ficcional feminina do período. Roteiro que é também político pois denuncia as limitações do universo feminino e os abusos de poder praticados contra a mulher.
Helena Parente Cunha publicou outros livros de ficção, Os Provisórios (contos, 1990), A casa e as casas (contos, 1998), As doze cores do vermelho (contos, 1998), mas Mulher no espelho permance sendo sua obra mais polemizada pelo choque que causaram sua linguagem rasgada e o comportamento quase debochado da protagonista, ainda hoje considerado, por muitos, como inadequado para uma mulher.
Lya Luft é mais uma destas ficcionistas que em sua criação estiveram envolvidas com as tragédias resultantes da “débacle” da família patriarcal, uma decadência lenta que muito trabalho e matéria forneceu à literatura brasileira. Na década de 30, José Lins do Rego apropriou-se deste veio e produziu a crônica do declínio do império econômico das usinas nordestinas, declínio que arrastou em sua esteira os valores e práticas da grande família patriarcal considerada por muitos, como Gilberto Freyre (Freyre, G., 1936) a célula mater da sociedade brasileira. Na década 60 a aceleração das mudanças culturais que já conhecemos terá como intérprete e protagonista destas mesmas mudanças, o último e até então mais vitimado elo dessa corrente: a mulher. Posicionando-se como o ser real central dentro deste triângulo familiar (pai, mãe, filhos) que no caso da família patriarcal reproduz-se em escala progressiva nos parentes e aderentes que constituem a “entourage” observadora participante de suas desditas, Lya Luft procura, através de uma busca incessante da infância perdida, entender-se como sujeito histórico sobre o qual se depuseram os ônus daquela decadência. Decadência que no seu caso aparece metaforizada nas figuras estranhas e monstruosas com as quais, à maneira do romance gótico, Lya Luft povoa seus romances: “velhos, doentes, loucos, anões, autistas, enfim daqueles que vivem a segregação, isolados da sociedade no mundo restrito e fechado de um sótão ou um quarto”, (Vianna, L. H., 1997, p. 69). Um verdadeiro “circo dos horrores” que acentua a atmosfera abafante e enjoativa na qual locomovem-se as protagonistas permanentemente angustiadas e perdedoras, ou de entes queridos (O quarto fechado), ou de amores não compreendidos (As Parceiras) ou mesmo da própria identidade (O Exílio). Mais uma vez voltado para si próprio, esse discurso, competente em seu programa, não considera qualquer possibilidade de “descentramento” do objeto focalizado permanecendo auto-suficiente em seu universo restrito: o universo do privado, do mundo interior, da desesperança e do vazio criado pelas espoliativas experiências infantis.
A Madureza, Essa Terrível Prenda
(Carlos Drummond de Andrade)
Ainda nos anos 60 uma jovem de apenas 18 anos surpreenderia sua geração e seus colegas de ofício ao merecer, com denuncia feita contra clínica de repouso paulista, o primeiro Prêmio Esso de reportagem doado a uma mulher no Brasil. Alguns anos mais essa precocidade se repetiria ao ser a primeira mulher admitida por concurso na valorizada carreira diplomática, gloria que lhe seria suprimida ao desposar o também diplomata de carreira e intelectual Sérgio Paulo Rouanet (na época o Itamaraty não admitia mulheres casadas em seus quadros). Glória maior entretanto almejava Cecília Prada, a jovem mencionada, que ainda naquela época voltou-se para a literatura e escreveu um livro que permaneceu por muito tempo inédito mas que viria à tona em 1978, ganhando, neste mesmo ano o prêmio “Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA): “O caos na sala de jantar”, livro de contos, ou um romance disfarçado em narrativas curtas (menos a primeira, que é longa como uma novela) e densas, todas elas ligadas por um tema comum que se desdobra em outros de natureza semelhante: a cidade natal e a casa patriarcal. A velha casa da infância e adolescência para onde a protagonista retorna após muitos anos de ausência e o reencontro/desencontro da protagonista com os elementos que são seus ingredientes concretos e psíquicos: o circulo familiar, os objetos, os móveis etc, âncoras através das quais busca-se recuperar o “tempo perdido” e a identidade ameaçada. Âncoras que se transformam em estorvos, obstáculos a ultrapassar no desejado caminho para a liberdade e plenitude individuais, e sobre os quais a autora despejará sua ira ao desencadear “o caos sobre eles”…. “o caos na sala de jantar” com um machado: sangrentos pedaços, espalhados e o “caos na sala de jantar” (Prada, C., 1978) Se a última expressão aparece sublinhada é porque ela não só resulta em título do livro mas porque expressa a imagem contundente de destruição desejada pela autora. Destruição que se repete nos outros contos chamados por ela de Contos sanguinários, em a que violência profanadora dos valores sagrados da família irrompe violentamente, mas que guardam também um compromisso muito maior que o desejado com o universo que pretende degradar: o universo confortável das instituições consagradas e respeitadas em seu poder “coercitivo” como diria Émile Durkheim, com propriedade. E compromisso àqueles que as representam e através de cujo olhar a protagonista (Leonora) existe e por extensão sua autora que confessa sua “inexistência” fora desse olhar”: “Eu que preciso deles, e agora aqui