Sandra Sacramento
Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus
RESUMO: Pretendo, neste texto, ler as personagens Paraguaçu e Moema da epopeia Caramuru (1781) de Santa Rita Durão e Iracema (1865), de José de Alencar; à luz dos ensaios Dos canibais (1584) de Montaigne, Do contrato social (1762) e Emílio (1762) de Rousseau, em atenção ao delineamento da alteridade do índio no Novo Mundo (em Durão), e em especial da mulher (em Durão e Alencar). Em contraponto, cita-se a Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791), da escritora Olympe de Gouges, e o feminismo da terceira onda, quando este incorpora severa crítica à tradição ocidental.
Palavras-chave: Personagem feminina; Razão; Alteridade; Santa Rita Durão; José de Alencar.
ABSTRACT: Paraguaçu, Moema and Iracema: reason and forgetfulness has as its main goal the reading of the characters Paraguaçu and Moema, in the poem Caramuru (1781), by Santa Rita Durão, and the novel Iracema (1865), by José de Alencar. The article will be based on the essays Dos canibais (1584), by Montaigne, and Do contrato social (1762) and Emílio (1762), by Rousseau. It draws attention to the otherness of the Indians in the New World (in Durão) and especially the otherness of the woman (in Durão and Alencar). In addition, the Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791), by the woman writer Olympe de Gouges will be compared to the feminism of the third wave when it brings a severe criticism to the Western tradition.
Key words: Female character; Reason; Otherness; Santa Rita Durão; José de Alencar.
Minicurrículo : Sandra Sacramento é Doutora em Letras (Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Atualmente, é professora titular (plena) em Teoria Literária, na Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus (BA), onde coordenou o Programa em Letras: Linguagens e Representações, aprovado pela Capes, em 2007, e atua como membro efetivo do referido Programa. Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Poitiers, na França, com a Profa. Dra. Ria Lemaire, em 2012-2013. É membre associé étranger do Centre de Recherches Latino-Américaines – ARCHIVOS, da Université de Poitiers, France, do GT Mulher e Literatura da ANPOLL e da Rede de Estudos Avançados em Leitura – RELER, grupo ligado à Cátedra UNESCO de Leitura da PUC/Rio.
PARAGUAÇU, MOEMA E IRACEMA:
RAZÃO E ESQUECIMENTO
Sandra Sacramento
Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus
A tradição ocidental estruturou-se em bases racionais presos ao modelo da analogia. Diante do Novo Mundo, o europeu, quase sempre, ao lidar com o outro, muniu-se do princípio da similitude que o antecedia, trabalhando para a manutenção da imago mundi, isto é, mapa cartográfico, escrito em 1410, pelo teólogo francês Pierre d’Ailly, sobre o mundo além do continente europeu. Ainda que filósofos como Montaigne e Rousseau tenham escrito em favor da alteridade, esses não ficaram distantes da concepção monística, ou seja, teoria do conhecimento que dissolve os fenômenos, os acontecimentos em um apriorismo, que refuta a multiplicidade e a contingência. Neste texto, persigo os desencontros experimentados entre textos literários e filosóficos frente ao novo e desconhecido, no que diz respeito basicamente à mulher índia. Pelo recorte a que me proponho, essa traz o alcance dos primeiros contatos do colonizador com a terra brasileira e sua gente, em que o sentimento amoroso despertado nas índias Paraguaçu e Moema de Caramuru de Santa Rita Durão e Iracema de José de Alencar, é capaz de se colocar submetido ao domínio cultural trazido pelo forasteiro. O modelo que se faz de pronto é o inspirado na Virgem Maria e depois na mulher burguesa, mãe de família, responsável pela esfera do privado, em eterna imanência; enquanto o homem responde pelo público, pelo político, por estar melhor adaptado segundo sua natureza (ROUSSEAU, 1755).
As índias Paraguaçu e Moema, da tribo dos antropófagos Tupinambá, são personagens da epopeia Caramuru de Santa Rita Durão, que se apaixonam pelo lusitano Diogo Álvares, náufrago na Ilha de Itaparica, no litoral baiano. É composta de X cantos, à maneira camoniana, de cunho propagandístico em louvor às grandes descobertas. No Canto II, ocorre o encontro entre a índia e Diogo. Paraguaçu é uma autóctone, de pele branca com traços finos e suaves. Apesar de não amar Gupeva, está na tribo por ter-lhe sido prometida. Como sabe a língua portuguesa, vai ao encontro de Diogo e apaixonam-se:
LXXXI
Deseja vê-lo o forte lusitano,
Por que interprete a língua que entendia;
E toma por mercê do céu sob’ramo
‘Ter como enteada o idioma da Bahia.
