Carlos Calenti
Doutorando em Comunicação e Cultura, UFRJ
Resumo: Esse artigo discorre sobre o conto Bloodchild, da autora norte-americana Octavia Butler, pensando em como a obra reflete e problematiza a experiência dos excluídos do mundo, ao mesmo tempo em que aposta no encontro com o outro e na celebração da diferença para a construção de novos mundos possíveis. O artigo também procura refletir sobre como a ficção científica, gênero escolhido pela escritora em questão, é um meio privilegiado para pensar sobre os problemas sociais e políticos da contemporaneidade e para experimentar novas formas de estar junto.
Palavras-chave: Octavia Butler – devir – política – ficção científica.
Abstract: This article discusses the short story Bloodchild, by the North-american writer Octavia Butler, taking into account the ways in which the story reflects the experience of the excluded in our world at the same time that it affirms the Other and the difference as possibilities for the construction of new possible worlds. This paper also considers science fiction as a privileged genre to think about new ways of being together and to think about the political and social problems of today’s world.
Key-words: Octavia Butler – the future – politics – science fiction.
Minicurrículo: Carlos Calenti é formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo e é Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ. Atualmente cursa o doutorado nesta instituição e escreve uma tese sobre a obra do autor norte-americano William Burroughs, particularmente seu livro Almoço nu, na qual reflete sobre questões políticas das Sociedades de Controle, assim como formas de subjetivação encontradas na obra de Burroughs. Também pesquisa temas relacionados à literatura de ficção cientifica, principalmente suas vertentes feminista, queer e afro-futurista.
Produção de mundo e experimentação política: uma análise do conto Bloodchild,
de Octavia Butler
Carlos Calenti
Doutorando em Comunicação e Cultura, UFRJ
Esse artigo se propõe a analisar o conto Bloodchild, da autora norte-americana Octavia Butler, para explorar algumas questões importantes que perpassam a obra dessa escritora feminista e afro-futurista e que, acreditamos, refletem também problemáticas fundamentais para o entendimento do nosso mundo contemporâneo. Antes de entrarmos em contato direto com o conto de Octavia Butler, no entanto, gostaríamos de tecer algumas considerações rápidas sobre a forma como pretendemos trabalhar o gênero da ficção científica e por que o consideramos importante nessa reflexão.
Ficção-científica e experimentação
A ficção científica é um campo privilegiado de investigação das questões contemporâneas por explorar, intrinsecamente, as relações cada vez mais híbridas entre o homem e a técnica, o homem e a ciência. Nesse sentido, a ficção científica se revela uma moldura artística pronta para explorar a técnica, o futuro e as diversas possibilidades de estar e viver no mundo que o homem pode engendrar na sua relação com essas transformações. Assim, retomando a relação íntima do gênero com o futuro, consideramos a ficção científica como uma prática investigadora de devires. Não se trata de exercício de futurologia. Trata-se – como no próprio objeto de reflexão fundador do gênero, a ciência – de especulação. Em Bergson encontramos uma noção de tempo que não é mais linear, mas de um passado, uma memória, que está sempre no presente nos jogando para o futuro. A memória é “co-extensiva” (abrangente), simultânea a toda a nossa vida e à nossa percepção. Ela se mantém virtual até que uma experiência nos faça atualizar alguma(s) de suas imagens, que nos fornecerão, então, ferramentas para lidarmos com o que nos acontece. Ao intervalo entre a ação que nos afeta e a nossa reação, Bergson chama zona de indeterminação. Essa zona de indeterminação se abre ao futuro, à criação do novo, a partir, é importante ressaltar, do arcabouço que são as imagens da nossa memória. Maria Cristina Franco Ferraz nos diz: “(…) para Bergson a memória do homem – ser dotado de preciosa capacidade de hesitar – consistia no manancial inesgotável de novos futuros possíveis” (FERRAZ, 20/12/2013). E é exatamente nesse ponto que queríamos chegar – acreditamos na ficção científica como forma peculiar de articular as relações complexas entre passado, presente e futuro, ao especular, agenciar, transformar em arte esses futuros virtuais, não com intuito de prevê-los, mas de refletir sobre as potencialidades latentes do nosso próprio tempo e mundo histórico.