estou, criança, e cansada, e perdida, tomem-me nos braços, afaguem-me, devolvam-me a identidade perdida” (Prada, C., 1978). Não só a família mas também a cidade é invocada por essa fugitiva que não consegue completar sua fuga, prescindir das raízes, do solo confortável da tradição familiar: “a teus pés deponho o meu fardo. Cidade: abre-o devagar, porque verás que de quase nada é feito, uma pintura da renascença, um pedaço de aldeia francesa em flor, uma luz de crepúsculo em Oklahoma, é isto vida? (Prada, C., 1978). A sensibilidade em carne viva revela o desconforto de quem deseja, mas não consegue completamente, romper o tecido vital de estruturas arcaicas, cujo esgarçamento produz mais que satisfação àquele que o promove. E este é um sentimento próprio aos períodos de transição de que foram exemplo os anos 60, comoção muito bem filtrada nestes contos (romance?) desinteressado do panorama político nacional mas reveladores do dilaceramento que uma outra revolução, a revolução sofrida no plano dos papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres da classe média brasileira, causavam àquela geração de jovens mulheres aspirantes à madureza e à liberdade, mas incapazes de sobreviverem a ambas.
A madureza, essa faca de dois gumes, foi para as mulheres, mais afiada ainda, e a liberdade, uma iguaria que desfrutaram ao preço de alguma solidão ,em algumas vezes comemorada e em outras deplorada. Este é o recado que nos transmite Cecília Prada através de suas personagens femininas num livro que é apesar de tudo um avanço em termos de análise introspectiva e auto-avaliadora da condição feminina. E também, digamos, em termos de realização literária em sua tentativa algumas vezes bem sucedida, de renovação formal que se inicia pelo próprio já citado, modelo ambíguo (vários contos ou romance desmembrado?) onde a violência da linguagem ,ressoando com mais força que a de Helena Parente Cunha, sua companheira geracional, tem papel fundamental.
O Nome de Zulmira
Também pertencente a esta geração, que viveu as adolescência ou juventude, ou ambas, nesta fase tão difícil para as mulheres no Brasil, uma escritora afasta-se, em alguns sinais, do padrão que definia a literatura por elas produzida. Trata-se de Zulmira Ribeiro Tavares que em 1985 publicou um romance bastante interessante: O nome do Bispo (Tavares, Z. R., 1985) brindado por um elogioso posfácio de Roberto Schwarz. Publicado na mesma data em que o foram Mulher no espelho (Helena Parente Cunha) e O penhoar chinês, de Rachel Jardim, este romance não coloca em foco, pelo menos explicitamente, o problema da mulher diante do mundo que a cerca, tendo, ao contrário, a autora escolhido vestir-se sob a pele de um homem, de contornos suaves é verdade mas ainda assim um homem, para narrar através de um enredo insólito, a crise existencial vivida por um personagem de meia idade da tradicional e aristocrática família paulista decadente. Como não poderia deixar de ser, temos aqui mais uma vez a família no epicentro da narrativa, que se irá desenvolvendo de forma peculiar e competente, através da descrição minudente dos fatos ocorridos e do universo em que se desenrolam. A família, no fundo do cenário domina o pensamento do protagonista que expressa a voz autoral: a memória, as especulações filosóficas, o próprio humor que permeiam a narrativa, passam pelo crivo estreito do julgamento da parentela (e das relações de poder ali enfrentadas) e nisto, não podemos negar, a autora aproxima-se de suas colegas de geração, invariavelmente enredadas nos laços daquela instituição, o que testemunha o peso que sobre elas exerce. O que irá se constituir em principal diferença, é a forma através da qual este discurso será construído. O protagonistas, como se sabe, sofre uma crise existencial, uma ruptura entre passado e presente metaforizada na fissura anal que o leva a internar-se (para realizar a cirurgia) em antigo hospital de São Paulo (Hospital Sta. Thereza, assim mesmo com o H que lhe comprova a antigüidade) e é neste cenário que surpreendemos os melhores momentos de lirismo criados pela autora, seja pela descrição acurada do movimento da folhagem ou das mudanças na luz do dia seja pelas elegância e precisão analítica de sua prosa, que tendo optado pela sátira, revela-se “racional e audaciosa e sem preconceitos, alimentada de liberdade moderna, mas nem por isso dona de alguma verdade (Schwarz, R, 1985). A profusão de elogios que lhe dedica este crítico não é excessiva e até acrescentaríamos a estas outras qualidade que a distinguem das romancistas anteriormente citadas: as qualidades de humor, transcendência, mistério, para não falar da demolidora crítica social que faz, através destes prismas, à tradicional família paulista e à sua intelectualidade empertigada. Aqui já um problema se apresenta ao tipo de organização que vinha sendo dado ao elenco de escritoras selecionado. Se aqui, o critério geracional não é completamente inadequado, pois a matéria tratada coincide em parte com aquela eleita por suas contemporâneas, a forma derrisória é expediente que só encontraremos, bem realizada em suas finalidades desconstrutivas, na geração seguinte. Em que grupo então colocá-la? A pergunta já sugere a resposta que está na compreensão das limitações que este programa classificatório envolve. Mas voltemos ao livro.
