PÓS-COLONIALISMO, FEMINISMO E A ESCRITA DE MULHERES DE COR NOS ESTADOS UNIDOS
Darlene J. Sadlier
Indiana University-Bloomington
A área de estudos pós-coloniais nos EUA surgiu dum interesse em autores de lugares previamente colonizados, como Índia, Paquistão e África, os quais utilizaram a língua do colonizador inglês para escrever sobre a opressão, a resistência e a formação duma identidade cultural. Os organizadores duma antologia intitulada The Post-Colonial Studies Reader (1995) explicaram como esse interesse resultou numa prática teórica:
Como resultado do desenvolvimento complexo do imperialismo europeu, algo aconteceu que o plano da expansão imperial não esperava: a imensamente prestigiosa e poderosa cultura imperial foi apropriada pelos projetos da resistência contra-cultural, os quais utilizaram os muitos e diferentes processos indígenas de auto-determinação, locais e híbridos, para desafiar, desgastar, e às vezes suplantar o grande poder da sabedoria cultural imperial… Uma vez que o povo colonizado tinha motivo para refletir sobre e expressar a tensão que seguiu às problemáticas e contestadas mas eventualmente vibrantes e poderosas misturas de língua imperial e experiência local, a “teoria” pós-colonial chegou a ser uma realidade (1).
Os organizadores da antologia advertem que a teoria “pós-colonial” não pode ser considerada como igual ao conceito da “marginalidade” no sentido comum, e enfatizam que os ensaios desta antologia tratam do específico processo histórico da colonização em países antigamente dominados pela Inglaterra. Mesmo assim, é fácil compreender porque certas críticas feministas são atraídas e até identificam-se com o conceito geral do “outro” colonizado: como sujeitos subordinados ao patriarcado, ambos as feministas e os pós-colonialistas tendem a falar em nome do povo marginalizado e, desse modo, fazem semelhantes desafios ao cânone literário estabelecido.
Claro que há diferenças importantes entre a área vasta do feminismo euro-norte-americano e a área mais específica dos estudos pós-coloniais. A teoria feminista privilegia o gênero e a sexualidade enquanto os estudos pós-coloniais estão mais preocupados com a raça e a classe social. Algumas feministas e críticas pós-coloniais encontraram um território comum no conceito da “duplamente colonizada” -uma expressão que se refere às mulheres nos países antigamente colonizados que são duplamente colonizadas por leis coloniais e patriarcais; como resultado, surgiu um tipo de subcategoria de estudos pós-coloniais, sintetizando a teoria feminista e a análise do imperialismo. Não é supreendente, porém, que a síntese de gênero, raça e classe social crie problemas. Para as escritoras e críticas pós-coloniais, a solidariedade com a comunidade (mesmo que seja uma comunidade patriarcal e bem tradicional) tende a relegar ao segundo plano a lealdade ao gênero. A tensão criada por esta situação pode ser vista na resposta feminista à famosa literatura de testemunho da guatemalteca Rigoberta Menchu e da boliviana Domitila Barrios de Chungara–duas ativistas camponesas cujas narrativas dão primeiro plano à discriminação racial, ao conflito das classes sociais e à luta econômica. Embora estas duas mulheres reconheçam que o gênero tem relação com a repressão social, suas narrativas preocupam-se com a luta pela liberação de comunidades inteiras que são subordinadas ao poder colonial. Em 1975, na celebração do Ano Internacional da Mulher na Cidade de México, onde Menchu foi convidada a falar, feministas anglo-americanas elogiaram seu heroísmo mas ficaram descontentes com sua priorização de raça e classe social sobre gênero.
Um descontentamento semelhante tem sido expresso às feministas por mulheres de países em desenvolvimento. As críticas Patibha Parmar e Valerie Amos dizem que o feminismo euro-norte-americano dá demasiada atenção à política sexual da classe média branca; seu relativo silêncio sobre assuntos de raça e classe social o torna perigosamente semelhante à ideologia imperial que ele presumivelmente repudia. Em outras palavras, as mulheres nos dois lados desse assunto – mulheres em países relativamente prósperos contra mulheres em áreas relativamente pobres do mundo–têm uma relação incômoda umas com as outras.
Até certo ponto o que estou descrevendo como a relação ambivalente entre os estudos feministas e os estudos pós-coloniais tem um paralelo nos Estados Unidos na tensão entre a maioria das feministas, que escrevem sobre a opressão patriarcal dum ponto de vista da classe média branca, e as mulheres radicalizadas de cor (não consideradas brancas) (de descendência africana, hispânica e asiática) que escrevem sobre assuntos raciais. Mulheres de cor nos Estados Unidos são duplamente colonizadas e preocupam-se muito mais com a política de classe social; de fato, às vezes elas afirmam que são marginalizadas por feministas brancas não só por causa dos seus temas mas também porque a forma de suas escritas não se conforma àquilo que é geralmente classificado como teoria feminista.