De forma parecida, recorremos a Deleuze para pensarmos, nietzscheanamente, na “nuvem não-histórica” que acompanha a história. A história seria uma compilação dos devires que se atualizaram e se tornaram estados de coisa. Nesse processo, o que ela perde dos acontecimentos, o que lhe escapa, são todos os devires que o acontecimento pôs em circulação, todas as experimentações possíveis de estar no mundo que não se atualizaram. Deleuze afirma:
Nietzsche fala do que se faz, do acontecimento mesmo ou o devir. O que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história. A história não é experimentação, ela é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história. Sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica (DELEUZE, Gilles, 1992a, p. 210).
Apostamos, então, na ficção científica como um campo de narrativas que se filia mais ao devir que à história, que coloca em jogo as potencialidades do nosso tempo, e, ao articular suas linhas de forças e possibilidades de subjetivação, experimenta, especula, investiga. Assim, ficção científica não é metafórica ou alegórica. Essa é uma noção que perpassa parte da teoria voltada ao gênero. Acreditamos, sim, que a ficção científica articula questões que circulam no nosso mundo, que são contemporâneas à sua produção – mas não apenas através de metáforas ou alegorias, e sim através das relações complexas que essas obras estabelecem com o mundo ao seu redor, através dos afetos que colocam para circular em suas páginas. A ficção científica não emula o nosso mundo, ela produz outros mundos a partir dos devires que circulam no nosso. Ela não reproduz, ou representa, ela experimenta. Assim, consideramos a ficção cientifica como uma prática criadora de mundos possíveis. A teórica feminista Donna Haraway utiliza o termo worlding para falar exatamente da prática de fazer mundos nos textos de ficção cientifica (e extrapola o termo para pensar, por exemplo, a construção de mundos baseados nas relações inter-espécies, para além de qualquer humanismo). Ressaltamos o conceito de Haraway, pois o que a autora articula aqui é uma ideia de construção de mundo que está sempre se fazendo. Daí ela usar a palavra mundo, world no gerúndio, –ing, no sentido especulativo, em constante experimento.
Não é apenas a ficção científica que explora as virtualidades do nosso tempo e cria mundos nesse processo. De fato, Deleuze nos lembra, esses são atributos que as melhores obras de arte compartilham. Acreditamos, no entanto, que, ao lidar diretamente com a tecnociência, parte inextricável do desenvolvimento do capitalismo desde a modernidade, e ao se orientar constantemente para o futuro, para o porvir, a ficção cientifica tem uma forma peculiar de misturar política e criação artística que nos instiga a embarcar em suas reflexões e participar de seus processos de subjetivação.
Bloodchild
E então chegamos finalmente ao conto de Octavia Butler, Bloodchild, ganhador dos prêmios Hugo e Nebula, as mais importante laureações da ficção cientifica mundial, como melhor conto em 1985. Ela é uma autora feminista e afro-futurista; seus trabalhos geralmente tematizam questões de gênero, raça e classe, sendo ela uma escritora negra num campo largamente dominado por homens brancos. Bloodchild é certamente um conto eminentemente politico, explorando algumas dessas questões com muita destreza. A narrativa se passa num futuro indeterminado, em um planeta distante, onde humanos, chamados aqui de terranos, vivem confinados na Reserva, dominados pelos alienígenas nativos, os Tlics. Donna Haraway, falando sobre a autora, deixa claro:
Todo o trabalho de Butler como uma escritora de ficção científica é fixado na questão da destruição e do difícil florescimento – não apenas sobrevivência – no exílio, diáspora, abdução e transporte – o dom e o fardo terreno dos descendentes de escravos, dos refugiados, imigrantes, viajantes e dos indígenas também (HARAWAY, Donna, 2013a, p. 140).