O enredo, é o que menos importa nesta narrativa que temporalmente abarca não mais que quatro dias de internação vividos pelo protagonista no Hospital Sta Thereza, tempo que se alarga proustianamente através da memória emocional, reflexiva e lírica, mas também irônica do personagem debruçado sobre seu passado e sobre o passado recente da sociedade brasileira. Esta história, onde episódios relativos ao golpe de 64 comparecem em flashes rápidos vividos pelo personagens em delegacias do DOPS, também é mimetizada pela veia humorística nesta narrativa onde o drama raramente comparece e quando o faz, surpreende o leitor pela intensidade de sua insuspeitada presença, de que é exemplo a equivocada mas ameaçadora visita recebida por Heládio no Solarium. Esta visita, fantasmagórica e ao mesmo tempo real (de uma pessoa pobre que procura um agonizante rico, vizinho de quarto do nosso herói, e o confunde com ele) introduz naquele cenário asséptico a excrescência pútrida da luta de classes, o ódio social daquele que nada tem por aquele que tem tudo, e desencadeia o clima misterioso e tenso que sob o humor e a ironia, permeará o romance a partir de então. Ameaçador como a morte, este episódio introduz a angústia e atreva no cenário iridescente do Solarium e da vida de Heládio, definindo o caráter contrastivo dos elementos formais entretecidos no texto.
A paternidade desconstruída durante a visita do filho, a amizade pulverizada durante a visita do “amigo do peito” e outras crueldades familiares que vão se somando a estas, revelam o peso das instituições que perseguem o herói (e a autora) nas noites de insônia em que se debate e de onde nem sempre sai vitorioso mas sempre com humor, traço essencial da sua personalidade e da própria narrativa que embora nada pretenda concluir filosoficamente, completa-se a si mesma pela competência no narrar. Um narrar preciso e detalhista, cujo apuro na observação surpreende o lirismo escondido por trás de fenômenos puramente naturais como os dos movimentos da luz e dos ventos sobre as folhas e árvores, ou os da simples passagem do tempo, quando o tempo é redescoberto e recuperado.
O texto de Zulmira nos coloca diante de algumas questões, candentes para este trabalho, como a que se segue: se a dicção feminina, segundo a corrente da crítica feminista psicanalítica francesa (Héléne Cixous, Adriénne Rich e outras) deve ser reconhecível como o “discurso do corpo” e da “jouissance féminine”, como identificar a mulher na prosa analítica e precisa, embora chistosa e alegre de Zulmira. Onde se esconde o “depoimento feminino”, se a voz autoral em seu relato esconde as pistas que poderiam delatar o gênero de quem fala? É bem verdade que os romancistas vêm tentando através dos dos tempos, metamorfoseados em mulheres (“Madame Bovary c’est moi”, disse Flaubert, e Machado desse recurso usou em toda primeira fase de sua obra) penetrar nos segredos de seu universo. Tarefa difícil, pois um pequeno detalhe pode revelar o embuste. Como aqui as sutilezas do conhecimento de Zulmira a respeito do universo feminino, do seu corpo, do seu apogeu e declínio, que se manifesta na descrição da personagem Dora, e de seu encanto de meia idade que traz “essa impressão de uma mulher descansada e infantil, dentro de outra já madura “Esta é inapelavelmente uma mulher falando de si própria de seu próprio corpo e de sua própria alma feminina, como é a de Zulmira e de seu nome.
Entre Águas
Que deduções podem já ser levantadas a respeito das representantes deste primeiro bloco de escritoras que publicaram a parte mais substancial de suas obras a partir da data aqui referenciada, 1964?
À primeira vista acreditamos que é possível estabelecer alguns nexos entre a persistência do solipsismo do discurso na prosa de ficção dessa amostragem (que é bem representativa do todo) e o contexto sócio-político envolvente, assim como pudemos identificar as relações existentes entre a irrupção desta mesma prosa e a retração da criação literária de uma maneira geral, esterilizada que foi pela censura naqueles anos cinzentos. Uma esterilização da qual as mulheres parecem ter sido poupadas, pois é neste momento que começam, com fervor, a escrever prosa de ficção (e também poesias e ensaios) numa escala até então nunca observada. Além disso, passam também a ser publicadas com facilidade, beneficiadas que foram pela a abertura do mercado, propiciada pela sofisticação produtiva do setor livreiro no período do chamado “milagre brasileiro”.