Por exemplo, a feminista afro-americana bell hooks e as feministas chicanas Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga, entre outras, preferem narrativas autobiográficas que são acessíveis a um amplo público leitor. Por serem animados pela experiência pessoal, seus livros não cabem nitidamente nos paradigmas dominantes (reinantes) da teoria, que tendem a enfatizar a natureza ilusória do sujeito individualizado burguês. Como a guatemalteca Menchu, as mulheres de cor tendem a usar narrativas pessoais para comunicar uma experiência não conhecida para a maioria das mulheres nos Estados Unidos e para dar a uma minoria oprimida o status de autoraautoridade. Mas enquanto o testemunho de Menchu foi transcrito e ordenado para adaptar-se a um espanhol “normal,” hooks, Anzaldúa e Moraga são teóricas educadas, escrevendo na língua da cultura dominante mas adotando experimentos complexos com o vernáculo negro, “Spanglish” e “code-switching” (trocar do códigos).
É interessante considerar hooks, Anzaldúa e Moraga em termos do conceito proposto por Edward Kamau Braithwaite sobre a língua submergida – quer dizer, uma forma subversiva de inglês que é freqüentemente associada com uma população não-alfabetizada. Estas escritoras também se parecem com o grupo feminista da Jamaica chamada Sistren, cujas peças revisam radicalmente tanto a língua inglesa, pelo uso dum “patwah” (diferente do “patois”) como o drama como forma literária, pela incorporação de formas folclóricas, o rito e o testemunho (Katrak, 257). Por exemplo, no livro Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black (1989), hooks joga com a idéia de “back talk”–uma forma de falar das famílias afro-americanas pela qual uma criança ou uma mulher afirma sua igualdade em desafio a uma figura de autoridade. Hooks diz:
A ênfase (nos círculos feministas) no silêncio da mulher (o signo da submissão da mulher à autoridade patriarcal) pode ser uma recordação fiel daquilo que passou nas famílias de mulheres WASP (brancas, anglo-saxãs, protestantes) nos EUA, mas nas comunidades negras (e em diversas comunidades étnicas), mulheres não ficaram caladas. Suas vozes podem ser escutadas. De fato, para mulheres negras, nossa luta não foi surgir do silêncio senão mudar a direção de nosso discurso que compele os ouvintes, um discurso que é ouvido (6).
Hooks deriva uma parte considerável de seu enfoque do livro de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, sobre a importância do diálogo e sua relação com a luta dos oprimidos para tornar-se sujeitos. Porém a força de seu argumento deriva de sua experiência pessoal: ela nasceu e cresceu numa comunidade negra do sul e freqüentou uma escola com alunos negros e professores negros; tornou-se uma aluna das universidades de Stanford, Wisconsin, e da Califórnia no Sul, e em Santa Cruz; e chegou a fazer uma carreira sólida como professora de literatura americana–primeiro na Universidade de Yale e depois no City College em Nova York. Hooks afirma por todo seu livro sua solidariedade com a causa da liberação feminista, mas desconfia daquelas professoras que presumem falar pelo “outro” ou que questionam a validez do que é pessoal: “É nossa responsabilidade coletivamente e individualmente distinguir entre o mero falar que é autopromoção e exploração do exótico “outro,” e aquele chegar à voz que é um gesto de resistência, uma afirmação da luta” (18). Hooks entende a teoria e prática feminista como um instrumento pedagógico e transformador, capaz de alcançar um público vasto dentro e fora da universidade, e sua crítica das tendências atuais no mundo editorial feminista é severa:
A teoria feminista esta transformando-se rapidamente noutra esfera de elitismo acadêmico, em que o trabalho que é lingüisticamente enrolado, que se deriva de outras tais obras, é considerado mais sofisticado intelectualmente, de fato é considerado mais teórico (já que o estereótipo da teoria é que ela é sinônima daquilo que é difícil de entender, que é lingüisticamente enrolado) que o trabalho que é mais acessível. Cada vez que isso acontece, a potencialidade radical, subversiva da erudição feminista e da teoria feminista é solapada (36).
