OLHARES SOBRE O RIO: NTOZAKE SHANGE E PAULE MARSHALL


OLHARES SOBRE O RIO:

NTOZAKE SHANGE E PAULE MARSHALL

 

                                                                                                         Stelamaris Coser                                                                            Universidade Federal do Espírito Santo
 
As belezas e os paradoxos da cidade do Rio de Janeiro são freqüentemente representados no cinema hollywoodiano e às vezes também na literatura dos Estados Unidos.  Desde filmes como Voando para o Rio (Flying down to Rio,1933), ou Feitiço do Rio (Blame it on Rio, 1983), até romances populares como O sócio, de John Grisham (1997), a ênfase recai sobre a beleza do lugar e das pessoas, o exotismo, a malandragem,  a atmosfera de erotismo. A cidade, o país e, principalmente, a mulher brasileira, atraem e seduzem o olhar estrangeiro em um jogo que reafirma hierarquias de poder e sublinha diferença e alteridade.
Menos conhecidos dos brasileiros são os olhares e registros literários das escritoras Paule Marshall e Ntozake Shange.  Ao firmar-se na cena literária dosEstados Unidos nas décadas de 70 e 80 do século XX, a literatura feminina negra tenta resgatar memórias e buscar conexões com outros pontos do continente americano que compõem o mapa da diáspora africana. Nas palavras de Stuart Hall (2003, p.40-41), a raiz africana fornece “o significante, a metáfora, para aquela dimensão de nossa sociedade e história que foi maciçamente suprimida, sistematicamente desonrada e incessantemente negada”. Toni Morrison, Alice Walker, Audre Lorde e Toni Cade Bambara, por exemplo, criam pontes com o Caribe e a América Latina em suas obras de ficção não só justapondo espaços geográficos, mas associando-se por vezes ao modelo de narrativa popularizado como “realismo mágico” e inspirado em obras de Gabriel Garcia Márquez e Carlos Fuentes (COSER, 1995). Gayl Jones, Paule Marshall e Ntozake Shange, por sua vez, manifestam uma relação de maior proximidade com o Brasil em seus temas: enquanto Jones reinventa a história colonial brasileira, principalmente Palmares, Marshall e Shange escolhem a cidade do Rio de Janeiro como cenário inspirador de relatos imaginativos e reflexões sobre nações e identidades.
A escritora e artista multimídia Ntozake Shange nasceu em 1948 no estado de Nova Jersey com o nome classe-média-comportada de Paulette Williams, mas no ano de 1971 decidiu realçar sua herança africana e assumir nomes de origem Zulu.  As duas palavras significam, respectivamente, “a que chega com suas próprias coisas” e “a que anda como um leão”.  Fazendo jus a isso, Shangeassocia-se ao radicalismo do Movimento da Arte Negra, o Black ArtsMovement, e adota um estilo que mistura confrontação e irreverência em poemascoreografados ou coreopoemas, grafados apenas em minúsculas e transgredindo normas gramaticais. Os textos são levados ao palco em performances combinadas com vídeo, dança e música, uma proposta híbrida que Shange(1975, 1984) quer contrapor ao teatro artificial, insípido e europeizado que predomina em seu país. Marcando a diferença feminina, afasta-se da visão em geral monolítica dos adeptos do Nacionalismo Negro, para registrar também o desejo, a angústia pessoal, a contradição e fragmentação humanas.  Não separa o pessoal do político nem o lírico do épico numa obra que exibe sensualidade e sonha com igualdade, mas expõe também as duras formas de violência existentes tanto em seu país quanto no continente americano.
A fidelidade à tradição literária negra dos Estados Unidos não impediu queNtozake Shange valorizasse uma relação com o espaço, a literatura, história e conjuntura sociopolítica do Caribe e da América Latina. Numa época de rebeldia, busca parcerias literárias e políticas com artistas e intelectuais em Cuba e Nicarágua que também sonham com uma “America libre” (SHANGE, 1983, p. 49-50). Em relação a seu próprio país, protesta contra a Ku Klux Klan, o lucro abusivo, a interferência militar no Caribe, e a persistente violência patriarcal contra as mulheres. Apesar da opressão política e das dificuldades reinantes, entusiasma-se com a força das culturas interligadas das Américas. Assim, ao tratar da diáspora negra em seus versos, Shange celebra não a nostalgia de uma África ideal e cristalizada, mas sim, tomando aqui emprestadas as palavras de Stuart Hall (2003, p.40-41), “aquilo que a África se tornou no Novo Mundo, no turbilhão violento do sincretismo colonial”.
Em 1983 Shange conhece a capoeira brasileira em um festival de dança noBrooklyn, e associa a agilidade e esperteza ali utilizadas ao jogo de dozens, tradição afro-americana onde a disputa verbal exige arte e habilidade para driblar o oponente. As visitas posteriormente feitas ao Brasil lhe proporcionam o conhecimento e a proximidade da história, das paisagens e da cultura do país, confirmando sua crença na “continuidade de movimentos” que existe na diáspora (SHANGE, 1984, p.51). O encontro entre os dois hemisférios é registrado na confluência simbólica dos grandes rios do continente, “o ponto onde o amazonasencontra o mississippi”, como diz um de seus versos (1992). A artista incorpora essa união quando afirma que o Brasil está no espírito da música que inspira seu trabalho e toma posse de seu corpo: “é preciso que se entenda que, quando faço teatro, o Haiti está em minha cabeça, mas é o Brasil que está nos meus quadris” (apud KING Jr., 2003, em tradução livre). Para Shange, música e dança são formas de resistência contra o esquecimento e a paralisação, trazem prazer e sensualidade ao mesmo tempo em que afirmam a identidade negra.
Ao chegar de fato ao Rio de Janeiro e à Bahia, no entanto, a escritora se impressiona com a extensão da pobreza e da desigualdade social, cenas que se repetem tão dramaticamente que fazem Itaparica e Rocinha parecer o mesmo lugar. No poema “Tween Itaparica & Itapuã” (SHANGE, 1983, p.24-27), a narradora justapõe o charme e a miséria de dois cenários famosos.
itaparica is where dona flor
took her two husbands/ itaparica is where
giorgio dos santos is nine years fulla mosquito bites
& will die soon.
(Tradução livre: “itaparica é onde dona flor /ficou com seus dois maridos / itaparica é onde/ jorge dos santos tem nove anos cheio de mordida de mosquito / & vai morrer em breve”).
 