Ainda à primeira vista, as evidências sugerem que, reprimida durante tantos anos (séculos) em sua capacidade criativa e na formulação explícita dos próprios anseios e desejos, a mulher, ao perceber aberta a porta para o depoimento confessional através da via literária, dele aproveitou-se para esvaziar todo o conteúdo emocional represado todo aquele tempo, em narrativas onde o solipsismo do discurso foi a nota dominante. Assim, se o quadro ideológico repressivo sufocava a criatividade literária masculina da época, não impedia, no caso das mulheres, que elas construíssem, com as armas que possuíam então, um discurso literário revelador do desconforto experimentado pelas mesmas dentro da sociedade, já em mutação, mas ainda essencialmente machista da época. Elegendo o “eu” como parâmetro básico para o conhecimento de toda e qualquer realidade, as romancistas e contistas aqui arroladas, esqueceram a dimensão social de suas vidas em termos do compromisso com o momento histórico vivido e a possibilidade de interferência no mesmo, enquanto criadoras. Esqueceram as lutas entre as classes , e a moeda corrente do marxismo que circulava com prestígio entre a elite intelectual brasileira e concentraram-se em torno delas mesmas. Mas ao fazê-lo, sem querer concentravam-se também em torno de uma bandeira que só na década seguinte seria plenamente desfraldada pelas mulheres no Brasil: a bandeira feminista, movimento que como muitas outras expressões de minorias dominadas, substituiria, nos anos 80 a luta contra-“revolucionária” dos anos 60 e 70. É bom ainda lembrar que ao conservadorismo moral e político da ditadura, a juventude da época, pelo menos a juventude “classe média” do centro-sul do Brasil, respondeu com o libertarismo do desbunde, com o “é proibido proibir”, originário dos bancos da Sorbonne e entronizado no Brasil, com o tropicalismo, e com o movimento ” hippie” brasileiro, vagidos da poderosa onda “contra-cultura” norte-americana. É também verdade que nem mesmo o rumor desses fenômenos irá comparecer nesta literatura escrita por mulher, tão preocupada em desenredar o novelo do triângulo patriarcal e em procurar reescrever esta saga de maneira que ela mesma, e não o Pai, apareça como o sujeito da história. Tão interessada, inconscientemente, em reconhecer-se enquanto centro do enredo do “romance familiar”, referido por Freud, “esse texto não escrito, esse sonho acordado que todo homem forja conscientemente na primeira infância e esquece na idade adulta” e que está segundo Marthe Robert, na própria origem do gênero romance (Wanderley, M. C., 1996) Tão imersa nas tarefas de construção da própria identidade ou de uma identidade nova, que recusa suas qualidades ditas “naturais” e busca reconstruir-se a partir de um referencial que ainda não sabe bem qual seja, e para o qual se dirige, tateando no escuro.
Um discurso que se defrontou com problemas intrínsecos de tal magnitude do ponto de vista do sujeito falante, não poderia absolutamente optar por um circuito excêntrico e explorá-lo competentemente. Já consideraríamos muito, se tivesse conseguido completar-se satisfatoriamente em seu programa, o que nem sempre foi possível, como por exemplo nas suas propostas descontrutivas da imagem de mulher ideologizada pelo universo patriarcal, malogro que foi ressaltado pela crítica contemporânea (Lobo, L., 1993). Entretanto, se considerarmos, como Judith Butler que “To desconctruct is not to negate or to dismiss, but to call into question and, perhaps most importantly, to open up a term, like the subject, to a reusage or redeployment that previously has not been authorized” (Butler, J., 1992) talvez possamos ver nas tentativas realizadas por este grupo de escritoras um esboço desconstrucionista manifestado através das suas próprias perplexidades diante das transformações instauradas naquela década e que foram transmitidas àquelas às suas personagens que a partir das ressignificações dadas ao conceito de “mulher”. Com a ressalva é claro, de que não é um conceito que possa ser universalizado e por isto salientamos que estamos aqui falando da mulher de classe média, branca, ocidental, heterossexual, com nível de instrução médio ou universitário, brasileira no geral (embora as diferenças regionais também devam ser consideradas).