É interessante que hooks tenha sido criticada por alguém que se poderia esperar ser sua partidária – a bem conhecida crítica pós-colonialista, Sara Suleri, que vem duma próspera família paquistanesa e que também ensina em Yale. Segundo Suleri, hooks está demasiado preocupada consigo mesma para fazer uma significante contribuição às idéias sobre raça e gênero:
O livro Talking Back é curiosamente comprometido com o ato de falar consigo mesmo; ao rejeitar o modo de protesto de Caliban, sua crítica da colonização é quietamente narcisista… 0 trabalho de hooks baseia-se nos casos da experiência vivida e sua capacidade de oferecer uma alternativa ao discurso daquilo que ela chama de o racionalismo patriarcal… Hooks afirma que a narrativa pessoal é o único conforto aos rudes atritos que a teoria feminista ocidental infligiu no corpo da etnicidade. As histórias da experiência vivida não podem, porém, funcionar como uma alternativa suficiente, sobretudo quando elas estão baseadas nos protestos perigosamente literárais da pós-colonização (278).
Suleri despreza as narrativas pessoais mas, ironicamente, sua própria autobiografia de sucesso, Meatless Days, é baseada nas suas experiências vividas como uma mulher na sociedade paquistana. A diferença básica entre Suleri e hooks é que Suleri tem um compromisso teórico com um paradigma pós-estruturalista que é altamente desconfiado da subjetividade individual. Suleri acredita que as vidas individuais são de algum modo “escritas” pelas leis do Estado – como podemos ver nos seus comentários sobre o Islão e os dos direitos da mulher num ensaio intitulado “Woman Skin Deep; Feminism and the Postcolonial Condition” (1992). Para hooks, o que é pessoal é menos problematicamente político. “Talking back” torna-se uma maneira pela qual aquelas mulheres que nunca tiveram uma voz pública na sociedade ou dentro do movimento feminista podem deixar de ser objeto e tornar-se sujeito. Hooks esclarece que ela não está advogando um “discurso ordinário” senão um discurso como um “ato de resistência” para o desenvolvimento duma consciência crítica (14). E sua ênfase na palavra “falando” é um reconhecimento do fato que, para certos grupos de mulheres e homens nos Estados Unidos, a alfabetização não é um dado absoluto. Para que a mudança ocorra no seio do grupo, o feminismo e a teoria feminista precisarão de se abrirem para incluir narrativas orais e teorias múltiplas que “surgem de diversas perspectivas numa variedade de estilos” (37). Hooks escreve:
O testemunho pessoal, a experiência pessoal, é terra fértil para a produção da teoria feminista liberatória porque geralmente forma a base do nosso fazer teórico. Enquanto trabalhamos para resolver esses assuntos que são mais urgentes no quotidiano (a necessidade de alfabetização, um fim à violência contra as mulheres e crianças, a saúde e os direitos da mulher e da reprodução, etc), entramos num processo crítico de teorizar que facilita e dá poder. Continuo a ficar surpresa que haja tanta escrita feminista produzida e, ao mesmo tempo, tão pouca teoria feminista que tente falar com mulheres, homens e crianças sobre as maneiras como podemos transformar nossas vidas através de uma conversão a uma prática feminista. (80)
Oito anos antes da publicação de Talking Back por bell hooks, Cheeríe Moraga e Gloria Anzaldúa organizaram This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1981), uma coletânea de textos escritos por várias mulheres. Como o livro de hooks, que foi publicado por South End Press, esta antologia teve dificuldades em encontrar uma editora e foi lançado por Persephone, uma pequena editora independente na costa leste dos Estados Unidos. 0 fundamento lógico da publicação de This Bridge foi ostentivamente chamar atenção para o racismo e as distinções de classe social que problematizaram a relação entre mulheres de cor e a maioria das feministas. 0 livro também salienta eficazmente as verdadeiras diferenças dentro da cultura de minorias nos Estados Unidos que era freqüentemente caracterizada pela maioria feminista como simplesmente “a outra”.
E’ interessante comparar This Bridge ao lado de outras antologias feministas que apareceram nos anos 80. Por exemplo, The New Feminist Criticism, de Elaine Showalter, inclui várias intelectuais feministas bem conhecidas que escrevem sobre a literatura de mulheres em inglês. Seu livro está totalmente dentro dos parâmetros gerais da crítica de gênero literário, e utiliza um inglês “normal” para escrever principalmente sobre autoras brancas e canônicas. (A única exceção é um ensaio de Barbara Smith sobre a crítica feminista negra que, é de notar, começa e termina com uma narrativa pessoal sobre raça e gênero.) This Bridge, por outro lado, desafia a classificação de gênero literário: reúne várias formas literárias – poesia, cartas, ensaios – e mistura ficção e não-ficção; seu propósito não é de explicar o texto senão de colocar e advogar as “diversas perspectivas e vários estilos” dum grupo de mulheres marginalizadas tanto pela sociedade quanto pela maioria das feministas. No caso particular das escritoras chicanas, isto inclui a subversão do inglês, ou, como Gloria Anzaldúa diz:
(…) apropriar-se de todas as línguas que falamos como gente que nem é espanhola nem mora num país onde o espanhol é a primeira língua; para gente que mora num país em que o inglês é a língua dominante mas não é anglo-saxônica, para gente que não pode identificar-se completamente nem com o espanhol (o castelhano oficial) nem com o inglês “normal,” que recurso resta senão criar sua própria lingua? (Borderlands 12).
