Luciano Marcos Dias Cavalcanti
Universidade Vale do Rio Verde – UninCor
Resumo: Chico Buarque surge no cenário cultural brasileiro inserindo-se na tradição do samba, absorvendo de seus compositores iniciais a adesão à voz do desqualificado social e a tendência à crônica da vida popular. Uma presença garantida em sua obra poético-musical é a dos desvalidos, configurada por uma galeria de desqualificados, seja em seu aspecto social ou moral. Uma figura importante relacionada a este mundo humilde é a do trabalhador. Neste texto, deter-nos-emos na figura do pedreiro da canção “Pedro Pedreiro”. O elemento humilde trabalhado pelo compositor também se revela em sua elaboração artística formal, fornecendo-lhe um importante recurso estilístico para sua poética: o despojamento, a redução do poético ao essencial e a aderência à linguagem popular.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira, Poesia, Chico Buarque, Pedro Pedreiro.
Abstract: Chico Buarque stands out in the Brazilian cultural scenery because he follows the samba tradition in his lyrics. He integrates in his music the idea of a lumpen proletarian and the tendency in popular music to draw a chronicle of everyday life of simple people. The lyrics in his music frequently describes the subaltern, either in their social or moral aspects. An important element in this lyrical world inhabited by the poor is the urban proletarian. In this article we will examine the figure of the mason in the song “Pedro Pedreiro.” Humbleness is an important topic which is ever present in the composer’s lyrics. It contributes to elaborate the form of the song and to provide it with a stylistic fabric: the music is simple, and poetics is reduced to the essential and approaches popular expression.
Keywords: Música Popular Brasileira, Poesia, Chico Buarque, “Pedro Pedreiro”.
Minicurrículo: Doutor em Teoria e História Literária pelo IEL/UNICAMP, professor do Mestrado em Letras da Universidade Vale do Rio Verde – UninCor.
POESIA E HUMILDADE EM CHICO BUARQUE DE HOLANDA: “PEDRO PEDREIRO” OU “QUEM ESPERA NUNCA ALCANÇA”
Luciano Marcos Dias Cavalcanti
Universidade Vale do Rio Verde – UninCor
Uma presença garantida na obra poético-musical de Chico Buarque é a dos desvalidos, configurada por uma galeria de desqualificados, seja em seu aspecto social ou moral. São exemplares as pessoas pobres, trabalhadores assalariados, como o pedreiro e o operário; as pessoas que não seguem a moral e os bons costumes provenientes da tradição pequeno-burguesa-cristã, como malandros, prostitutas, travestis; além das pessoas humildes, moradoras das favelas e dos subúrbios das grandes cidades, etc..
As reminiscências infantis de Chico Buarque se revelam um importante elemento constituidor da captação do humilde em suas composições. Ligando-se ao movimento Organização de Auxílio Fraterno, o compositor participou algumas vezes de expedições noturnas a lugares como a Estação da Luz, no centro de São Paulo, com o intuito de ajudar moradores de rua que dormiam nas calçadas, como nos conta em uma entrevista:
A gente ia de noite, assim um grupo pequeno, com umas Kombis, à Estação da Luz, levar cobertor. A gente olha hoje, e pode achar bobagem. Mas pra um cara como eu que morava ali na Zona Sul de São Paulo, (…) e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante. Então a gente, ia, chegava com aqueles cobertores e o pessoal, os mendigos, fugiam apavorados. (…) acho que devo um bocado a essa experiência, entende? Ela, pelo menos, me abriu os olhos para esse negócio, porque, normalmente, eu não estaria vendo nada disso (…) e esse contato direto que eu tive naquela época, eu procuro ter sempre. Inclusive, eu comecei a gostar de mantê-los, entende? De conhecer, de ver essa gente, de conversar (HOLLANDA, 11/09/77).
Este contato com o povo, em outro sentido, também será significativo em sua elaboração artística formal, fornecendo-lhe um importante recurso linguístico utilizado em sua obra: aderência à linguagem popular, como também o despojamento poético. Situação que se contrapõe e se contrabalança com a formação do indivíduo proveniente da classe média-intelectual, voltada para leitura literária culta, com a vida e a cultura do povo brasileiro humilde.