Certamente essas são temáticas que atravessam Bloodchild – o exílio, a desterritorialização e as complexas possibilidades de reconstrução. A obra da autora constantemente se volta para esses dilemas, seja em romances como Kindred, em que uma mulher negra contemporânea volta no tempo para a época da escravidão norte-americana, ou na trilogia Lilith’s Brood, em que uma mulher negra deve se reproduzir com alienígenas para repopular uma Terra destruída pela guerra nuclear. Mas as narrativas de Butler não são marcadas apenas pelo desespero, também se ancorando na relação com o outro, com a diferença, como formas de buscar soluções e construir mundos novos, contradizendo assim seus cenários desesperadores com os afetos que faz circular, com as complexas relações que cria.
Bloodchild é narrado em primeira pessoa pelo jovem Gan, um terrano. Ele e sua família têm uma relação muito próxima com T’Gatoi, uma política da raça alienígena Tlic. Foi o pai de Gan quem gestou T’Gatoi dentro de si. Nessa sociedade, híbrida entre terranos e Tlics, os corpos humanos, masculinos ou femininos, são perfeitos para a gestação dos ovos alienígenas. Na sua geração, Gan foi o escolhido entre as irmãs para gestar os ovos de T’Gatoi. A particularidade é que essa escolha se deu antes mesmo de ele nascer. Ela participou da sua criação e envolveu-se ainda mais com a família durante o crescimento do garoto, algo relativamente novo no universo do conto e, na verdade, o trunfo político de T’Gatoi. Antes de T’Gatoi e sua facção política dominarem, os Tlics utilizavam qualquer terrano como hospedeiro e, através dos ovos, que têm efeitos alucinógenos e afrodisíacos, juntavam casais aleatoriamente para que se reproduzissem, garantindo assim futuras gerações de incubadores dos seus filhotes. T’Gatoi mudou as regras do jogo ao supervisionar a união de famílias, protegendo a Reserva da avidez Tlic.
T’Gatoi era perseguida do lado de fora. Seu povo queria mais de nós disponíveis. Apenas ela e sua facção política estavam entre nós e as hordas que não entendiam o motivo da Reserva – porque nem todo terrano pode ser cortejado, pago, selecionado, estar de alguma forma disponível para eles. Ou eles entendiam e, em seu desespero, não se importavam. Ela nos entregou em parcelas para os desesperados e nos vendeu para os ricos e poderosos em troca de apoio político. Desse modo, éramos ao mesmo tempo necessidades, símbolos de status e um povo independente. Ela supervisionou a união de famílias, colocando um fim no que restava do sistema anterior de dividir as famílias terranas para satisfazer a impaciência dos Tlics (BUTLER, 2005, p. 5).
O que Octavia Butler articula aqui, através das manobras politicas de T’Gatoi, são princípios claros de gestão biopolítica. O biopoder, típico das sociedades modernas, é um poder que age sobre a espécie, “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 1988, p. 152). E sobre esse corpo-espécie, o biopoder cuida de processos como nascimentos e mortalidades, da saúde da população (doenças e epidemias, por exemplo), da longevidade etc. O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o biológico, que vira central nas discussões políticas. Modificá-lo, transformá-lo, aperfeiçoá-lo são objetivos do biopoder, e, é claro, produzir conhecimento, saber sobre ele, para melhor manejá-lo. Ora, organizar os corpos terranos, distribuí-los no espaço (a Reserva), em busca de um processo de reprodução mais eficiente, em nome da sobrevivência da própria espécie Tlic, são ações biopolíticas por excelência. Michel Foucault diz que, nas sociedades capitalistas modernas, cabe ao biopoder “distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade” (FOUCAULT, 1988, p. 157), exatamente como T’Gatoi e os Tlics fazem.