Fica difícil distinguir qual lugar é mais cruel e injusto; apesar do Cristo imponente e da fama turística do Rio de Janeiro, os pobres e mendigos de suas ruas só têm direito a comer migalhas e habitar favelas:
itaparica is not near corcovado
cristo redentor
nor the/ copacabana
where the children eat off the plates of tourists/
anything/ no
itaparica is not close to rocinha
behind the sheraton/ covered with tin, stolen
bricks & women’s stooped shoulders.
(Tradução livre: “itaparica não é perto do corcovado / cristo redentor/ nem de / Copacabana / onde as crianças comem sobras dos pratos dos turistas/ qualquer coisa / não / itaparicanão fica perto da rocinha / atrás do sheraton/ coberta de zinco e tijolos/ roubados & os ombros curvados das mulheres.”)
 
A ilha de Itaparica é um repositório de memórias ligadas ao tráfico e ao trabalho escravo: as ruas de pedra foram calçadas por “um de nós”, narram os versos inspirados da escritora. O poético relato da Bahia descreve ainda as crianças nos barcos de pescadores, os ex-votos deixados na igreja por fiéis, o peixe frito na praia, o tempo e as pessoas que passam devagar, os turistas que chegam.  Por fim, o sol, o mar e a paisagem da Bahia conseguem aliviar a dor com sua beleza e magia, mas o Rio de Janeiro permanece como referência paradoxal de grandiosidade e desigualdade gritante ao longo do Atlantico negro.
De uma geração anterior a Shange, a escritora Paule Marshall nasceu em1929 no Brooklyn, parte da cidade de Nova York então ocupada por famílias emigradas de ilhas caribenhas – como a sua, proveniente da pequena Barbados, no Caribe inglês.  Os romances e contos de Marshall guardam marcas desse espaço de deslocamento e identidades negociadas, e de uma casa onde havia solidariedade com as lutas internacionais por libertação (MARSHALL, 1991, p. 24). A experiência pessoal também levou Marshall a outros locais da diáspora, como o Brasil, resultando disso uma narrativa que interliga as geografias e histórias do continente.
A novela (ou conto longo) intitulada “Brazil é a última das quatro histórias na coletanea Soul Clap Hands and Sing (1961), o segundo livro de Paule Marshall; as outras são Barbados”, “Brooklyn e “British Guiana”, todas designando partes específicas das Américas similarmente marcadas pela estrutura patriarcal, hierarquia rígida de classes e raças, empobrecimento das zonas rurais e urbanas, e favelização provocada, em grande parte, pela (e)migração para centros mais desenvolvidos. Nas quarenta e seis páginas de “Brazil”, Marshall costura as anotações que fez deste país como correspondente da revista de cultura negraOur World. Seu olhar se concentra na capital federal, o Rio de Janeiro dos anos 50, cidade moderna que provavelmente vivia “o auge do charme”, como atesta Joaquim Ferreira dos Santos (1997, p. 11).
O conto de Marshall pode ser lido como uma etnografia da cidade emblemática do país, marcada pelo contraste entre favela e cartão postal. Por outro lado, os personagens centrais, o negro Calibã e a branca Miranda, aproximam o enredo do corpus crítico-literário formado por releituras e discussões da peça A tempestade, de Shakespeare, abordando a construção dooutro e contra-discursos de resistência. As preocupações culturais, sociais e políticas da narrativa também remetem ao texto do caribenho Frantz Fanonpublicado no mesmo ano de 1961, The Wretched of the Earth (Os condenados da terra). Por fim, a dramatização da perda de identidade e da busca do reconhecimento do nome evoca, por antecipação, textos centrais da crítica brasileira sobre identidade cultural e a condição de subdesenvolvimento e dependência, canibalização e cópia, como, por exemplo, os trabalhos de Antônio Candido, Silviano Santiago e Roberto Schwarz, preocupações que ecoam na chamada crítica pós-colonial.
