POESIA, MAGIA E ENCANTAMENTO: A SEDUÇÃO POÉTICA NAS LETRAS DE CARLOS VENTTURA – Claudia Vanessa Bergamin


POESIA, MAGIA E ENCANTAMENTO: A SEDUÇÃO POÉTICA NAS LETRAS DE CARLOS VENTTURA
 

Claudia Vanessa Bergamini

Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) / Assis

Resumo: Este artigo apresenta considerações acerca da composição musical de Carlos Venttura, músico brasileiro. Trata-se de letras de canções nas quais se evidencia uma forte essência poética no trato da mulher e das sensações inerentes ao amor. Com delicadeza e maestria, o compositor constrói imagens sensuais de extrema beleza, contribuindo para a elaboração de uma poesia de melopeia (melodia) e de fanopeia (imagem), dentro dos moldes pensados na Antiguidade. O corpus que compõe este artigo debruçou-se sobre duas de suas composições, a saber: Primavera e Sedução. O estudo permitiu delinear um conjunto de palavras empregado pelo compositor para se referir à mulher. Conjunto este que fez das letras, aqui analisadas, verdadeira exaltação do universo feminino.
 
Palavras-chave: construções imagéticas; mulher; amor; poesia.
 
Abstract: Poetry, Magic and Charming: The Seduction in Poetic Lyrics of Carlos Venttura presents considerations about musical composition of Carlos Venttura, a Brazilian musician. The lyrics of his  songs evince a strong poetic essence while dealing with women and sensations inherent to love. The composer builds skillfully and delicately sensual images of extreme beauty, contributing to the development of poetry melopoeia (melody) and fanopeia (images) following the modelo of Antiquity.  The corpus proposed here consists of two of his compositions, namely Spring and Seduction. The study allows to outline a set of words used by the composer to refer to women, which consist a  true exaltation of the feminine universe.
 
Keywords: imagetic constructions; woman; love; poetry.
 
Currículo da autora:  Doutoranda em Letras em Estudos Literários (UNESP/ASSIS), Mestre em Literatura Brasileira-Letras (UEL), autora de material didático sobre Literatura Brasileira para cursos de Letras e Ensino Médio.

POESIA, MAGIA E ENCANTAMENTO:
 
A SEDUÇÃO POÉTICA NAS LETRAS
 
DE CARLOS VENTTURA
 
Claudia Vanessa Bergamini
Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) / Assis
 

  1. INTRODUÇÃO

 
Não é novidade dizer que música e poesia convivem de forma amalgamada. O encontro desses dois gêneros, cuja origem direciona o olhar para a Antiguidade e, por conseguinte, leva a valorizar os elementos orais que os perpassam, há muito que vem sendo estimado por estudiosos da Literatura. O crítico português Hernani Cidade (1959) apresenta com maestria esta relação, ao se voltar para as cantigas medievais e encontrar nelas toda essência poética e musical.
De igual maneira, podem ser citados os aspectos melopaicos que compuseram poemas de períodos distintos da Literatura. A exemplo, cita-se toda a musicalidade dos poemas árcades de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, os quais valorizaram sobremaneira a mulher em seus textos, em especial o último, para quem a musa foi sua grande inspiração para compor a obra prima, Marília de Dirceu, obra poética do século XVIII. Pode-se ainda citar o Modernismo Brasileiro, cujas composições de poetas como Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes deram à poesia um ritmo cotidiano e doce, por meio do qual a mulher e o amor foram valorizados sobremaneira.
Há entre música e poesia uma relação tênue, a qual não se perdeu com as propostas vanguardistas que chegaram ao Brasil com o Modernismo Brasileiro. Tais propostas voltaram-se à desconstrução do modelo clássico (rimas, métrica, preferência por formas fixas como o soneto) e enfatizavam os versos livres, brancos e os poemas assimétricos. É por meio dessa forma que os modernistas e, por conseguinte, os poetas e compositores que os sucederam, valeram-se de recursos outros para compor textos nos quais a imagem e a melodia marcavam a construção de uma poesia delicada e significativa.
De igual maneira, pode-se afirmar que as composições de Carlos Venttura também apontam para a construção dessa poesia de fanopeia (imagem) e melopeia (ritmo), por meio dos quais ele direciona seu interlocutor a vivenciar o que é apresentado em cada canção.
Com vistas a demonstrar como isso ocorre nas suas letras, analisam-se as composições de Venttura: “Primavera” e “Sedução” (ver Anexo).
 

  1. SEDUÇÃO E ENCANTAMENTO: A MULHER VIROU POESIA

 
Em tempos nos quais a figura feminina tem sido tão depreciada em letras de gêneros musicais diversos, encontra-se em Carlos Venttura um compositor dedicado à valorização da mulher. Grande parte de suas composições falam dela, exaltando-a e a colocando como grande musa na vida do eu-lírico que se apresenta nas letras. O resultado são imagens delicadas, construídas por meio de metáforas que não ficam somente na delicadeza, haja vista que, muitas vezes, ganham ares de sensualidade acentuada.
Em ‘Sedução’, o interlocutor depara com uma metáfora que ventila duas ideias: a da sedução da boca feminina e, ao mesmo tempo, permite a construção fanopaica de um eu encantado com a beleza dessa mulher.
 