Além disso, o mundo que Bluter constrói é um mundo de prisões, pelo menos para os terranos. Temos, primeiramente, a maior prisão de todas, a Reserva. A Reserva é um lugar de proteção, que separa os humanos de Tlics mais ávidos por suas capacidades reprodutivas, mas também de confinamento. Qui, o irmão mais velho de Gan, além do próprio Gan, reconhece: na situação em que se encontram não há meios ou lugares de fuga. Ele diz: “Sim. Estúpido. Fugindo dentro da Reserva. Dentro de uma jaula”. E não é só aí que a ideia de aprisionamento se manifesta: a família de Gan é proprietária de um criadouro de animais locais, cujas peles vendem, e o fundo de sua casa está cheio de jaulas (“Eu fui em direção às jaulas, do lado de fora, e atirei no maior achti que pude encontrar”). A própria relação dos membros da família com T’Gatoi está marcada pelo signo da jaula. Os Tlics são alienígenas com corpos segmentados, longos, e em cada segmento há dois pares de membros. T’Gatoi gosta de sentir o calor dos terranos contra o seu corpo e para isso os faz deitar ao seu lado e os aprisiona com as patas: “Eu sempre achei confortável deitar-me dessa forma, mas, exceto por minha irmã mais velha, ninguém da família gostava. Eles diziam que os fazia se sentir enjaulados”, diz Gan em determinado momento.
Tudo isso, as práticas biopolíticas, os signos de aprisionamento, nos fazem supor uma sociedade distópica, onde os terranos são apenas dominados, onde não há escapatória. É importante ressaltar, no entanto, que as relações tlicenses-terranas são de mútua dependência – não que não haja poderes, hierarquias, dominações em jogo, mas há também colaboração, produção de novos sentidos e novas formas de dividir e construir o espaço. T’Gatoi diz, por exemplo:
“Os animais que nós usávamos começaram a matar quase todos os nossos ovos depois da implantação, muito tempo antes dos seus ancestrais chegarem”, ela disse calmamente. “Você sabe dessas coisas, Gan. Porque o seu povo chegou nós estamos reaprendendo o que significa ser um povo saudável, próspero. E os seus ancestrais, fugindo do seu planeta natal, da sua própria espécie, que os teria matado ou escravizado – eles sobreviveram por nossa causa. Nós os vimos como pessoas e os demos à Reserva quando eles ainda tentavam nos matar como vermes” (BUTLER, 2005, p. 25).
Além disso, há o fato de a relação de Gan e T’Gatoi ser uma experiência, em que a política o escolhe ainda na barriga da mãe e participa do seu desenvolvimento, de uma nova forma de conexão Tlic-terrana que ela tenta disseminar, um embaralhamento de fronteiras que tem como norte o bem-estar, ou pelo menos um avanço no bem-estar, das duas espécies. Só esses fatores já complicariam uma tese unicamente baseada no poder como dominador, punitivo, quando, Foucault nos ensina e Butler também parece afirmar, o poder é negativo ao mesmo tempo que é positivo; ele produz relações que não passam apenas e necessariamente pela repressão.
Mas é, de fato, na relação complexa entre Gan e T’Gatoi que vamos encontrar ainda mais razões para uma leitura não distópica do conto. Gan sabe há muito o que o futuro lhe reserva. O conto começa com uma cena familiar, mais ou menos tranquila. A mãe, o irmão e as irmãs do garoto estão sob o efeito dos ovos narcóticos, Gan está deitado com T’Gatoi, e tudo parece correr bem. Até que um N’Tlic (um terrano “grávido” de um Tlic) aparece na vizinhança da casa, passando mal, em pleno trabalho de parto. É essa contingência que atropela a aparente calma do cenário e coloca a relação de Gan e T’Gatoi em dúvida. Gan tem que ajudar T’Gatoi na operação e acaba presenciando toda a dor, o sangue e as vísceras do ato sobre o qual, descobre, ele não sabe tanto quanto imaginava. Ele vê as larvas que nascem, que comem as cascas de seus ovos e estão prontas para comer a carne do hospedeiro caso não sejam retiradas a tempo (“Toda vez que fechava os olhos eu via larvas vermelhas rastejando em carne humana mais vermelha ainda”). Gan fica abalado e dividido. Por um lado ele está completamente assustado, pela primeira vez entendendo o escopo do poder que se investe sobre o seu corpo; por outro… ele ama T’Gatoi.