A compreensão da “atitude humilde” de Chico Buarque pode ser comparada ao modo como Manuel Bandeira desenvolveu o “estilo humilde” em sua poética. Configurada no despojamento e na redução ao essencial, tanto nos temas quanto na linguagem, esse tipo de atitude pode ser encarada de diversas maneiras. Uma decisiva é a da sua relação com a pobreza. De acordo com Davi Arrigucci,
Trata-se, antes de mais nada, de uma postura depurada do espírito. E também de uma disposição para agir e significar, que acaba implicando um modo específico de conceber o poético e fazer concretamente o poema. Uma atitude estilística, enfim, em que o modo de ser se converte num modo de ver a vida e a poesia, numa concepção do fazer – fundação de uma poética. É este o termo que, na sua acepção do original, parece caber à noção que Bandeira tem do fazer poético: uma atividade do espírito, em momentos de súbita iluminação, concretizada em obras feitas de palavras. E trata-se de uma poética centrada num paradoxo: o da busca de uma simplicidade em que brilha oculto o sublime (ARRIGUCCI, 1983, p.106-7).
De modo semelhante, Chico Buarque também se aproxima dessa “atitude humilde” de Manuel Bandeira ao buscar construir, com extremo cuidado, apuro técnico e economia verbal suas composições, conjuntamente com elementos provenientes da classe pobre e o seu mundo existencial, unindo forma e fundo em um organismo vivo, característica do compositor que fez com que muitas de suas composições recebessem o status de poema.
Essas relações empreendidas tanto por Manuel Bandeira quanto por Chico Buarque com o elemento humilde se tornam constituintes de uma concepção poética, se materializando na construção de suas obras, que, como diz Arrigucci, reportando-se à obra de Bandeira,
(…) corresponde a uma inserção do poeta na existência real, no mundo, no mundo misturado do cotidiano. Ao contrário de que se poderia pensar, o poeta, ao construir o poema, não estará poetizando o cotidiano. (…) Não se trata absolutamente de elevar o que se capta no plano comum do dia-a-dia, mas de desentranhar aqui o poético, junto às circunstâncias em que o Eu se acha situado. A pobreza se revela então como condição real de dar forma ao poema (ARRIGUCCI, 1983, p. 108).
Assim, será da rua e do povo simples que Chico Buarque retirará os elementos essenciais para construção de sua poética, como bem demonstra seus depoimentos e suas várias canções.
Uma figura importante relacionada ao mundo humilde presente nas composições de Chico Buarque é a do trabalhador, a qual pretendemos comentar nesta comunicação, representada pela figura do pedreiro, em “Pedro Pedreiro”[1], composição gravada em 1961, pertencente ao álbum Chico Buarque. Nesta canção, o que percebemos de imediato é a afinidade direta entre nome (Pedro) e sobrenome-função social (Pedreiro) da personagem, estabelecida pelo morfema “pedr” que nos remete à pedra, ao que é fixo, sólido e imóvel, associando-se, assim, à história da canção, que nos fala de um migrante nordestino que pensa sobre sua vida, sugerido pelo neologismo “penseiro”, enquanto espera de madrugada o trem para ir ao trabalho e o aumento de seu salário atrasado há um ano. Pedro é um indivíduo estático, incapaz de qualquer mobilidade social.
Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro Pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
A repetição presente na construção da canção é um recurso importantíssimo utilizado pelo compositor para nos dar a sensação da espera angustiada de “Pedro”. Ela também reforça a ideia inicial da imobilidade e fixidez da personagem que espera e não encontra nenhuma possibilidade de melhoria de vida:
Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
Para o bem de quem não tem vintém
Pedro Pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também.
Pedro Pedreiro vive o drama das pessoas pobres do Brasil, no qual os trabalhadores só vislumbram a possibilidade de melhora de vida através do carnaval, rito que se caracteriza pela inversão dos papéis sociais, possibilitando, momentaneamente, a troca das posições hierárquicas existentes na sociedade. No carnaval, o pobre pode se fantasiar do que quiser: de rei, nobre, etc., sofrendo uma catarse proporcionada por um momento de liberdade e utopia, característica desse rito.