Mas, quando esse prodígio avista humano,
Contempla no semblante a louçania:
Pára um, vendo o outro, mudo e quedo,
Qual junto de um penedo outro penedo.
LXXXII
Só tu, tutelar anjo, que o acompanhas,
Sabes quando a virtude ali se arrisca,
E as fúrias da paixão, que acende estranhas
Essa de insano amor doce faísca;
Ânsias no coração sentiu tamanhas
(Ânsias que nem na morte o tempo risca),
Que houvera de perder-se naquela hora,
Se não fora cristão, se herói não fora
LXXXV
Bela (lhe disse então), gentil menina,
(Tornando a si do pasmo, em que estivera)
Sorte humana não é, mas é divina,
Ver-me a mim, ver-te a ti na nova esfera.
Ela a frase, em que falo aqui te ensina;
Ela, se não me engana o que alma espera,
Um fogo em nos acende, que de resto
Eterno haja de arder, se arder honesto.
No Canto IV, ocorre a guerra entre Tupinambás, liderada por Gupeva, tendo a ajuda de outras tribos, como os Tupiniquis, Viatanos, Poquiguaras, Tumimvis, Tamviás, Canucajaras; contra os Caetés, liderada por Sergipe, tribo de Jararaca, com a ajuda de outras nações, como os Ovecates, Petiguares, Carijós, Agirapirangas e Itatise. Tal contenda se deve ao fato de Paraguaçu se encontrar prometida a Gupeva, mas Jararaca não aceita perder a índia para o último e se torna amigo de Diogo Álvares. O narrador faz elogios explícitos às tribos inimigas aos Tupinanbás, também antropófagas, por sua bravura, e, especialmente, em atenção às mulheres tapuias pela destreza na guerra:
XXVII
Quarenta mil de cor todos vermelha
Conduz ao campo o forte Sapucaia:
Dez mil, que têm furada a longa orelha,
São Amazonas de femínea laia:
É o amor conjugal que lhe aconselha
A descer dos sertões à vasta praia,
Por achar-se nos lances mais temidos
Ao lado, sem temor, dos seus maridos.
XXVIII
Brasa matrona de coragem cheia
A quem o márcio jogo não perturba,
Na forma bela, mas por arte feia,
Vai comandando na femínea turba:
Deram-lhe o nome os seus da grã-baleia,
Nome que, ouvido, os bárbaros disturba,
De namorados uns que a têm por bela,
Mas outros com mais causa por temê-la.
Nesta, Paraguaçu luta e vai acabar salvando o seu amor. Ainda no Canto IV, também Paraguaçu luta contra os Caetés e salva Diogo da morte:
XLVI
Paraguaçu, que de Diogo esposa
(Por que mais Jararaca se confunda)
Ia a seu lado a combater briosa,
Nem teme a multidão que o campo inunda:
Usa com ela a tropa belicosa
Da vulgar seta, do bodoque e funda
Leva a Amazona um rígido colete,
E coa espada de ferro o capacete.
No Canto VI, Diogo participa da guerra, da qual sai vitorioso. Por tal feito, muitos chefes indígenas lhe trazem suas filhas em agradecimento.
II
Muitos deles, dos povos subjugados,
Que o efeito viram da terrível chama,
Outros vinham somente convocados
Das heróicas ações, que conta a fama;
Trazem plumas e bálsamos prezados,
E outra rude opulência, que o povo ama,
E com os dons da americana Ceres
Oferecem-lhe as filhas por mulheres.
Moema é também conduzida:
IV
Tuibaé, dos Tapuias chefe antigo,
Tiapira lhe oferece celebrada;
E com a mão da filha deixa amigo
Uma ilustre aliança confirmada.
Xerenimbó trazia-lhe consigo
A formosa Moema já negada
A muitos principais, por dar-lhe esposo
Digno do trono de seus pais famoso.
Entretanto, Diogo prefere Paraguaçu:
VI
Paraguaçu, porém, com fé de esposo
Parecia estimar distintamente,
Mostrando-lhe no afeto carinhoso
A sincera afeição que n’alma sente:
Amava nela o peito valoroso,
E o gênio dócil, com que à fé consente;
Amor que ocasionou, como é costume,
Em algumas inveja e noutras ciúme.