Na segunda metade do século XX, o bárbaro Caliban shakespeareano foi resgatado por novos escritores oriundos, principalmente, das antigas colônias do Caribe e da África, sendo transformado em herói da libertação e símbolo da resistência (inclusive no Brasil, com a adaptação de Augusto Boal). Para o cubano Retamar (1972), Caliban é o melhor símbolo da América Latina: “Não conheço metáfora mais expressiva de nossas situações culturais e de nossa realidade”.  Embora bem distintos dos demais, o enredo e os personagens do conto “Brazil” de Paule Marshall merecem ser pensados nessa rede calibanicaintertextual.
O cenário retrata alguns locais tipicamente mostrados em narrativas sobre o Rio de Janeiro, capital do país nos anos 50, tendo aqui uma cidadezinha do interior de Minas Gerais como contraponto utópico.  O grande Calibã é o nome artístico usado por um velho comediante negro que se apresenta na Casa Samba.  Migrante pobre saído do interior de Minas cinqüenta anos antes para tentar a vida na capital do país, Heitor Baptista Guimarães trabalhou em um pequeno restaurante até passar num teste no Teatro Municipal e transformar-se no artista aplaudido pelo grande público e autoridades, como atestam fotografias ao lado do presidente e de Carmen Miranda.   Miranda é também o nome da parceira de cena e de cama, outra migrante pobre vinda do Rio Grande do Sul, loura de cabelo tingido e sangue misturado de alemão, português, índio e talvez negro, o nome sugerindo uma confluência paródica entre Shakespeare e CarmenMiranda. O show descrito por Marshall lembra o teatro de revista e os filmes de chanchada, com a comédia baseada em contrastes exagerados e na reversão de expectativas. Para começar, a “Pequena Miranda” surge no palco loura, alta e majestosa, uma vedete sumariamente coberta de lantejoula e tule; o “GrandeCalibã” é negro e mirrado e abre o show posando de valente em roupas largas de cetim vermelho, numa paródia do famoso campeão de boxe Joe Louis. Os dois cantam, dançam e ele conta piadas para a platéia de brasileiros e turistas, marinheiros norte-americanos para quem o Rio/Brasil se revela uma terra de misturas raciais que sorri e dança à “erótica batida do samba” (2004, p. 1). O riso nervoso aproxima os turistas norte-americanos da autoridade colonial que, sem falar a língua, define a terra e seus nativos.
“(…) no começo, quando a face negra de Calibã aparecera por entre as coxas brancas de Miranda, eles tinham ficado tensos, momentaneamente insultados e alarmados, até que, com o riso saindo fora de hora, lembraram um ao outro que, afinal de contas, isto era o Brasil, onde branco nunca era totalmente branco, não importa quão puro parecesse. Irromperam então em gargalhadas que eram ao mesmo tempo altas e hesitantes, trocando olhares em busca de reafirmação, sussurrando: “Não sei por que estou rindo. Não entendo nenhuma palavra em espanhol! Ou será este o lugar onde falam português?” (MARSHALL, 2004, p. 4-5).
 