A Derrisão como Fórmula
“As mulheres deveriam rir de si mesmas – afirma Hélène Cixous em Là – em vez de continuarem se lastimando por toda a eternidade (Cixous, H., apud Lobo, L., 1993). Esta sugestão parece ter sido escutada “avant la lettre” por Márcia Denser nos anos 80. O texto auto-irônico e cáustico mas ao mesmo tempo pleno de humor com que nos brinda em O animal dos motéis (Denser, M., 1980), é um verdadeiro refrigério para nossos ouvidos cansados de escutar as lamúrias que predominaram nos anos 70 e de conviver com a indecisão existencial das mulheres que viveram com um pé na liberdade da estrada e outro no laço ideológico do paternalismo ameaçador. Seguindo uma linha sexo-confessional que parece ter algo de Henry Miller (um romancista americano que estourou no Brasil nos anos 60) e muito de Erika Jong (primeira mulher a escrever desabridamente, e com humor, sobre sua vida sexual na América), Márcia parece ter optado, talvez mesmo antes da criação do rótulo, por aquela chamada “jouissance du corps” que é vista pelas crítica literária francesa já citada, como qualidade deflagradora de uma nova maneira de escrever, e de uma prosa de ficção feminina renovadora e desconstrutiva. O segredo desta mina estaria no próprio corpo feminino e na especificidade de seus detalhes anatômicos do qual resultaria uma economia libidinal oposta à masculina. Vejamos, seguindo os passos desta teoria, como ela poderá ajudar-nos a enfrentar o desafio da análise deste grupo de escritoras (aqui representadas por Márcia Denser, Luiza Lobo e Betty Milan) que adotou o humor e o erotismo como técnica contra-ideológica e explosiva dos valores tradicionais que atualizavam os conceitos de “mulher”.
A crítica feminista francesa instauradora destas idéias parte de uma premissa básica, que é a da oposição à cultura opressiva e falocêntrica ocidentalmente instaurada, onde o homem se coloca como centro do universo, demarcando todo o resto do mundo como o “outro”, que se define a partir de suas relações com este centro. Falar e especialmente escrever, instalado neste centro, significa apropriar-se do mundo e subjugá-lo através de uma linguagem dominante, principal meio através do qual ele objetiva o mundo e o reduz a seus termos. Assim o homem fala de (e em lugar de) qualquer coisa (incluindo as mulheres) demarcando-lhes os contornos. Como resistir às práticas significantes (fala, escrita, mitos e rituais) de tal cultura? pergunta-se esta linha crítica. Através da mencionada “jouissance”, que seria a reexperimentação dos prazeres físicos desfrutados na infância e na sexualidade primitiva, reprimida, mas não obliterada pela “Lei do Pai”. Este prazer físico (orgástico) que, quando feminino, carrega consigo as noções de fluidos, difusão e duração, diferencia-se do prazer masculino, que se realizaria em torno da centralização do ganho e motivação para o lucro. Resta-nos questionar como essa “jouissance” funciona na produção do autoconhecimento, promovendo a almejada “escrita do corpo”, fonte da renovação da escrita literária feminina, como quer a crítica francesa. Debruçando-se sobre ela, Ann Rosalind Jonnes (Jones, A. R., 1985) identifica e comenta as versões em que se apresenta: a de Júlia Kristeva, que utiliza o conceito psicanalítico de “pulsões corporais” para definir as forças que, sobrevivendo às pressões culturais, vêm à tona, sob forma sublimada no que chamou de “discurso semiótico: “The gestural, the rhythmic, preferencial languages of such writers as Joyce, Mallarmé, and Artaud” (Kristeva J, 1969, apud Jones, A. R., 1985), que, por não terem realizado a fusão infantil com suas mães, reexperimentam este prazer no subconsciente e trouxeram-no à tona através de textos que contrariam a linguagem tradicional. Não sendo um privilégio das mulheres, nelas, essa liberação semiótica se daria indiretamente, pois são o primeiro objeto do desejo do qual o filho é afastado no percurso da iniciação social. Falando e escrevendo como “outsiders” ao discurso do macho dominador, por sua posição marginal e força potencialmente liberadora, as mulheres podem transformar os discursos que afirmam seu papel negativo, e rejeitar tudo o que esteja definido estruturado e carregado de significado no atual estado da sociedade, explodindo os códigos sociais com movimentos revolucionários . Não representando um sexo, mas uma atitude de resistência à cultura e à linguagem tradicionais, esta posição pode ser partilhada pelo homem – desde que se oponha ao falogocentrismo – sendo a este também aberta a possibilidade da “jouissance”: “By woman I mean that which cannot be represented, what is not said, what remains above and beyond nomenclatures and ideologies. There are certain “men” who are familiar with this phenomenon” (Kristeva. J., 1969).
Para Luce Iragaray, ao contrário, as mulheres possuem uma especificidade que as distingue agudamente dos homens. Psicanalista e membro da Escola Freudiana da Universidade de Paris (Vincennes) foi destituída de sua atividade didática três semanas após a publicação de Speculum de l’autre femme, livro no qual sarcasticamente aponta o “bias” falocêntrico de Freud em suas definições de mulher. Definições que a catalogam como um homem imperfeito (castrado), irracional e invisível. Presa num universo conceitual que tem o homem como centro a mulher, segundo Irigaray, não encontrou caminhos para se autoconhecer e representar, mas seu próprio corpo conclui, pode ser o ponto de partida para esse autoconhecimento: “She is infinitely other in herself”, diz, referindo-se à sua forma diversificada de prazer em contraposição ao sistema masculino centrado no “mesmo”. Apesar disso, a descoberta do auto-erotismo não funcionará, para Irigaray, como passaporte para mudanças (que utiliza categorias marxista em suas análises) embora reconheça que a mulher deve reconhecer e afirmar seu prazer se quiser subverter a ordem falocêntrica.