A sua boca poderosa rosa,
Me conduz, e me seduz.
Descortinando os brancos dentes num sorriso luz,
Lábio tom rosa carmim.
VENTTURA, CARLOS, Sedução
 
Nota-se que ocorre uma rima rica emparelhada entre o segundo e o terceiro versos; porém, esta rima não ganha sequência nos demais versos, fato que não é empecilho para que o compositor construa sua poesia melopaica, visto que a escolha lexical de palavras como ‘rosa’, que na estrofe tem dois significados – cor da boca e o fato de a própria boca ser uma rosa – e ‘carmim’ contribuem para a imagem poética da mulher descrita.
Na sequência, verifica-se a preferência por palavras soltas que sugerem todo o encantamento do eu diante da nudez feminina e ocorre também a sugestão da intimidade.
 
Pele,
Nuca,
Costas,
Bunda.
Pernas a serpentear,
Na selva dos lençóis da cama,
Ama, ama, ama…
E me leva a sonhar.
(E vive a Sonhar)
(VENTTURA, CARLOS, Sedução)
 
Mais uma vez é preciso destacar a riqueza da escolha lexical ao se referir aos movimentos serpenteantes embaixo dos lençóis, ao amor e ao fato disso tudo levar o eu ao sonho. A delicadeza dessa construção permite ao interlocutor construir uma imagem bela e sugestiva do ato sexual e nem mesmo a nudez retratada nos primeiros versos da estrofe diminui a mulher, ao revés disso, valorizam-na ainda mais.
Em ‘Primavera’, uma vez mais para se referir à mulher é construída uma imagem ligada à flor, desta vez a preferência foi pelo perfume do jasmim:
 
Amanheceu luz do Sol,
No ar um cheiro de Jasmim.
Quanta beleza ao meu lado.
Pensei que era sonho,
Mas estava acordado.
VENTTURA, CARLOS, Primavera
 
Faz-se mister destacar que a imagem feminina se faz por meio do perfume e, na sequência, o interlocutor tem construída a imagem do sonho, já que a beleza da mulher é algo que coloca o eu em dúvida sobre a realidade.
Nos versos posteriores, tem-se uma imagem sensual apresentada:
 
Anjo, Mulher, Quimera,
Esfinge me devora.
Não decifrei quem era,
Pudera.
Dormi e acordei com a primavera.
VENTTURA, CARLOS, Primavera
 
As rimas tomam a estrofe, sendo elas alternada, nos versos 1 e 3, e emparelhada em 4 e 5. No entanto, o compositor não deixou de se valer de outros recursos. No primeiro verso ocorre a gradação, tendo em vista que a mulher é colocada como ‘anjo’, algo intocável, ‘como ‘mulher’, algo real, por fim, como ‘quimera’ que, na mitologia grega, é concebida como uma fera, uma figura mítica de forma similar a um dragão. Nessa construção, observa-se que a mulher passa por estágios que a colocam como surreal (anjo), real (mulher) e mito (quimera). Para finalizar a estrofe, mais uma vez ocorre a relação entre mulher e flores, já que essa é retomada como ‘primavera’, a sugerir uma bela imagem sinestésica da mulher. A sinestesia inclusive é um recurso que segue na canção:
 
E é só fechar os olhos pra sentir,
Seu doce perfume. Impregnado em mim.
VENTTURA, CARLOS, Primavera
 
Observa-se a sinestesia logo no primeiro verso, em que a sensação é aguçada pelo olhar e pelo paladar, haja vista que ao fechar os olhos o eu é capaz de sentir o doce perfume. Cabe lembrar que a sinestesia consiste na produção de duas sensações diferentes. Neste caso, o olfato e o paladar.
 

  1. A MAGIA E O SONHO: MULHER INTOCÁVEL

 
Toda vez que se cria uma relação entre letra e melodia tem-se uma canção. No cotidiano, estar-se-á sempre a relacionar som e palavra. No entanto, enquanto a fala é passageira, a canção eterniza uma imagem, uma melodia e as relações que com elas se estabelece.
Diante da leitura e da audição das letras/músicas de Carlos Venttura, fica evidente que as relações entre palavra e voz são ínfimas a permitir a posteridade daquilo que é cantado. Especificamente, pode-se dizer que o compositor tem dileção pela construção de relações que colocam a mulher em estado de idealização. Nota-se que ela é comparada a flores, cujo perfume, por mais suave que seja como o é o das rosas, é raro. De igual maneira o jasmim, de aroma marcante e único. Outro aspecto que permite pensar na mulher idealizada é a presença de imagens oníricas.
Em ‘Sedução’, tem-se o verso “E me leva a sonhar”, para se referir ao efeito que a mulher tem sobre o eu. Outra sugestão nessa letra se encontra em: “Pensamento voa”, em que se pode vislumbrar se tratar o ato sexual somente uma divagação do eu.
Já em ‘Primavera’, tem-se: “Sonhar depois foi minha inspiração”, ainda que os versos estejam colocados depois da afirmação do eu de que acordou com a primavera, ou seja, com a mulher, acredita-se ser possível uma imagem onírica uma vez que a mulher é anjo e quimera, palavras que sustentariam tal interpretação.
Ainda é possível destacar a preferência pelo compositor pelo perfume para identificar esta mulher. Nesse sentido, entende-se que, tal qual a leveza das flores, essa mulher intocável só permite que seu olor fique no ambiente.
 