A festividade do carnaval pode ser considerada um rito nacional por excelência, porque dramatiza valores globais da nação brasileira. No Brasil, o carnaval é generalizado, não pertence apenas a uma cidade ou Estado, mas a todo o país. Neste ritual, a sociedade está orientada para o evento que centraliza toda a atividade nacional, sendo decretado feriado nacional na época da festa; consequentemente, todos os cidadãos abandonam o trabalho e uma grande parte vai “pular” o carnaval. O carnaval apresenta uma particularidade em relação aos demais ritos (como o religioso, o da parada militar, o do dia da independência, etc), ele se realiza preponderantemente de modo informal, sendo caracterizado por uma situação de espontaneidade. O cotidiano massacrante do dia-a-dia é substituído por um momento extraordinário, marcado por transformações no comportamento das pessoas. A rotina maçante é trocada por momentos de alegria e descontração, e a vida diária passa a ser vista como negativa, pois nesta sofre-se, vive-se em uma rotina maquinal, em um mundo hierárquico com comportamentos ditados pelas normas morais vigentes. No desfile carnavalesco, quem participa ativamente das escolas de samba como componentes são as pessoas das camadas mais baixas e marginalizadas da sociedade. Embora as escolas reúnam, além de pobres, milionários, astros do futebol, da televisão, do cinema. Mas o que chama “atenção, nesses desfiles (a inversão constituída entre o desfilante, um pobre, geralmente negro ou mulato) é a figura que ele representa no desfile (um nobre, um rei, uma figura mitológica)” (DA MATTA, 1997, p. 58)
O carnaval talvez seja o único momento em que o pobre marginalizado e desrespeitado pode se sentir importante e respeitado como os astros de TV e as pessoas ricas. Neste momento, através do processo de inversão carnavalesca, o subalterno se iguala aos seus dominadores e passa, mesmo que por um curto período, a não se sentir inferior. Agora, os marginalizados podem ocupar lugares privilegiados, estão altamente conscientes do fato de que nos seus ensaios e durante o carnaval são eles os “doutores”, os “professores”. Com essa possibilidade, podem inverter sua posição na estrutura social, compensando sua inferioridade social e econômica, com uma visível e indiscutível superioridade carnavalesca. Essa superioridade se manifesta no modo “instintivo” de dançar o samba que o senso comum brasileiro considera um privilégio inato da “raça negra” como categoria social. (DA MATTA, 1997, p. 167) Os pobres e os negros marginalizados, que em seu cotidiano costumam portar-se de cabeça baixa, receber ordens, sofrer diversos tipos de preconceitos e humilhações, no carnaval podem se exibir como fazem os ricos com suas roupas, carros importados, etc., mas de maneira mais nobre: eles se exibem com sua capacidade de sambar com extrema habilidade, sensualidade e criatividade.
O Brasil é caracterizado como o país do carnaval. Neste, as posições sociais são invertidas. Em uma sociedade, como a brasileira, marcada pela desigualdade social, pelo preconceito racial velado, o carnaval se torna uma festa nacional de grande importância porque é somente nesta festa popular e, talvez, no futebol (quando a seleção participa de jogos internacionais) que uma grande parcela da nação brasileira, pode-se dizer, se une em uma mesma “corrente” de confraternização.
Pedro Pedreiro representa a condição da vida trabalhadora do povo brasileiro que só pode vislumbrar a saída desta condição por meio da fantasia, do carnaval e sua inversão provisória e momentânea ou no sonho sempre frustrado de ganhar na loteria[2].
O destino de Pedro é trágico e incontornável[3], pois a sua condição de indivíduo estático, sem perspectiva de melhora de sua vida, é transmitida a sua descendência familiar, pois: “(…) a mulher de Pedro/Está esperando um filho/Pra esperar também.”. Os versos revelam a paralisia social de Pedro, aprisionado a mecanismos econômicos que organizam a sociedade brasileira, ordenada pelos proprietários e donos do capital.
Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro Pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro Norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Só dá o desespero de esperar demais
Pedro Pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também,
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem.
A repetição utilizada na construção da canção se dá em 60 versos. Além de representar uma grande espera temporal, nos revela também o sentido de angústia, na qual a personagem, após esperar tanto tempo e com tamanho sofrimento, desiste de esperar: “quer ser pedreiro pobre e nada mais/sem ficar esperando, esperando, esperando”. Ao mesmo tempo em que a canção evidencia a fantasia como única válvula de escape (carnaval ou loteria), revela também a aceitação do sujeito, imobilizado pela vida, de sua condição de pedreiro pobre, de fixo na espera contínua. Chico Buarque faz uma crítica à esperança, e deixa o indivíduo no mundo real, onde não há perspectivas de melhora. O compositor também voltará a falar na desesperança em “Bom conselho”, canção que inverte o ditado popular “Quem espera sempre alcança” para “Quem espera nunca alcança”.