No primeiro contato que Diogo tem com Gupeva, no Canto II, esse se apresenta solícito à doutrinação religiosa, pois, em uma gruta, reconhece a beleza da Virgem Maria.
XXVII
Mas entre objetos vários a que atende
Nota Gupeva extático a pintura
Que num precioso quadro, que ali pende,
Representava a Mãe da formosura:
Se seja coisa viva não entende,
Mas suspeitava bem pela figura
Digna a pessoa, de que a imagem era,
De ser mãe de Tupá, se ele a tivera.
XXVIII
“Esta (pergunta o bárbaro) tão bela,
Tão linda face, acaso representa
Alguma formosíssima donzela,
Que esposa o grão-Tupá fazer intenta?
Ou porventura que nascesse dela
Esse que sobre os céus no sol se assenta?
Quem pode geração saber tão alta?
Mas se há mãe, que o gerasse, esta é sem falta.”
XXX
Peçamos, pois que é mãe, que nos defenda,
Que te dê para ouvir dócil orelha
E contigo o teu povo recomenda. »
Dizendo o herói assim, devoto ajoelha.
Gupeva o mesmo faz com fé estupenda
E pendente de Diogo, que o aconselha,
Levanta as mãos, como ele levantava,
E, vendo-o lacrimar, também chorava.
No Canto VI, Diogo ergue uma capela em uma gruta, visando à catequese.
VIII
E, estando o sol no seu maior aumento,
Quanto sítio no ardor busca sombrio,
Numa lapa, que esconde alto mistério,
Foi achar para a calma o refrigério
XII
Capela ali se vê de entalho nobre,
Obrado com desenho estranho e vário,
Onde, efigiado em mármore, se cobre
Um natural belíssimo Calvário;
Vê-se a base da cruz, mas nada sobre,
De jaspe ainda melhor que Egízio, ou Pário,
E ao lado um posto em proporção distinta,
Onde a mãe e discípulo se pinta.
XIV
Eis aqui preparado (disse) o templo,
Falta n fé, falta o culto necessário;
E quanto era de Deus, feito contemplo
Tudo o que é de salvar meio ordinário.
Desta intenção parece ser exemplo
Este insigne prodígio extraordinário,
Onde parece que no templo oculto
Tem disposto o lugar e espera o culto.
Ainda no Canto VI, Diogo parte com Paraguaçu para a Europa em um barco francês; e, na saída da nau, as índias que foram preteridas por Diogo Álvares, acorrem ao mar na intenção de acompanhá-lo a nado; mas somente Moema consegue chegar mais perto e declara seu amor ao português:
XXXVII
Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada;
E, ignorando a ocasião de estranha empresa,
Pasma da turba feminil que nada.
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.
Moema desabafa e clama por um homem que ela não encontra em Diogo, cujo modelo também não é o do indígena:
XXXVIII
“Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem…
Porém o tigre, por cruel que brame,
Acha forças amor que enfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que eu te ame.
Faziam, raios, coriscos, que o ar consomem.
Como não consumis aquele infame?
Mas apagar tanto amor com tédio e asco…
Ah que o corisco és tu… raio… penhasco?
XLI
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente com que aos meus respondas!
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir), ah não te escondas!
Dispara sobre mim teu cruel raio… »
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.
Não mais resistindo…
XLII
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
Mas, ainda brada:
“Ah Diogo cruel!” disse com mágoa,
E, sem mais vista ser sorveu-se n’água.
Tal como Moema, Iracema também morre. Perguntamo-nos se não estaria aí a chave para o entendimento de uma proposta mais equânime para a colonização e, consequentemente, para a relação estabelecida entre o homem/ branco/ europeu e o outro homem/ indígena/ do Novo Mundo; ou entre o primeiro e a mulher/ indígena/do Novo Mundo? No Canto VII, Paraguaçu, ao ser recebida na Corte pelos reis franceses, é batizada e recebe o nome da rainha Catarina de Médici, esposa de Henrique II. No Canto VIII, na viagem de volta ao Brasil, sem antes parar em Portugal, Paraguaçu descreve a Bahia com suas terras, engenhos e fortalezas; e profetiza o futuro do Brasil, as invasões francesa e holandesa, sempre em favor das tropas portuguesas. E, em seguida, a empreitada colonizadora se adensa, confirmando o que já havia sido anunciado nos Cantos II e VI, acerca da catequese e da imposição de um modelo feminino espelhado à luz mariana. A volta do casal encontra-se narrada nos Cantos, VIII, IX e X.