Hélène Cixous, a terceira feminista francesa desse elenco é também de origem psicanalista . Como Kristeva admira os escritores anti-falocráticos em seus textos mas separa-os das mulheres convencida de que o inconsciente destas difere do masculino, em sua especificidade psicossexual liberadora de novos discursos sociais. Exemplo desta afirmação é, para ela, o discurso clariceano que celebra em seu livro Vivre l’orange (Cixous, H., 1979), onde enfatiza o “olhar empático e não dominador “que a ficcionista revela ao construir seu objeto, acreditando que esta capacidade literária tem origens mais libidinais do que culturais. Cixous também critica a determinação psicanalítica que vê a diferença e oposição entre os sexos a partir das diferenças anatômicas, pois “it’s at the level of the sexual pleasure, in my opinion, that the diference makes itself more apparent”. São, segundo ela, economias sexuais diferentes, pois enquanto o homem centraliza o prazer em torno do pênis, uma dimensão que regionaliza e limita o inconsciente, a mulher tem uma libido cósmica, tanto quanto seu inconsciente é universal. E são estas pulsões múltiplas da libido no inconsciente feminino que liberarão seu próprio discurso.
Como vimos, estas três versões do feminismo francês (com algumas pequenas diferenças) conjugam-se na crença da contraposição entre a experiência corporal feminina e os padrões simbólico/fálicos embutidos no pensamento ocidental, assim como na defesa do corpo como fonte direta da escrita feminina, poderosamente alternativa e reconstrutora do mundo. Apesar de atraentes, são construções tão perigosas, quanto poderosas, adverte Rosalind, criticando-as em suas ciladas essencialistas, idealistas e inibidoras da ação política, na medida em que desviam olhar das variáveis culturais envolvidas na construção desse corpo feminino. A releitura de Freud e Lacan feita por algumas feministas aponta para o fato de que a sexualidade não é uma qualidade inata, seja na mulher, seja no homem. Ela se desenvolve nas interações realizadas dentro da família nuclear e sobre um sistema simbólico posto em ação pelo par pai/mãe que carregam e impõem sobre os filhos os papéis socialmente impostos. Neste processo de formação de identidade sexual, Lacan enfatiza o papel do pai como sustentáculo da língua e da cultura (sistemas simbólicos fundamentados no valor atribuído ao phalus) como base dos valores contrastantes que a criança internalisa em sua tentativa de incorporar-se, de alguma maneira, à sociedade falocrática. A identidade de gênero e conseqüentemente o inconsciente constrói-se (ainda universalmente) como resposta à sociedade patriarcal. Portanto, não existe sexualidade que não seja penetrada por arranjos sociais e sistemas simbólicos, E estes arranjos e sistemas são falocráticos. Se houvesse existido algum dia a sociedade das Amazonas, que é lendária, as identidades sexuais seriam todas regidas por seus valores, de mulheres que na verdade são meio homens (nesta versão generalizada de homem) que cortam um seio para sustentar o arco no peito e lutam contra eles, mas sucumbem ao processo da procriação. Nas sociedades reais, todas falocráticas, a ideologia sexista penetra no cotidiano feminino mesmo nas situações em que nos pensamos livres dela, como por exemplo nos episódios de lesbianismo e auto-erotismo. Parece portanto, que o corpo feminino não se oferece como o melhor lugar para lançarmos o ataque contra as forças que afastaram nossa sexualidade de seu próprio destino, a começar pelas mencionadas “ciladas” que se cristalizam em idéias acerca da “natureza da mulher”, “glorificação da maternidade” etc. Além do mais, o caráter globalizador do conceito de “feminité” parece esquecer que a universalidade do conceito de mulher é um erro básico do feminismo, e que aquela “jouissance” é vivida diversamente pelas sofisticadas nova-iorquinas e as cearenses fustigadas pela seca, e/ou as mulheres mutiladas do Irã . Apesar de tudo, os conceitos de “jouissance, feminité et écriture feminine” foram propulsores de mudança. Preconceitos do discurso falocêntrico que permeiam a cultura ocidental e outras culturas em seus níveis mais profundos, são desafiados por eles, que neste sentido têm vital importância para a luta ideológica assumida pelo feminismo. As mulheres já começaram a transformar, não apenas a matéria prima mas também a maneira de produzir sentido, na poesia, na ficção, nos filmes e nas artes visuais e as pesquisas feministas vêm sugerindo que estes desafios à ordem simbólica são já uma marca da escrita feminina .Apesar de tudo alguns problemas teóricos e práticos permanecem e se colocam em torno de questões como: pode o corpo ser a fonte de um novo discurso? É possível alguém mover-se de um estado de exaltação inconsciente, para a construção de um texto escrito? Algumas feministas, como Madeleine Gainon, afirmam que sim pois, livre da economia sexual limitadora do macho, a mulher teria mais espontaneidade tanto no corpo quanto na linguagem. Entretanto, sua posição é contestada por Ann Rosalind quando afirma que a teoria psicanalítica e a experiência social sugerem que o