  1. O GOZO: PLENITUDE DO AMOR

 
As construções poéticas são capazes de expressar, de forma singular, momentos selvagens de intimidade. O olhar de Venttura para tais momentos é especial, haja vista que consegue converter, em poesia, instantes únicos de prazer, sejam eles simulacros ou reais.
Neste trecho de ‘Sedução’, pode-se observar tal característica do compositor:
 
O seu misterioso olhar vem me revelar,
Como é tão bela.
Seu universo em verso e prosa,
Orvalhada rosa,
A me tentar.
Tão fascinante o seu gozar.
VENTTURA, CARLOS, Primavera
 
A metáfora que chama a atenção constrói-se com a rosa, neste caso, a orvalhada rosa sugere o êxtase feminino, o que se sustenta com a colocação do último verso em que há fascínio no eu ao ver a mulher em instante mágico. Percebe-se que a construção poética, marcada por rimas que se acentuam com a presença da vogal ‘a’, ganha ares refinados e delicados para tratar de algo que, comumente, vem sendo mencionado de forma rebaixada por alguns estilos musicais.
A esse respeito, não se pode deixar de retomar aqui as ideias de Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio (1990), acerca da leveza nos textos literários. Para o italiano, a leveza está relacionada à capacidade do compositor/autor permitir ao leitor/interlocutor que vivencie a sensação que se busca construir com as palavras. Para tanto, valendo-se de elementos linguísticos, da precisão na linguagem, com vistas a estimular, sobretudo, a percepção, por meio de metáforas e outras figuras que permitem essa sugestão verbal.
Nas composições de Carlos Venttura, a leveza é elemento preponderante e, com êxito, o compositor constrói imagens e ritmos que, de fato, estimulam a percepção do interlocutor.
 

  1. PALAVRAS FINAIS

 
À guisa de concluir as considerações aqui tecidas a respeito das composições de Carlos Venttura, cabe retificar as características que foram suscitadas, a saber: a construção de metáforas imagéticas ligando a figura feminina a flores; a construção de sinestesias sugerindo o tato e o paladar também por meio das flores; a presença de algumas rimas que dão ao texto leveza e dinamismo, corroborando o conjunto delicado de letra e música.
Por fim, ressalta-se que neste estudo somente foi possível destacar duas dessas canções, mas o conjunto composicional de Carlos Venttura reforça a ideia de que se trata de um compositor marcado pela leveza na hora de tematizar a mulher. Suas composições, para além de músicas que são verdadeiras poesias, contornam-se por elementos de magia e encantamento do eu em relação ao ser feminino.  
 
REFERÊNCIAS
 
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Cardoso. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
 
CIDADE, Hernâni. Lições de Cultura e Literatura Portuguesas. Lisboa: s. ed. 2 vol. 1933, 1959.
 
VENTTURA, Carlos.  Sedução. Disponível em: http://letras.mus.br/carlos-venttura/1673779/ Acesso 11 nov. 2015.
 
VENTTURA, Carlos. Primavera. Disponível em:  http://letras.mus.br/carlos-venttura/1599460/. Acesso 11 nov. 2015.
 
ANEXOS
 
SEDUÇÃO
Carlos Venttura
 
A sua boca poderosa rosa,
Me conduz, e me seduz.
Descortinando os brancos dentes num sorriso luz,
Lábio tom rosa carmim.
 
Pele,
Nuca,
Costas,
Bunda.
Pernas a serpentear,
Na selva dos lençóis da cama,
Ama, ama, ama…
E me leva a sonhar.
(E vive a Sonhar)
 
O seu misterioso olhar vem me revelar,
Como é tão bela.
Seu universo em verso e prosa,
Orvalhada rosa,
A me tentar.
Tão fascinante o seu gozar.
 
Bicos,
Peitos,
Fartos,
Jeitos,
Aquarelas de amor.
Seu cio,
Um rugir leoa,
Pensamento voa.
Mais uma noite de Amor…
 
PRIMAVERA
Carlos Venttura
 
Amanheceu luz do Sol,
No ar um cheiro de Jasmim.
Quanta beleza ao meu lado.
Pensei que era sonho,
Mais estava acordado.
 
Anjo, Mulher, Quimera,
Esfinge me devora.
Não decifrei quem era,
Pudera.
Dormi e acordei com a primavera.
 
Sonhar depois foi minha inspiração,
Pra delirar, talvez numa canção.
Poema imensurável,
Meu Dilema,
Com versos carregados de emoção.
 
E é só fechar os olhos pra sentir,
Seu doce perfume. Impregnado em mim.
 
Anjo, Mulher, Quimera,
Esfinge me devora.
Não decifrei quem era,
Pudera.
Só sei que acordei,
Com a Primavera