OS BRUZUNDANGAS


Autor: Lima Barreto
Título: OS BRUZUNDANGAS
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 03/02/2006

OS BRUZUNDANGAS

 
 

Lima Barreto

Hais tous maux o? qu’ils soient,

tr?s doux Fils.

Joinville. S?o Lu?s.

 
 
PREF?CIO
 
Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, h? um cap?tulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirma??o: “Como os maiores ladr?es s?o os que t?m por oficio livrar?nos de outros ladr?es”.
N?o li o cap?tulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publica??o destas despretensiosas “Notas”.
A “Bruzundanga” fornece mat?ria de sobra para livrar?nos, a n?s do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua miss?o ?, portanto, como a dos “maiores” da Arte, livrar?nos dos outros, naturalmente menores.
Bem precisados est?vamos n?s disto quando temos aqui ministros de Estado que s?o simples caixeiros de venda, a roubar?nos muito modestamente no peso da carne?seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente, no seu of?cio de ministro, de encarecerem o a??car no mercado interno, conseguindo isto com o vend??lo abaixo do pre?o da usina aos estrangeiros. L?, chama?se a isto prover necessidades p?blicas; aqui, n?o sei que nome teria…
E semelhante ministro daqueles “maiores” de que a Arte nos fala, destinados a ensinar?nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.
N?o contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas s?o dignas de apre?o e portadoras de ensinamentos proveitosos.
Como n?o poder?amos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo a?ambarcador de cebolas, que vai para uma comiss?o, nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e prop?e que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?
? que este doutor dos “maiores” de que nos fala o c?lebre livrinho sabia perfeitamente que n?o estancava e tinha o h?bito de reservas mentais. N?o a?ambarcava, mas “aliviava” logo uma grande por??o de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer cousa, de modo que… Le pauvre homme! Podia at? iludir o nosso pobre Peckmann!
Com este exemplo, os menores daqui poder?o ser denunciados por este grandalh?o de l?, t?o generoso e desinteressado, e o nosso povo poder? livrar?se deles.
Conheci na Bruzunganga um rapaz (creio que est? nas “Notas”), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Of?cio, mas tresandando a Comte, sen?o a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento eclesi?stico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina e do solid?u, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da Rep?blica. Que “maior” n?o acham?
E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, se transformou em a?ougueiro para vender carne aos vizinhos a dez mil?r?is de mel coado, gra?as ?s isen??es que obteve com o prest?gio do seu nome, dos seus amigos, da sua fam?lia e das suas antigas posi??es, enquanto os seus patr?cios pagavam?lhe o dobro?
Quantos exemplos de l?, bem grandes, nos ir?o precaver contra os pequeninos de c?… A Arte fala a verdade…
Outra cousa curiosa da Bruzunganga, das grandes, das extraordin?rias, ? a sua “Defesa Nacional”.
L?, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisi??o de armamentos, muni??es, equipamentos, adestramento de tropas, etc., mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que n?o; que era dar?lhes dinheiro, para elevar artificialmente o pre?o de sua especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo?lhe a exporta??o desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse tomada no que toca ?s utilidades indispens?veis a nossa vida: cereais, carnes, algod?o, a??car, etc.
? preciso notar que tais utilidades, como j? fiz notar, iam para o estrangeiro por metade do pre?o, menos at?.
Aprendamos por a? a conhecer os nossos “menores”.
Poderia muito bem falar de outros grossos casos de li, capazes de nos livrar doa tais pequenos daqui; mas, para qu??
As p?ginas que se seguem v?o rev??los e eu me dispenso de narr??los neste curto pref?cio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua miss?o tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, as que nela viveram, os que a amaram e sugaram?lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!
Ainda hoje, quando o ge?logo encontra nela um queixal de Magatherium ou um f?mur de Propithecus tem vontade de oferecer ? Minerva uma hecatombe de bois brancos!
Vivos, os bona s?o tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se t?m grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzunganga os levem para fecundar a terra dos outros, l? embaixo, muito longe…
Tudo nela ? caprichoso, e v?rio e irregular. Aqui terreno f?rtil, ?bere; acol?, bem perto, est?ril, arenoso.
Se a jusante sobra cal, falta ?gua; se h? para montante, falta cal…
As suas florestas s?o caprichosas tamb?m; as ess?ncias n?o se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando?lhes penosa a explora??o. Aqui, est? uma esp?cie e outra semelhante s? s? encontrar? mais al?m, distante…
Envelheceu, est? caduca e tudo que vem para ela sofre?lhe o cont?gio da sua antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso memmo, os seus costumes e h?bitos podem servir?nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: “os maiores ladr?es s?o os que t?m por of?cio livrar?nos de outros ladr?es”.
Por interm?dio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo?nos dos nossos: ? o escopo deste pequeno livro.
 

LIMA BARRETO

Todos os Santos, 2?9?1917.