O VAMPIRO DE CURITIBA ENTRA EM CENA: A DRAMATURGIA NO TEXTO DE DALTON TREVISAN
José Luiz Matias
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo: Com acentuado tônus dramático, a obra de Dalton Trevisan tem sido alvo constante do interesse de encenadores, que se apropriam dos seus textos com a finalidade de desenvolverem transcriações mediadas por representação teatral. Os exemplos mais expressivos nos quais ocorrem esta performance são as montagens de Mistérios de Curitiba e de Ademar Guerra; No ventre do Minotauro e Pico na veia, de Marcelo Marchioro. Tais realizações ampliam o universo midiático (MÜLLER, Adalberto, 2012, p. 169) do texto trevisaniano, abrindo-lhe novas perspectivas de fruição estética.
Palavras-chaves: dramaturgia; Dalton Trevisan; representação teatral.
Abstract: Dalton Trevisan’s work has an intensive dramatic tone, and has received a well-deserved interest on the part of theater directors who adapt his stories into dramas. The most important examples are the plays Mistérios de Curitiba, by Ademar Guerra, and No ventre do Minotauro and Pico na veia, by Marcelo Marchioro. These plays expand the media aspects (MÜLLER, Adalberto, 2012, p. 169) present in Trevisan’s work while they open new perspectives for an aesthetic enjoyment.
Keywords: drama; Dalton Trevisan; theatrical performance.
Minicurrículo: José Luiz Matias é Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde defendeu a tese Interconexões da literatura e do cinema em Dalton Trevisan e Joaquim Pedro de Andrade. É professor contratado para ministrar cursos de Pós-Graduação na Associação Educacional Dom Bosco (AEDB), em Resende-RJ.
O VAMPIRO DE CURITIBA ENTRA EM CENA:
A DRAMATURGIA NO TEXTO DE DALTON TREVISAN
José Luiz Matias
Universidade Federal Fluminense (UFF)
No proscênio: os mistérios de Curitiba
No abrangente artigo Visões de Curitiba em cena, Marta Morais da Costa oferece um amplo panorama das encenações que têm a cidade como tema, mostrando a diversidade de perspectivas com que tem sido levada à cena teatral, indo desde o ufanismo amoroso à mais severa crítica do seu modus vivendi (COSTA, 1998, p. 37). Nos contos reunidos na coletânea Mistérios de Curitiba, de Dalton Trevisan, e em outros de semelhante teor, os encenadores encontram o apelo dramático permeado pela visão crítica do autor.
É com amargura e negatividade que Dalton Trevisan desliza do horizonte limitado pelas adjacências de onde mora e extrapola seu voo literário para um radical estranhamento do provincianismo de Curitiba, materializando-a bem distante da fama de Cidade Humana pela qual é conhecida. A própria figura do autor, solitária e enigmática, lhe rende o epíteto de Vampiro de Curitiba. A cartografia da cidade não se restringe a funcionar como pano de fundo para o enunciado dos contos, mas dele participa em tensão visceral com o autor e sua escrita. Daí a iniciativa desta abordagem em selecionar três textos mediante os quais os encenadores criam suas representações no palco, formando um painel memorável sobre a cidade. Inicialmente se estendem os versos irônicos de Curitiba revisitada, para depois destroçar a cidade, lançando-a num caos amaldiçoado com as Lamentações de Curitiba e, por fim, a leitura nostálgica com Em busca da Curitiba perdida.
Os versos de Curitiba revisitada representam uma crônica em que o narrador desmitifica a imagem criada em torno da cidade civilizada, amplamente gabada por candidatos a prefeitos e por marqueteiros durante a propaganda eleitoreira, tal como ocorre nas seguintes estrofes:
Curitiba alegre do povo feliz
esta é a cidade irreal da propaganda
ninguém não viu não sabe onde fica
falso produto de marketing político
ópera bufa de nuvem fraude arame
cidade alegríssima de mentirinha
povo felicíssimo sem rosto sem direito sem pão
dessa Curitiba não me ufano
não Curitiba não é uma festa
os dias da ira nas ruas vêm aí
TREVISAN, Dalton, 2007, p. 143; grifos do autor
O desmascaramento da Curitiba ideal mostra seu avesso, como se fosse um produto falso a ser impingido a crédulos admiradores (Curitiba alegre do povo feliz), cujos grifos demonstram ironicamente o discurso oficializado que não se coaduna com a visão flagrada pelo narrador. Os versos, dispostos sem nenhuma pontuação, derramam frases aos borbotões, sem suportar qualquer contestação. O narrador rebate o clima de otimismo pelo esboço de um retrato sem retoques do povo “sem rosto sem direito sem pão” e, por isso, sem razão alguma para possuir a felicidade a ele atribuída – ou talvez empurrada abaixo por sua goela, pois na verdade não há nada a festejar, uma vez que “Curitiba foi, não é mais” (TREVISAN, 2007, 143, 149). Nota-se, no verso final da segunda estrofe (“os dias da ira nas ruas vêm aí”), uma preparação para o próximo episódio na composição deste painel, como num filme seriado.