salto do corpo para a linguagem é especialmente difícil para as mulheres, afirmando que a teoria lacaniana sustenta que a introdução da menina na linguagem, na ordem simbólica representada pelo pai e construída em oposições fálicas e não fálicas, é complexa pois a mesma não se identifica com o polo positivo dessa ordem. Em várias culturas, pré ou pós-letradas, os tabus contra o discurso da mulher são uma constante e se manifestam em zombarias a respeito do que falam e dos livros que escrevem e se um dos objetivos mais candentes do feminismo, tem sido a superação da timidez verbal, num mundo onde o homem tem sempre a última palavra, melhor faríamos em combater essas atitudes em vez de idealizarmos uma “écriture féminine” surgida espontaneamente do corpo. E se as mulheres estão inventando novas maneiras de escrever, diz ela, elas o fazem embasadas numa autoconsiência literária e crítica que vai muito além do corpo e do inconsciente, o que revela que a resistência a uma cultura, é sempre construída com as peças daquela cultura que se quer transgredir.
Este é o nível do combate que se trava, entre as várias facções feministas (norte-americanas e francesas) a respeito dos conceitos de “écrite feminine et jouissance du corps”, ao fim do qual as primeiras (aqui representadas por Ann Rosalind Jones) reconheceram a importância de apenas dois aspectos dessa teoria: a crítica ao falocentrismo em todas as formas materiais e ideológicas que assumiu, e a convocação à criação de novas representações da consciência feminina, relegando portanto, a um segundo plano, um dos princípios básicos que a animam: as relações entre corpo, conhecimento e criação literária.
E como ficamos nós em relação ao nosso objeto de estudo, ao tentarmos incorporar, nesta análise, os diferentes argumentos desta eclética (embora também sincrética) crítica feminista atual? Em relação a Márcia Denser, cujo discurso suscitou toda essa busca, achamos que podemos adotá-la, e à sua sexualidade bem humorada, como modelo inaugural da prosa de ficção feminina que elege o humor e o prazer do corpo como matéria prima de seu discurso, sem entretanto eleger o conceito de “jouissance” para defini-lo. Vejamos por quê.
Ao retomarmos a questão teórica colocada por Jones: “Can the body be a source of self knowledge? Does the female sexualiaty exists prior to or in spite of social experience? – aceitamos e corroboramos sua reposta negativa a esta possibilidade, pois como ela, acreditamos que toda a identidade sexual feminina passa por um processo cultural que tem como infraestrutura simbólica a ordem patriarcal vigente e portanto não independe dela em sua “jouissance”. Estranhas cadeias da cultura que não sabemos bem como começaram e onde e quando vão terminar. Para as constrições desse este fato social parece não haver saída radical mas escapadas parciais tais como as de Márcia Denser, e de outras escritoras de sua geração, que usaram a própria sexualidade como tema/causa norteadora, substantiva e formal, de suas narrativas e que por isso se tornaram femininamente novas em seus depoimentos despojados da tradicional feminilidade. Vejamos quando: “O sexo havia sido travado todos esses meses como uma cobra adormecida no fundo de um tanque neolítico e voltou a ferroar-me também em fins de novembro pois sexo significa se lançar e não ter medo nem dor de barriga, sem nenhuma espécie de hipocondria (Denser, M., 1981). Aí está a mulher para tudo preparada, sem romantismos ou considerações piegas a respeito do famoso chamado “amor carnal “e de sua própria sexualidade. Se há aí um “excessivo simulacro com a posição masculina”, como disse Luiza Lobo, que impede a criação de uma voz feminina própria, outros depoimentos revelam a ambigüidade desse discurso feminino em floração que não sabe ainda muito bem que defesa assumir em suas lides internas: “Há uma parte de nós que jamais abandona o ordinário, o vulgar do sexo”… “assim como nos homens, pretensamente a engenharia mecânica, o bang-bang e o charuto após o jantar” . O “ordinário e vulgar” e não o romântico e idealista, como deveria ser o sexo nas mulheres , esconde uma espécie de culpa por tratar tão cruamente deste assunto, em sendo uma mulher. No caso de Márcia Denser diríamos, de tratá-lo de uma maneira nova, bem diferente daquela usada pela geração anterior, apesar da liberdade rasgada pretendida por algumas. Levando em conta a novidade que apresenta, mesmo assim fazemos ressalvas a seu texto, não de natureza social, pois parece bem preocupado com o mundo circundante (a sociedade paulista dos anos 70, simultaneamente desbundada e tradicional e provinciana apesar dos ímpetos universalistas) mas literária onde a autora parece inaugurar-se a si mesma num discurso isento de referencialidades que indiquem o caminho percorrido na busca da qualidade. Não percebemos em seus contos a presença de um jogo intertextual enriquecedor, ou nada que denuncie sua procedência literária. Nenhum diálogo com seus pares neste universo que embora saibamos falocraticamente disposto, ainda é, até o momento atual literariamente representado pelos homens, em termos canônicos.