Nos quatro últimos versos da canção, Chico Buarque utilizará mais alguns recursos estilísticos enriquecendo poeticamente a sua composição como a aliteração em “p”, reforçando seus efeitos rítmicos. No último verso, que é repetido várias vezes, o compositor se utilizará da onomatopeia, para reproduzir sonoramente a locomoção do trem que “Pedro pedreiro” espera:
Pedro Pedreiro pedreiro esperando
Pedro Pedreiro pedreiro esperando
Pedro Pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem (etc.)
O substantivo Pedro, além da ideia de imobilidade, de fixação, é também um nome simples, refere-se a pessoas comuns, do povo, sugere a condição social do sujeito como generalização do povo pobre brasileiro, como se todos operários fossem representados por Pedro. Há uma substituição do sobrenome por um apelido comum, associado a uma profissão desprestigiada socialmente. O emprego de Pedro implica o uso da força física e de baixa remuneração, reforçando sua condição humilde. Todos nós sabemos do desprestígio que o trabalho manual sempre teve no Brasil, legado ancestralmente aos escravos. De maneira geral, podemos dizer que a canção revela um “retrato do Brasil” de fortes contrastes, uma sociedade injusta e perversa, que lega para os migrantes do Norte do país um lugar de desprestígio, de exclusão e espoliação. Nesse sentido, o trabalho exercido por Pedro expõe bem os mecanismos de funcionamento de classes no Brasil. Talvez “Pedro Pedreiro” seja o mesmo operário que, em “Construção”, composição de Chico de 1971, do álbum de mesmo nome, sobe na “construção como se fosse máquina”, com “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”, se acaba “no chão feito um pacote flácido”, agoniza “no meio do passeio público” e morre “na contramão atrapalhando o tráfego”.
“Construção” trata do tema do trabalhador espoliado com extremo apuro técnico. Toda estrutura da canção é feita por um jogo de palavras (“tijolos”) em que todos os vocábulos finais são proparoxítonos, recurso que impressionou João Cabral, poeta conhecido por sua crença no trabalho racional para a elaboração do texto poético.
Os versos da canção são dodecassílabos, construídos por uma estrutura sintática simétrica, com métrica e rimas regulares (que mudam apenas nas últimas palavras, as proparoxítonas), maneira encontrada pelo compositor para representar formalmente a circularidade da vida do operário, em seu eterno retorno, mecanizado e aprisionado em um ambiente sem saída.
“Construção” conta a história comum de um operário da construção civil que sai para o trabalho até à sua morte, em uma queda do andaime que trabalhava. Diferentemente de “Pedro Pedreiro”, em “Construção” Chico Buarque representa o pedreiro no seu local de trabalho, revelando a condição aviltante a qual o trabalhador urbano, da construção civil está inserido. Este operário nem mesmo é nomeado, o que revela sua invisibilidade. Sem questionar a organização social do trabalho, submete-se como um autômato ao seu labor, portanto, este homem é similar a uma máquina. Sua tristeza profunda, e por fim, à sua morte, não causa nenhuma comoção, é considerado um estorvo à sociedade, pois o término trágico de sua vida apenas atrapalha o trafico, o público e o sábado. Em seu sentido alegórico a canção parece representar o esfacelamento de uma sociedade que destrói o próprio homem que a constrói. A situação a qual o personagem da canção se encontra revela o modo de vida de um mundo insustentável. A maquinização do indivíduo e sua espoliação pelo capital leva-o a uma espécie de transe e/ou loucura, da perda do sentido da realidade, de embriaguez em que, talvez momentaneamente, o trabalhador parece se libertar do mundo opressor, por meio do consumo de álcool. Situação que representa bem o mundo urbano e moderno no qual o trabalhador está inserido: maquinal, ilógico e destruidor. O que também é revelado nas inversões dos vocábulos da canção e em seu ritmo vertiginoso, que mimetiza toda esta situação em seu aspecto sonoro.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (…)[4]
Toda opressão do operário de “Construção”, que não encontra uma saída para mudança de sua condição de penúria é confirmada por outra canção: “Deus lhe pague”, que Chico desloca para o final de “Construção”, promovendo a continuidade desta. Em “Deus lhe pague”, evidencia-se toda condição a qual o trabalhador é sujeitado e que, ironicamente, é o que a sociedade ocidental-cristã moderna tem a lhe oferecer: o trabalho excessivo e mal remunerado até a sua morte:
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
Outro fator que importante há observarmos, o qual reforça ainda mais as condições precárias da “personagem”, é a sua origem: “Pedro pedreiro” é um migrante do norte que mora em um subúrbio, pois tem que esperar o trem para ir ao trabalho. Situação que revela outra esperança não alcançada pela personagem. A do indivíduo que ao migrar do norte para o sul do país almeja sua melhora de vida em uma região mais desenvolvida. Mas o que encontra novamente é sua exclusão ou expulsão do centro e/ou dos bairros nobres da cidade desenvolvida para o subúrbio. Onde vivem os trabalhadores mal remunerados e excluídos do ambiente moderno e do que ele pode lhe proporcionar.