Os cartazes do show anunciam o Senhor Calibã como “o maior e mais amado comediante do Brasil”, e o velho artista parece desenvolto e ágil. Fora das luzes, porém, ele tem algo do deformado Caliban shakespeareano no corpo diminuto e doído, as piadas já velhas e sem graça, o coração desiludido e cansado, a identidade confusa.  Quer aposentar-se para se dedicar à jovem e inocente esposa Clara (virtuosa como a esposa de Próspero) e o filho que esperam, e voltarem juntos para a cidadezinha do interior de Minas de onde vieram. Vai afastar-se do Rio de Janeiro e de Miranda, espelho inevitável de sua face enrugada e de suas contradições; quer sair definitivamente do palco, dos letreiros e da fantasia, e recuperar sua identidade perdida. Mas ninguém mais conhece o Heitor original: nem a doce Clara, nem os pobres da favela onde ele vivera e trabalhara, nem Miranda, nem ele mesmo no espelho: agora, “Calibã se tornara a sua única realidade”. O mineiro Heitor ficara esquecido até que a velhice trouxe uma tristeza indefinida, como “a memória de alguém que ele conhecera em outra época, mas de cujo rosto não mais se lembrava” (MARSHALL, 2004, p. 9, 35, 7).
Fazendo lembrar os insultos contra Próspero em A Tempestade (II.2, 1-15), Calibã se revolta e agride Miranda, quebrando móveis, cortinas, lustres, candelabros  e espelhos do luxuoso apartamento que montara para ela mas que agora lhe parece falso como a dona e como o próprio Rio.  A cidade é bela e sedutora como um corpo de mulher, charmosa e benevolente de dia, cenário de cartões postais, iluminada e convidativa ao cair da noite:
 
“A cidade (…) acendeu as luzes, e quando Calibã passou pelo túnel e entrou na estrada que faz a grande curva da Baía de Copacabana, viu luzes surgirem nos apartamentos e hotéis empilhados como rochedos brancos e angulares contra o fundo de morros negros. Vistas à distancia, aquelas janelas iluminadas lembravam diamantes perfeitos e grandes, de um ambar iridescente agora aos últimos raios de sol, que se tornaria um amarelo flamejante quando a escuridão se firmasse. A cidade do Rio – ainda quente do sol, murmurante com a cadência do mar, adornada com as luzes – estava se aprontando para a farra da noite, esperando que o vento chamasse seus amantes. Calibã tinha sido um de seus amantes” (MARSHALL, 2004, p. 31).
 