Butler constrói essas afecções a partir do próprio corpo de Gan. Aqui temos um ponto importante: Octavia, como a mulher negra que é, entende que é sobre os corpos que o biopoder se investe e também que os corpos possuem capacidades de resistência e subjetivação que dobram esse poder. Por toda a narrativa de Bloodchild Gan percebe as coisas com o seu corpo antes de entendê-las intelectualmente (não muito diferentemente da própria definição de afeto dada por Deleuze). Antes de voltar ao cômodo onde o parto acontecia, Gan narra: “Por vários segundos fiquei parado em frente à porta fechada, perguntando-me o porquê daquele súbito medo”. Depois que a operação é concluída, ele vai vomitar do lado de fora: “Quando acabou me levantei tremendo, lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu não sabia por que eu estava chorando. Mas eu não conseguia parar”. E, nesse sentido, a palavra amor não é jamais mencionada, mas percebemos, ao longo do conto, o quanto a relação entre Gan e T’Gatoi é baseada numa simbiose profunda. De novo, é no corpo e na forma como Gan percebe o corpo de T’Gatoi que essa ligação é melhor demonstrada. O garoto a observa, fascinado:
Ela tinha ossos – costelas, uma longa espinha, um crânio, quatro conjuntos de ossos dos membros a cada segmento. Mas quando ela se movia daquele jeito, torcendo-se e lançando-se em quedas controladas, correndo junto ao chão, ela parecia não apenas invertebrada, mas aquática – algo nadando no ar como se ele fosse água. Eu amava observá-la se mover. (BUTLER, 2005, p. 9).
E chega um momento em que Gan tem que escolher. A irmã mais velha de Gan, Xuan Hoa, sempre quis ser a escolhida para carregar os filhotes de T’Gatoi; a política, quando percebe o efeito que os eventos da noite tiveram sobre Gan, exige que ele escolha se quer manter o combinado ou se ela deve procurar Hoa. E Gan escolhe a simbiose com T’Gatoi. A princípio, ele se convence de que o faz para proteger a irmã, mas logo reconhece diante de T’Gatoi que esse não foi seu único motivo: “‘Mas você veio a mim. Para salvar Hoa’. / ‘Sim’. Eu encostei minha testa nela. Ela era veludo frio, enganosamente macia. ‘E para manter você para mim’. Eu disse. Era isso. Eu não entendia, mas era isso” (BUTLER, 2005, p. 30). T’Gatoi implanta os ovos em Gan nessa mesma noite e Octavia descreve o ato sexual em detalhe, o acoplamento dos corpos terrano e Tlic, humano e alienígena: “Eu senti a picada familiar, narcótica, levemente prazerosa. Então a sondagem cega do seu ovipositor. A punção era indolor, fácil. Era tão fácil. Ela ondulou lentamente contra mim, seus músculos forçando o ovo do seu corpo até o meu” (idem).