“Pedro pedreiro” é um indivíduo humilde de uma grande cidade, onde se chocam as contradições do desenvolvimento do mundo moderno brasileiro e de seu atraso. O compositor, ao nos revelar esse retrato da pobreza, se solidariza com ela e nos mostra a poesia no “baixo”, onde o sublime se oculta, numa vida humilde e simples. Ao retirar poesia deste meio “baixo”, não “elevado”, o compositor se afasta da matéria da poesia tradicional, na qual o poético significa o nobre e o raro, revelando que esta pode estar presente também no mais humilde cotidiano do homem simples, lição deixada pela tradição do samba e da elaboração lírica modernista de Manuel Bandeira.
Em “Pedro pedreiro”, destaca-se o espaço da cidade moderna, na qual o homem está inserido, em seu cotidiano, em suas ruas, em suas multidões de anônimos, sofrendo as degradações a que o mundo moderno sujeita a todos com suas experiências. Podemos notar que Chico Buarque inspira-se no drama de um João–ninguém e o transforma em uma experiência humana, densa e complexa. Um destino particular é transformado em um valor geral, abstrato e universal do indivíduo angustiado. Na canção, o elemento social não é tomado como um simples engajamento político, mas, ao contrário, a referência ao social revela nela própria algo de essencial, algo que fundamenta sua qualidade poética. Para Adorno, “(…) o conteúdo de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, [estas] só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação do seu tomar-forma estético, adquirem participação no universal.” (ADORNO, 1980, p. 193). Assim o vemos revelado nos versos da canção que mimetizam a espera angustiada de Pedro, como vimos anteriormente, e que pode ser sintetizada na sonoridade do verso que imita o ruído do apito do trem: “aflita, bendita, infinita/ Do apito do trem”, nas suas rimas internas consoante (ita) e soante (ita/ito). O que também pode ser notado na representação da espera interminável no verso final: “Que já vem/ Que já vem/ Que já vem/ Que já vem/ Que já vem. (etc.)”. Como também na economia vocabular da canção que apresenta poucos substantivos e adjetivos que se repetem, mais o neologismo “penseiro”, onze verbos (em várias flexões), algumas locuções verbais, o verbo “esperar” no gerúndio repedindo-se, entre outras comentadas acima. Toda essa estrutura formal deságua na figura do homem moderno angustiado e em confronto com os valores desse mundo[5].
Chico Buarque nos mostra que é possível encontrar a poesia no mais humilde cotidiano, desentranhada, pela depuração da linguagem, na forma simples e natural da canção. Em sua obra, o compositor reconhece o outro, resgatando a experiência de vida de uma personagem desqualificada socialmente, solidarizando-se com a existência invisível do outro. A figura do homem humilde presente em sua obra é valorizada em sua complexidade, digna de reconhecimento. E essa postura diante do mundo e da poesia se revela em sua canção como uma atitude estética, na recusa ao elevado e a uma linguagem apenas formalista.
A canção de Chico Buarque faz uma análise critica da sociedade e se coloca contra a ideologia oficial, contestando a insensibilidade do sistema para com os humildes. Conforme observa César, o compositor “está consciente de sua função político-social e faz de sua poesia o instrumento de denúncia da realidade, das injustiças e das desigualdades sociais.” (CESAR, 1993, p. 83).