Nestas narrativas, sobressai o imaginário europeu sobre o Novo Mundo, com sua gente e sua natureza, apoiando-se em uma gama de referências, que justificam a empreitada expansionista; ainda que, muitas vezes, ocorra a simpatia por aquela gente chamada de bárbara, diante da antropofagia, ou pelo fato de não identificar sinal de cobiça, entre os índios, como se confirma na estância a seguir, do Canto II.
XXVI
Acesa a luz na lôbrega caverna,
Vê-se o que Diogo ali da nau levara;
Roupas, armas, e entre parte mais interna
A pólvora em barris, que transportara,
Tudo vão vendo à luz de uma lanterna,
Sem que o apeteça a gente nada avara,
Ouro e prata, que a inveja não lhe atiça;
Nação feliz, que ignora o que é cobiça!
Aqui o colonizador, na voz do narrador, louva a ausência de cobiça no índio. Da mesma forma que, em Iracema, de José de Alencar são enaltecidos os valores cultivados pelos índios, mas, em grande medida, o que prevalece é o modelo do colonizador. Em relação à mulher, por exemplo, era esperada a submissão ao homem, (tal como aparece em Emílio, publicado inicialmente em 1762, por Rousseau, acerca do comportamento esperado para Sofia): – Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém (p.176); – Iracema tudo sofre por seu guerreiro e senhor (p. 184); – O coração da esposa está sempre alegre junto de seu guerreiro e senhor (p.190). O mesmo podemos dizer em relação a ela dentro do casamento, como se confirma nas palavras de Poti:
A felicidade do varão é a prole, que nasce dele e faz seu orgulho; cada guerreiro que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome às nuvens; como a grimpa do cedro. Amado de Tupã é o guerreiro que tem uma esposa, um amigo e muitos filhos; ele nada mais deseja senão a morte gloriosa (ALENCAR, 2006, p. 203).
Tais prescrições comportamentais não são as indígenas, como o reconhecimento do homem como senhor de obras, esposa e filhos (BOURDIEU, 2000). Entretanto, a índia, quando comparada à europeia, é colocada como menos casta que aquela: – Martim se embala docemente; e, como a alva rede vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores (2006, p. 161). Montaigne, no ensaio Dos Canibais, de 1580, século XVI, em estilo pouco ortodoxo de lidar com a alteridade, recorre a recursos argumentativos que tendem ao enaltecimento do modus vivendi indígena, vendo o canibalismo como subordinado a um ritual, em que o vencido não era desrespeitado. Aliás, o mesmo posicionamento aparece em Durão, na estância XVIII, do Canto I:
XVIII
Que horror da humanidade! ver tragada
Da própria espécie a carne já corruta!
Quando não deve a Europa abençoada
A fé do Redentor, que humilde escuta!
Não era aquela infâmia praticada
Só dessa gente miseranda e bruta:
Roma e Cartago o sabe no noturno
Horrível sacrifício de Saturno.
Neste passo, o autor faz menção ao canibalismo ocorrido entre os lestrigões e os repártanos, povos da Roma antiga, bem como entre os fenícios e os cartagineses. Montaigne, por sua vez, munido de leituras sorvidas em passagens dos Commentaires de Monluc de 1561, com abonações também de Platão e de outros representantes da Antiguidade e mesmo de comentadores do período românico, não deixa de ressaltar as atitudes pouco humanas dos seus ancestrais conterrâneos anteriores à Idade Média. E, diante dos embates religiosos da Europa quinhentista, se indagava:
J’ai pensé qu’il y a plus de barbarie à manger un homme vivant, qu’à le manger mort; à déchirer par tourments et par genes, un corps encore plein de sentiment, le faire rotir par le menú, le faire mordre et meurtrir aux chiens, et aux pourceaux (comme nous l’avons non seulement lu, mais vu faiche mémoire, non entre des ennemis anciens, mais entre des voisins et concitoyens, et qui pis est, sous prétexte de piété et de religion) que de le rotir et manger après qu’il est trépassé (MONTAIGNE, 2002, p. 366,367).