O que o conto opera, a nosso ver, é a construção de um mundo que aposta na diferença, no encontro com o outro, mas não elimina os problemas, as linhas de força que perpassam esses encontros. Elas não se resolvem facilmente e o conto, inteligentemente, deixa suas questões em aberto. Acreditamos que a relação simbiótica entre Gan e T’Gatoi, os afetos que circulam entre os seus corpos, constroem um outro mundo. São, de fato, worlding. Inclusive, como já ressaltamos, por ser uma relação-experimento, está pronta para ser difundida para outros Tlics e terranos. Donna Haraway, em seu famoso Manifesto Ciborgue, diz que o manifesto “é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção” (HARAWAY, 2013b, p. 37). E aqui a verve feminista de Butler se mostra também em seu prazer e responsabilidade: o conto subverte posições naturalizadas em nossa sociedade ocidental moderna (é o garoto que engravida; na espécie Tlic são as mulheres que se envolvem em política. são os alienígenas com aparência animal que utilizam os humanos, por causa das suas funcionalidades), deslocando assim o foco do Homem (branco, heterossexual, ocidental etc.) e apostando na diferença, no encontro com o Outro como produtor de novas realidades, novas formas de estar no mundo. Mas ela não se limita a celebrar o encontro, também o problematiza.
Nesse sentido, não enxergamos Bloodchild nem como utópico, nem como distópico. Recorremos aqui ao filósofo italiano Antonio Negri, cuja noção de desutopia constitutiva nos parece particularmente interessante para pensar a ficção científica que mais nos interessa. A desutopia manteria a luta em aberto, não a fecharia numa teleologia, num fim determinado: “uma desutopia, ou seja, o sentido de uma atividade constitutiva, intensa como a utopia, mas sem ilusões, plena de materialidade” (NEGRI, 2002, p. 27). A desutopia entende que os desejos da multidão (a figura política por excelência do pensamento negriano) e sua luta com o poder constituído nunca terminam, mas sempre se rearticulam, enfrentam limites, os ultrapassam, para então encontrar outros limites mais à frente. Para nós o conto de Butler se coloca exatamente nesse lugar, nem a utopia de uma sociedade perfeita nem a distopia de um fracasso total, mas uma constatação das possibilidades de transformação que o encontro com o outro proporciona e os limites a ainda serem ultrapassados no processo.
O conto de Butler nos apresenta, a princípio, uma cena familiar, de aparente tranquilidade, para então desmontar toda a familiaridade através do incidente com o N’Tlic que eles têm que socorrer. Gan tem que desconfiar de toda a visão de mundo que lhe era dada, tem que enxergar tudo como alienígena para que sua escolha fosse realmente sua e não algo que lhe foi imposto. E que ele decida por T’Gatoi, pelo salto no escuro, pela abertura ao desconhecido, é o que nos faz acreditar em Bloodchild como um conto repleto de positividade. E de amor. Gan entende também a sua responsabilidade, agora que ele sabe. Por isso ele exige de T’Gatoi um tratamento horizontal (“‘Se nós não somos seus animais, se essas são questões adultas, aceite o risco. Há riscos, Gatoi, em lidar com um parceiro’”) e ainda insemina em T’Gatoi, ao mesmo tempo em que ela implanta seus ovos nele, a ideia de que todos os humanos merecem saber, entender os riscos que correm e assim poder decidir com clareza. Gan também se torna político nesse momento mais pessoal. Fronteiras são transpostas, enquanto outras continuam latentes e novas se apresentam. E é uma aposta no encontro com a diferença, na abertura, no devir, que Octavia Butler nos exige em sua desutopia.
Nada está resolvido, é preciso continuar lutando.
Referências bibliográficas
BUTLER, Octavia. Bloodchild. In: Bloodchild and other stories. Nova Iorque: Seven Stories Press, 2005.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992a.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Tecnologia, memória e esquecimento: da modernidade à pós-modernidade. In:
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/famecos/article/viewFile/439/366. Acesso em 20/12/2013.
HARAWAY, Donna. Sowing Worlds: a seedbag for terraforming with earth others. In: GROBOWICZ, Margret, MERRICK, Helen (Orgs.). Beyond the cyborg: adventures with Donna Haraway. Nova Iorque: Columbia University Press, 2013a.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b.
NEGRI, Antônio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da humanidade.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002.