A Moderna Música Popular Brasileira apresenta uma proposta nova dentro da tradição. Historicamente surgida a partir do desenvolvimento da bossa nova, no dizer de Walnice Nogueira Galvão, a MPB tinha o projeto de “dizer a verdade” sobre a realidade imediata e apresentava duas faces:
No plano musical, implica numa volta às velhas formas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha, marcha-rancho, modinha, cantiga de roda, ciranda, frevo, etc.) e da canção rural (moda de viola, samba de roda, desafio etc). No plano literário, impõe um compromisso de interpretação do mundo que nos cerca, particularmente em suas concreções mais próximas, brasileiras. Basta arrolar a galeria de personagens: o boiadeiro, o cangaceiro, o marinheiro, o retirante, o violeiro, o menino pobre da cidade, o homem do campo, o nordestino – que vem trabalhar no sul, o chofer de caminhão, o homem da rua, o sambista, o operário etc (GALVÃO, 1976, p. 93).
Para a ensaísta, a nova proposta da “Moderna Música Popular Brasileira” reside no compromisso com uma realidade cotidiana e presente, com o “aqui agora”. Esse compromisso, observa Galvão, a leva “a adotar a desmistificação militante, derrubando velhos mitos que se encarnavam em lugares comuns da canção popular, como a louvação da beleza do morro e do sertão, da vida simples, mas plena do favelado e do sertanejo” (GALVÃO, 1976, p. 93).
Assim, após o período inicial (1958-1962) as músicas da Bossa Nova – de letras que se prendiam a temas intimistas, falando do “mar, amor e luar” – passam a acompanhar a evolução do problema político brasileiro, tendo uma conotação mais popular e participativa no período pré-1964, para finalmente desempenhar uma fase de politização explícita, quase militante, nos anos do regime militar. Neste momento histórico, arte e política andavam juntas, como podemos notar no depoimento de Heloísa Buarque de Hollanda:
Eu me lembro dos hoje “incríveis anos 1960” como o momento extraordinariamente marcado pelos debates em torno do engajamento e da eficácia revolucionária da palavra poética, palavra que, naquela hora, se representava como muito poderosa e até mesmo como instrumento de projetos de tomada de poder (HOLLANDA, 1980, p. 15).
Em 1962, de acordo com o anteprojeto do CPC (Centro Popular de Cultura), havia três posições possíveis para os intelectuais no Brasil naquele momento: o conformismo, o inconformismo ou a atitude revolucionária consequente, das quais a última atitude era a orientação do CPC, que tinha como prerrogativa que “em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular” (HOLLANDA, 1980, p. 17). Mas para a plena existência da “arte popular”, o artista deveria adequar sua linguagem para poderem “exprimir corretamente na sintaxe das massas os conteúdos originais”. (HOLLANDA, 1980, p. 19).
Vem desse tipo de pensamento político e estético o surgimento, em 1963, da coleção Violão de rua, que trazia uma antologia dos poemas mais significativos dos poetas engajados da época. Na introdução de um de seus livros, Moacyr Félix expõe a intenção da poesia do Violão de rua, como obra participante que pretendia ser:
(…) mais um solavanco nas torres de marfim de uma estética puramente formal, conservadora e reacionária, onde a palavra esvaziada de supostos objetivos que a determinam como o pulso onde transita o som e o sangue de toda a realidade, é apreciada por critérios exclusivamente externos (com o seu ritmo aparente, raridade, aplicação exótica) e ressalva sempre para o sentido do “divertissement” e ornamental (apud HOLLANDA, 1980, p. 20).
A canção popular da década de 1960 e 1970 tem um caráter circunstancial, assumindo muitas vezes uma dimensão quase jornalística, passando a refletir diretamente os acontecimentos do dia-a-dia. Ela torna-se veículo de comunicação que diz o que os canais competentes de comunicação não podiam dizer.
Chico Buarque surge no cenário cultural brasileiro inserindo-se na tradição do samba, absorvendo de seus compositores iniciais a adesão à voz do desqualificado social e a tendência à crônica da vida popular – não são poucas as comparações de Chico a Noel Rosa, por exemplo –, da mesma forma que está também inserido no contexto político cultural da década de 1960, que revela tanto a bossa nova, no campo musical, quanto o estado de exceção representado pela ditadura militar brasileira, momento de alerta sobre as tensões sociais. A relação de Chico com o samba ressalta sua musicalidade contestatória, uma vez que o samba, “dono do corpo”, conforme expressão de Muniz Sodré (1988), com o seu ritmo sincopado e provocador, contesta valores morais e sociais burgueses. Não é sem razão que Chico fez “Pedro Pedreiro”, herói da canção, esperar o apito do trem no ritmo contestatório do samba.