Miranda vive em apartamento amplo na Avenida Atlantica, com móveis e decoração inspirados em Hollywood; Calibã e Clara moram numa bela casa próxima ao Corcovado.  O conto revisita também o Cassino da Urca, o Pão de Açúcar, o Copacabana Palace, a praia de Copacabana, o Teatro Municipal, o teatro de revista, os shows cheirando a Broadway e Hollywood, os desfiles de Carnaval, o humor da chanchada, o pequeno-mas-Grande Otelo (tambémintertextualmente shakespeareano, possível inspiração para “O grande Calibã”). Na ficção de Marshall as descrições minuciosas de cidades das Américas denunciam a exploração racial e social e a perpetuação da estrutura escravista. Neste conto, Calibã deixara de enxergar o lado pobre da cidade e agora teme as favelas que se empilhavam cada vez mais sobre Copacabana. Lembram a descrição de Fanon (1961, p. 38-39, tradução livre) das cidades coloniais, onde “não existe conciliação possível” entre a zona onde moram os nativos e “a cidade dos colonizadores (…) muito bem construída em pedra e aço, fortemente iluminada, as ruas asfaltadas (…) bem alimentada, alegre (…) uma cidade de brancos e estrangeiros”. Do outro lado, negros e nativos ocupam “um mundo sem espaço (…) os casebres construídos um sobre o outro (…) uma cidade faminta de pão, de carne, de sapatos, carvão, de luz”.  No Rio de Janeiro descrito no conto, cortiços e favelas são engrossados por migrantes pobres como Heitor, Miranda, e os tantos que fogem da pobreza rural e precisam submeter-se ao subemprego esub-moradia. Expõem a história da ocupação da terra, a concentração de riqueza e a estrutura neocolonial que interfere no cartão postal: “Aquela miséria se levantando sobre o Rio sugeria que o próprio Rio não passava de uma falsidade; a favela era uma ameaça – pois parecia que a qualquer momento entraria em colapso e desabaria, soterrando a cidade lá embaixo” (MARSHALL, 2004, p. 26).
Além de aspectos socioeconômicos e políticos, “Brazil” evoca míticas jornadas de heróis em busca de si próprios, como o Heitor na Ilíada de Homero.Calibã pergunta, corre, sobe e desce ruas e morros, tentando encontrar-se nos caminhos e nas faces que fizeram parte de seu passado. Significativamente, vai atrás do ex-patrão cujo nome era Nascimento, esperando que ele lhe devolva a memória e faça renascer o herói Heitor. O motivo da máscara que ou substitui oué a verdadeira face percorre as literaturas do mundo ocidental e fala da busca da identidade perdida. Aqui ela faz lembrar o poeta Paul Laurence Dunbar (1872-1906), primeiro escritor negro lido por Marshall e que a contaminou com o desejo de escrever (como Marshall declara nas entrevistas a Baer e Dance). Em um de seus poemas mais conhecidos, Dunbar fala da necessidade da máscara sorridente para esconder a dor do negro: “We wear the mask that grins and lies,/ It hides our cheeks and shades our eyes”. Em tradução livre: “Usamos a máscara do riso e da mentira, / que esconde a face e encobre os olhos”.
O conto de Marshall termina com o personagem Calibã enraivecido contra um “Próspero” que o contagia e confunde, porque, ao aprender a linguagem do sistema capitalista e colonialista, acumulara bens e esquecera sua história.  O sonho de escapar da fragmentação e do individualismo dessa cidade grande que fala inglês e o traveste para turistas leva-o a refazer seu percurso migratório. Deseja voltar à terra natal, paradoxalmente as Minas Gerais onde o ouro sustentara a escravidão e onde ele mesmo, um dia, “comprara” sua jovem mulher negra, a neta de um primo. No contexto brasileiro, tais percursos e considerações remetem a interrogações e debates sobre a identidade nacional, à distribuição extremamente desigual do poder entre regiões, classes, raças, etnias e gêneros, e à relação do Brasil com o outro estrangeiro.
A perplexidade de Calibã lembra a constatação de Paulo Emílio Salles Gomes de que “a penosa construção de nós mesmos se desenvolve entre o não ser e o ser outro” (apud SANTIAGO, 1982. p. 13,17). Como o Calibã de Marshall, sentimos o peso da fantasia exótica e a ansia do aplauso estrangeiro, e tentamos identificar uma face nacional legítima e própria para escapar ao sentimento de “pastiche indigno” (SCHWARZ, 1987, p. 29). Para Silviano Santiago (1982, p. 20), porém, não existe uma cultura brasileira imune aos colonialistas e estrangeiros: “Acreditar que possamos ter um pensamento autóctone auto-suficiente, desprovido de qualquer contato alienígena, é devaneio verde-amarelo”. Na mesma linha, o teórico Stuart Hall (1996) retoma Fanon para ressaltar que as rupturas e traumas da experiência colonial não se corrigem com o retorno a um passado cristalizado: a cultura, como a história, é construída na descontinuidade e na transformação.
A seriedade dos temas no conto de Marshall é aliviada pela ambigüidade e humor irônico. Miranda, por exemplo, que no final é vista pelo amante como uma aproveitadora, fora migrante pobre como ele e havia tirado proveito dos espaços de crescimento econômico permitidos a uma mulher de sua época e condição. A esposa Clara, moça mineira bem comportada, recusa-se a deixar o Rio porque adora a cidade e o carnaval.  Calibã, perdido na cidade grande e no meio das duas mulheres, é tanto oprimido quanto opressor. Contraditórios e humanizados em seus desejos, conflitos e enganos, as personagens resistem a leituras simplistas e unilaterais. Fantasia e “real” se confundem e, anunciando o pós-moderno, clichês e máscaras revestem tudo, exceto a pobreza das crianças nos morros da cidade:
 