[Pensei que há mais barbárie em devorar um homem vivo do que assá-lo e devorá-lo depois de morto; em despedaçar suas carnes por tormento e tortura, em um corpo ainda repleto de sentimento, incorporado ao cardápio, mordido e machucado por cães e porcos (como não apenas lemos, mas vimos recentemente, não entre antigos inimigos, mas entre vizinhos e concidadãos, e o que é pior ainda, sob o pretexto de piedade e de religião) (MONTAIGNE, 2002, p. 366, 367) (tradução minha)].
Colocando, assim, em discussão, a suposta racionalidade europeia, tendo sido visto por Lévis Strauss como afeito ao pensamento do que seria a antropologia posteriormente. Por isso, quando se refere ao relacionamento entre os índios com suas mulheres, coloca-os sempre numa dimensão humana, que crê no transcendente. Para os índios, havia dois preceitos sagrados: la vaillance contre les ennemis, et l’amitié à leurs femmes [a vigilância contra os inimigos e a amizade às suas mulheres]. Enquanto os homens se ocupavam da caça, as mulheres permaneciam na tribo e s’amusent cepandant à chauffer leur breuvage, qui est leur principal office [divertindo-se durante a fermentação de sua bebida, cuja elaboração é a sua principal função na tribo] (MONTAIGNE,2002, p. 364). Ao colocar o índio como humano, detentor de valores, Montaigne dá sinais de uma teoria que posteriormente será defendida por Rousseau, o monogenismo, isto é, de que todo ser humano nasce igual, em estado de natureza, apto à perfectibilidade, ao aperfeiçoamento; não sendo a civilização europeia melhor, pois detectavam-se problemas nesta, e chama a atenção para uma humanidade una, entretanto, múltipla em seu desenvolvimento, em seus caminhos escolhidos. Em O contrato social (1762), no capitulo II, Des premières sociétés, logo no início, vai dizer: la plus ancienne de toutes les sociètés et la seule natirelle est celle de la famille (ROUSSEAU, 2011, p.10). E, depois, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da diferença entre os homens (1775) coloca a vontade geral, instância de Liberdade, como corpo soberano dos cidadãos.
(…): o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que, podendo ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito (ROUSSEAU, 1762/1989, p. 28) (tradução minha)
Tanto Santa Rita Durão, quanto Montaigne se baseiam em textos publicados anteriormente, de literatura de viagem, como Les Singularitées de la France antarctique de 1557 e Cosmographie Universalle de 1575, ambos de André Thevet; além da Histoire d’un voyage faiten terre de Brésilde 1578 de Jean de Léry. Os dois últimos participaram da expedição de Villegagnon, quando da invasão francesa no Rio de Janeiro. Mas tal raciocínio ocorre pela própria dificuldade enfrentada pelo filósofo em dirimir, basicamente, o interesse, princípio que rege a vida em sociedade. Rousseau, ao afirmar que «O homem (= humanidade) nasce livre, mas por toda parte encontra-se posto a ferros», coloca um dispositivo aplicável a qualquer ser humano e, ao mesmo tempo, limita a escolha por voto, no sistema democrático, a uma minoria, tida como maioria, deixando a maioria, vista como minoria, sempre sem voz, em nome do bem comum; porque o Estado, em síntese, encerra o interesse de todos. Logo, a própria engrenagem política está impossibilitada de atender a todos, instaurando-se assim a alienação, isto é, tornam-se o outro a partir do olhar do mesmo; não havendo possibilidade de intervir na ordem social, experimentando o rechaço, independente do gênero a que pertença. Por isso, feministas como Olympe de Gouges, entre outras, se insurgiram contra a noção rousseriana da vontade geral, porque perceberam que tanto o escravo quanto a mulher encontravam-se submetidos à hierarquização dos pares dicotômicos da razão iluminista; ainda que a República francesa tenha-se utilizado, em bustos, medalhas, moedas e pinturas da Marianne, figura emblemática da mulher do povo, como forma de disseminação representativa do credo liberal; mas, na prática, a mulher foi usurpada da cidadania e restou-lhe somente a sublimação simbólica de uma exclusão de fato (AGULHON, 1979). Assim, a mulher, como outras minorias, foi deixada em posição inalterada, tidas como moralmente neutras (DUMONT, 1966). Hoje, por outro lado, vivemos na era do desencanto em relação a qualquer relato, colocando por terra a crença no progresso, na superação, pois esses não foram alcançados no passado, na medida em que o protocolo de ação encerrava-se no domínio da natureza e de humanos sobre outros humanos. Resta-nos, reivindicar em processo simbólico de negociação, relações de gênero mais equânimes, rumo ao empoderamento, não a partir de um paradigma imposto, à luz de interesses que não nos dizem respeito, como ocorreu no passado com Paraguaçu, Moema e Iracema, mas, em contexto cuja representação de gênero esteja atravessada pelo cognitivo (da razão das sombras), pelo avaliativo (do querer) e pelo afetivo (do psíquico), como fatores psicossociológicos ligados à prática relacional da comunicação, indo muito além do binarismo do ou, ou; como nos fala Butler:
A tarefa crucial do feminismo não é estabelecer um ponto de vista fora das identidades construídas (…). Sua tarefa crucial é, antes, a de situar estratégias de repetição subversiva facultadas por essas construções, afirmar as possibilidades locais de intervenção pela participação precisamente nas práticas de repetição que constituem a identidade e, portanto, a possibilidade imanente de contestá-las (BUTLER, 2008, p. 212).