Referências
ARRIGUCCI JR., Davi. “O humilde cotidiano de Manuel Bandeira”. In: Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1983.
CESAR, Lígia Vieira. Poesia e política nas canções de Bob Dylan e Chico
Buarque. São Paulo/ São Carlos: Editora UFSC; Estação Liberdade, 1993.
DA MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Uma análise ideológica da MPB”. In: Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
HOLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque: letra e música. Humberto Werneck (Org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Songbook)
HOLANDA, Chico Buarque de. “Entrevista a Tarso de Castro”. In: Folha de São Paulo,11/09/77.<http://www.chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_11_09_77.htm.> Acesso em 18-08-2016.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980.
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982.
MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. 17ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
PERRONE, Charles A. Letras e Letras da MPB. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1988.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de janeiro: Mauad, 1988.
SITE OFICIAL de Chico Buarque <http://www.chicobuarque.com.br/>. Acesso em 20-08-2016.
NOTAS AO TEXTO
[1] O tema do trabalhador ocupará um lugar especial na obra de Chico Buarque. Em “Construção” vemos novamente a figura do operário da construção civil, humilhado em suas condições de trabalho. Em “Linha de montagem” aparece novamente o trabalhador, mas nesse momento a figura representada é a do metalúrgico do ABC paulista, que aparece também em “Bom tempo” e “Primeiro de maio”. O trabalhador rural também terá seu espaço garantido nas composições de Chico, são exemplares as canções “O cio da terra”, “Assentamento” e “Levantados do chão”.
[2] É possível perceber um diálogo, no que diz respeito ao desejo frustrado do enriquecimento pelo jogo, de “Pedro pedreiro” com o samba clássico de Wilson Batista e Geraldo Pereira, “Acertei no milhar”: “– Etelvina, minha filha!/ – Que há, Jorginho?/ – Acertei no milhar/Ganhei quinhentos contos/Não vou mais trabalhar (…) mas de repente/ De repentemente/ Etelvina me chamou/Está na hora do batente/mas de repente,/Ai de repente /Etelvina me acordou/(E disse acorda Vargulino)/Era um sonho minha gente/(Mete os peitos pelos fundos/Que na frente tem gente).”
[3] Talvez a única saída para Pedro Pedreiro seria a conscientização de sua condição de explorado e da importância de seu trabalho para a sociedade, como fez o operário de Vinícius de Moraes em O operário em construção, de 1956, poema musicado por Taiguara: “(…) E foi assim que o operário/Do edifício em construção/Que sempre dizia sim/Começou a dizer não.// E aprendeu a notar coisas/A que não dava atenção:/Notou que sua marmita/Era o prato do patrão/Que sua cerveja preta/Era o uísque do patrão/ Que seu macacão de zuarte/ Era o terno do patrão/ Que o casebre onde morava/ Era a mansão do patrão/ Que seus dois pés andarilhos/ Eram as rodas do patrão/ Que a dureza do seu dia/ Era a noite do patrão/ Que sua imensa fadiga/ Era amiga do patrão.// E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução” (grifos nossos – MORAES, 1979, p. 209-210).
[4] Ver análise detida da canção feita por MENESES, Adélia Bezerra de. In: Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982 (p.148-158).
[5] Nos anos 1960/1970, a MPB se mostra um veículo de grande importância para o cenário poético e cultural brasileiro. Segundo Augusto de Campos, para estudar a cultura brasileira dessa época, “se quiserem compreender esse período extremamente complexo de nossa vida artística os compêndios literários terão que se entender com o mundo discográfico. No novo capítulo da poesia brasileira que se abriu a partir de 1967, tudo ou quase tudo existe para acabar em disco” (CAMPOS, Augusto de. apud PERRONE, 1988, p. 19). A elaboração artística das letras da MPB se tornou evidente para os críticos literários, chegando alguns a pensar que os poetas desta geração optaram pelo veículo musical (o disco, o rádio, a televisão) devido à superioridade comunicativa dos meios audiovisuais em relação aos meios escritos.