Como no livro Talking Back, o enfoque mais freqüentemente utilizado pelas várias escritoras em This Bridge é autobiográfico. Isto se vê em Cherríe Moraga, em seu poema “Para a Cor da Mãe,” e no manifesto/ensaio “La Guera,” e nas narrativas de Gloria Anzaldúa intituladas “La Prieta” e “Falando em Línguas: Uma Carta às Escritoras do Terceiro Mundo.” Como hooks, Anzaldúa dirige-se à natureza e ao propósito especifico do que ela chama “haciendo teorias”:
O que é considerado teoria na comunidade acadêmica dominante não é necessariamente o que é teoria para as mulheres de cor. A teoria produz efeitos que modificam a gente e a maneira pela qual se percebe o mundo. Por isso precisamos de teorias que nos permitam interpretar o que acontece no mundo, que expliquem como e porque nos identificamos com certas pessoas de maneiras específicas, que reflitam o que acontece entre os “eus” internos, externos e periféricos e entre os “eus” pessoais e o “nós” coletivo de nossas comunidades étnicas (“haciendo”, xxv).
Depois da publicação de Talking Back e This Bridge, hooks, Anzaldúa e Moraga publicaram outros livros. O livro Teaching to Transgress (1994), de hooks, publicado por Routledge, é um experimento mais complexo que abrange a narrativa pessoal, a prática pedagógica e a crítica feminista. Os livros de Anzaldúa e Moraga, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1989) e Loving in the War Years: lo que nunca pasó por sus labios (1983) são uma continuação de seus respectivos trabalhos autobiográficos que apareceram em This Bridge. No livro Loving in the War Years, Moraga move-se entre a ficção e a poesia, o inglês e o espanhol, a primeira e a terceira pessoa, para criar uma poética chicana alternativa feminista (lésbica). A obra de Anzaldúa está ganhando mais atenção e é freqüentemente comparada aos escritos produzidos pelo movimento nacionalista chicano dos anos 1960, com sua ênfase nos mitos indígenas e na história cultural. A diferença é que Anzaldúa está olhando os mitos e a hist6ria do ponto de vista duma mulher (e lésbico). E a fronteira Texas/México referida no título do livro funciona não só como uma metáfora da raça e da luta social, mas também como um espaço liminar no qual mulheres brancas e mulheres de cor talvez possam ligar-se umas com as outras.
Os escritos de hooks, Anzaldúa, Moraga e outras mulheres representantes de minorias nos Estados Unidos nos trazem uma importante perspectiva crítica aos debates essencialistas e pós-estruturalistas que têm tido lugar durante os últimos anos. Suas obras sobre gênero, raça e classe social problematizaram a idéia da “mulher” de maneira nova e significativa. Ao mesmo tempo, sua insistência numa política de identidade dá uma qualidade inovadora ao seu projeto. Podemos dizer que seus trabalhos são uma síntese de ontologias aparentemente irreconciliáveis. Suas maneiras não-convencionais de escrever oferecem uma nova “fronteira” na área da teoria feminista, e merecem um estudo cuidadoso por mulheres de todas as partes.
Obras Citadas
Anzaldüa, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters/Aunt Lute Press, 1987.
hooks, bell. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press, 1989.
____. Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom. New York: Routledge, 1994.
Katrak, Ketu H. “Decolonizing Culture: Toward a Theory for Postcolonial Women’s Texts.” In The Post-Colonial Studies Reader.
Moraga, Cherríe. Loving in the War Years: lo gue nunca pasó por sus lábios. Boston: South End, 1983.
Moraga Cherríe and Gloria Anzaldúa. This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. Watertown, MA: Persephone Press, 1981.
The Post-Colonial Studies Reader, ed. Bill Ashcroft, Gareth Griffiths, Helen Tiffin. New York: Routledge, 1995.
Suleri, Sara. “Woman Skin Deep: Feminism and the Postcolonial Condition.” In The Post-Colonial Studies Reader.