Portanto, ao entender a agência, como um processo de ressignificação mediada, essa se apresenta de modo contrário ao essencialismo racional e acena, por isso mesmo, com uma outra forma de a mulher estar no mundo. Somente assim, Olympe de Gouges poderá ser atendida em sua Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, de 1791.
Considerações finais:
Os gregos chamavam de bárbaros aqueles que não falavam o grego. Tal comportamento humano coloca em evidência a dificuldade em lidar com a diferença, sempre uma ameaça a uma ordem instituída. Por isso, os povos não europeus foram esquadrinhados à luz de uma racionalidade que se queria eterna, sempre tendo o modelo anterior do que fosse cultura, homem, mulher em analogia ao previamente estabelecido. E não foi sem dificuldade assim o olhar europeu posto sobre o habitante do Novo Mundo. Ainda que Montaigne e Rousseau tenham se colocado, a princípio, como defensores de uma ordem natural, contrária à civilização, esses acabaram endossando a manutenção de papeis hierarquizados prévios como civilizado/bárbaro, homem/mulher. Tal princípio epistemológico-interpretativo estruturou a imago mundi, isto é, a imagem discursiva que se tem do mundo, de que esse deve ser como é, marcada por uma necessidade, por uma lógica interna que elimina a contingência, a multiplicidade; isso porque ocorre a absolutização do espaço, em favor do tempo, em sua perspectiva continuísta. Desse modo, nega-se a possibilidade de ruptura no tecido da tradição, fazendo com que os episódios, os acontecimentos, as histórias se fundam numa única História. Logo, restou às índias Paraguaçu, Moema e Iracema a submissão e a vassalagem na medida em que a primeira teve de se adequar à imposição colonizadora para ser aceita no imaginário estabelecido previamente para ela; enquanto as duas seguintes encontraram a morte como recompensa à empreitada expansionista, em que a relação de gênero estabelecida com o forasteiro esteve, antes, atravessada pelo domínio cultural.
Referências:
AGULHON, M. Marianne au combat. L’imagerie et la symbolique républicaines de 1789 à 1880. Paris: Flammarion, 1979.
AILLY, P. D’. Imago mundi [Reprod.]. Louvain: J. de Paderborn, 1483. Disponível em: <http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb40223090r/PUBLIC> Acesso em: 20 out 2014
ALENCAR, J. Iracema: lenda do Ceará. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2006.
BOURDIEU, P. La dominación masculina. Traducción de Joaquín Jordá. Barcelona: Editorial Anagrama, 2000.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
DUMONT, L. Homo hierarchicus. Essai sur le système des castes. Paris: Gallimard, 1966.
GOUGES, O. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791). Paris: Mille et Une Nuits, 2003.
MONTAIGNE. Des Cannibales (1584). In: Essais. Livre Premier. Paris: Librairie Générale Française, 2002.
ROUSSEAU, J-J. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes (1753). Paris: Flammarion, 1971.
ROUSSEAU, J-J. Du contrat social (1762). Livres I et II. Paris: Hatier, 2011.
ROUSSEAU, J-J. Émile ou de l’éducation (1762). Paris: Flammarion, 2009.
SANTA RITA DURÃO. Caramuru (1781). Virtual Book: Formato: e-book/ PDF-Código: VBOCARAMURUPOEMAEPICO© Virtuais Books, 2002.