Jogo intertextual é ingrediente que não falta na prosa inteligente de Luiza Lobo, no seu Sexameron. Publicado em 1997 e quarta experiência da autora no campo da ficção, utiliza-se do título de Boccaccio, Il Decamerone (conjunto de dez narrativas escritas em dez dias) para anunciar a matéria de que trata, e da voz de margarida de Navarra, autora do Heptameron (conjunto de sete contos inspirados em Boccaccio) para contar aos leitores “histórias de casamentos” numa sociedade pela peste da aids. Assim como Boccaccio, no Renascimento, havia narrado pela boca de jovens refugiados da Peste, num castelo de Florença, os cantos do Decameron, a autora utiliza o mesmo recurso estilístico, reunindo um grupo de jovens sobreviventes da referida peste, num castelinho do alto do Humaitá, colocando em suas bocas depoimentos sobre a tal “instituição” há muito tempo falida e desmesurada. Permeados de uma sexualidade sem “sexo”, pois era este há muito um intercurso praticamente proibido àquela geração amedrontada. Estes relatos chamados pela autora de novelas, são unidos pelos intervalos das reuniões dos jovens que se revezam no relato das experiências “amorosas” vividas por eles ou pelos amigos. “Ora sombrias, ora fantásticas às vezes sublimes, quase sempre carregadas de hipocrisia as narrativas seriam o resíduo de um mundo destruído por seus próprios vícios e paixões (Wanderley, J., 1997). É importante lembrar que das seis histórias narradas no Sexameron (descrito como um texto relíquia dos anos 60 e 70 encontrado numa sociedade futura), cinco delas são cotadas por mulheres que a respeito de casamento nada têm para comemorar. Através delas Luiza faz a crítica sarcástica da instituição, dos próprios homens na sociedade patriarcal e machista com a qual conviveu , e de si mesma. Irônicas em sua maior parte, deixando passar zombarias do tipo “eu acredito no amor”, as histórias podem alcançar momentos de lirismo, como no episódio chamado “A Rua do Carvalho do Outono” através de personagens que estão no futuro e que no entanto se assemelham, em quase tudo, ao nosso presente carioca, levemente nostálgico dos anos 60.
O “casamento é um contrato social” diz um dos personagens citando Rousseau divertidamente e um gato chamado Baudelaire que espreita na cozinha são pistas que entremeadas às vigas mestras da narrativa revelam uma realidade ficcional onde “narrar não só Boccaccio a a Rainha de Navarra estão pairando pelos textos, como também inúmeros poetas, críticos e literatos de toda ordem aparecem aqui e ali, aludidos, citados, metabolizados pela química das histórias e pelo universo cultural e verbal da autora” (Wanderley, J., 1997). Deste universo cultural e verbal Luiza já nos havia dado conta em publicação anterior, Por trás dos muros (1976) coletânea de contos, poemas, enfim, textos que não se encontram aprisionados às categorias de gênero e aos quais a autora chamou de “Arte-fábulas”. Desta reunião de textos meteóricos dados de uma poética sui generis, a “poética da sintaxe narrativa e do espaço entre palavras” (Wanderley, J., 1976) destaca-se “Aprendizagem para o Lixo”. espécie de conto, nitidamente clariceano, onde a coleta do lixo transforma-se em ritual no qual o lixeiro é metamorfoseado em alguém que recebe uma dádiva, o próprio lixo como se fosse uma flor, através da alquimia e da mágica lírica de Luiza. Se existe alguma coisa que aproxime Márcia Denser e Luiza Lobo, duas escritoras que viveram, na juventude, a relativa liberdade que esta geração de mulheres de classe média desfrutou no Brasil dos anos 60 e 70 (e principalmente no Sudeste) esta coisa poderá ser localizada na linguagem. A linguagem a que a crítica feminista francesa chamou de “jouissance du corps” e que talvez possa ser flagrada no prazer da escrita que identificamos em ambas. Em Luiza, numa voz autoral que, em observações divertidas e irônicas sobre o mundo, países e gente, sobre situações e mesmo fatos históricos (como a eclosão da aids) ou do nosso cotidiano, atestam bem um espírito aguçado e muito humor; em Márcia com o humor cáustico que exerce sobre si mesma e sobre o mundo, mas que às vezes se ameniza num olhar compassivo sobre o seu próximo.