“Os meninos da favela apareceram, movendo-se quietos em meio aos arbustos que delineavam o caminho, alguns carregando latas d’água na cabeça ou crianças menores no colo. Pareciam nascer da sujeira que os cobria, como pequenas plantas resistentes brotando no solo cansado; e seus olhos vazios, indiferentes, pareciam espelhar a vida derrotada que ainda teriam de viver” (MARSHALL, 2004, p. 27).
 
O conto de Marshall aborda o deslocamento e a marginalização e elabora dilemas comuns à diáspora negra e às colônias do “Novo Mundo”,particularmente “a transfiguração cultural sofrida pelos povos não europeus no processo de colonização” (termos de Octavio Souza, 1994). Numa era que comercializa o autêntico, por outro lado, a cultura canibal impura pode ser a única legítima. No final do conto “Brazil”, Miranda corre atrás de Calibã, gritando: “Calibã, Calibã, meu neguinho, pra onde você vai?” (p. 37) – a pergunta fica assim no ar, uma interrogação aberta e continuada sobre os dilemas que afligem a cidade do Rio de Janeiro e todo o país.
De maneira geral, o interesse manifestado pelo Rio de Janeiro e pelas coisas do Brasil por Paule Marshall e Ntozake Shange, entre outros pesquisadores e escritores dos Estados Unidos, faz parte da tentativa de mapear a diáspora africana, reconstruir o passado e afirmar a identidade negra. Ao inserirem nosso mapa e história na literatura dos Estados Unidos, as escritoras contribuem para o incremento das relações literárias e culturais interamericanas.  Com sua imaginação e fantasia, podem enriquecer também nossa percepção de nós mesmos e iluminar os desafios de raça, gênero e classe presentes em nossa herança colonial.  Sem a pretensão de traçar definições “corretas” ou produzir traduções culturais “autênticas”, seus textos literários são elaborações inspiradas por olhares solidários, paradoxais, tão estrangeiros e tão semelhantes.
 
 
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