Em Lamentações de Curitiba o clima é apocalíptico, com a chegada do Senhor para derramar sobre a cidade o juízo final, mediante um cataclismo que varre toda a população, lhe infligindo um sofrimento dantesco, pois
No dia de suas aflições, os vivos serão levados pela mão dos mortos para a morte horrível. Da cidade não ficará um garfo, aqui uma panela, ali uma xícara quebrada, ninguém informará onde era o túmulo de Maria Bueno. (…)
O que fugir do fogo não escapará da água, o que escapar da peste não fugirá da espada, mas o que escapar do fogo, da peste e da espada, esse não fugirá de si mesmo e terá morte pior (TREVISAN, 1974, p. 70).
A alegoria do Deus vingador mesclado com São Miguel Arcanjo, empunhando a espada justiceira com que extirpará os pecados curitibanos, aproxima o enunciado da dicção messiânica dos beatos do sertão brasileiro, à maneira de Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do Sol. Por evocar uma crença das mais temidas da cristandade – o juízo final –, quando o fiel será chamado a prestar contas à divindade de seus feitos terrenos, o narrador se esmera em esboçar um cenário de ruínas com o horripilante destino dos curitibanos. “Este é o povo que morreu de espada: cento e noventa e sete mil almas e mais uma; todas as almas perdidas numa hora e sem um só habitante” (TREVISAN, 1974, p. 70).
Nesta instância, a catarse do narrador não se perfaz apenas nestas cenas de horror explícito, mas também veicula uma chave humorística, quando visualiza que “os ipês na Praça Tiradentes sacolejarão os enforcados como roupa secando no arame” e, logo adiante, “de assombro as damas alegres da Dinorá atearão fogo ao vestido gritando nas janelas o fim dos tempos” (idem). Note-se que os enforcados terão sua performance justamente na praça intitulada Tiradentes, num viés metonímico para transformar o vulto histórico em patrono dos enforcados, os quais, por sua vez, estarão “como roupa secando no arame”, panorama até certo ponto idílico na rotina de uma cidade, mas totalmente inusitado na cena aterrorizante. Já as prostitutas atingem a sacralidade ao atear fogo às vestes, como fazem os monges tibetanos em protesto. O amálgama do sagrado com o profano revela um paradoxo que remete as prostitutas à santidade.
Para arrematar, o golpe final: “A espada veio sobre Curitiba, e Curitiba foi, não é mais” (TREVISAN, 1974, p. 72). Portanto, o juízo final na concepção trevisaniana provém de uma atuação cirúrgica da divindade, pois o narrador tranquiliza os municípios vizinhos – São José dos Pinhais e Colombo. Haveria de ser hecatombe circunscrita a Curitiba, como a reedição da maldição bíblica lançada com chuva de enxofre e fogo apenas sobre Sodoma e Gomorra, não atingindo outras cidades da região.
Mas nem tudo se resume à terra arrasada da combalida Curitiba, tão castigada pelo oráculo de sua desgraça planetária. O idealizado fascínio da cidade surge no conto hibridizado em crônica Em busca da Curitiba perdida. Por meio dele o narrador se propõe a viajar por ela, redescobrindo seus arrabaldes. Mostra-se agora seduzido pela possibilidade de vê-la de maneira intimista e afetuosa, na tentativa de desvendar seus mistérios. Para isso, despe-se de qualquer animosidade e se posta num ângulo nostálgico, porém procura visualizá-la no seu perfil mais autêntico, apartado de um anverso plasmado pelo artificialismo do discurso oficial e ufanista.
Para Sueli de Jesus Monteiro, na concepção deste conto Curitiba ficaria dividida em duas: a convencional e a marginal. “Dalton Trevisan declararia viajar a primeira e ser viajado pela segunda. Estrangeiro o autor em sua terra, os textos lamentariam uma cidade que se perdeu nas malhas do discurso oficial” (MONTEIRO, Sueli, 2012, p. 106). Como antes, não lhe interessa o olhar embotado pela hipocrisia do pitoresco, pois intenciona se deparar com a “Curitiba que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja” (TREVISAN, Dalton, 1974, p. 139).
A Curitiba provinciana, mas ao mesmo tempo fagueira, é desejada pelo narrador e será por ela que seguirá viagem. A Curitiba do bom-mocismo é renegada, pois o narrador não encontra em seu modus vivendi a suficiente motivação para caracterizá-la: “Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a do Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo” (TREVISAN, Dalton, 1974, p. 140-141). Esta é a cidade dos parnasianos radicais, do ufanismo patriótico e do beletrismo inócuo; daí não lhe interessa percorrê-la. Valendo-se da inspiração transmutada em viagem é que Dalton Trevisan vai encontrar a “Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar – esta Curitiba e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo” (TREVISAN, Dalton, 1974, p. 141). A nostalgia desta descrição, mediante sua paisagem e habitantes pitorescos, convive com a execração de suas instituições falso-moralistas, num manifesto sentimento contraditório de amor e repulsa.
Foi com base em textos como os mencionados que Ademar Guerra (1933-1993) vinha encenando a peça Os mistérios de Curitiba. O encenador reconheceu a densidade dramática do texto trevisaniano, coletou aqueles que mais se alinhavam à mensagem e os deixou fluir livremente pela interpretação visceral de seus atores. A crítica teatral dá conta de que o ator, ao interpretar o personagem Nelsinho, se desnudou completamente diante do público enquanto recitava sua fala (PELLANDA, 2014). A impactante presença do corpo desnudo no palco passa pela constatação de que “o corpo no discurso ficcional é uma construção simbólica. Por isso mesmo, cada vez mais tem sido um observatório privilegiado dos imaginários” (NUNES, 2011, p. 31). Esta Curitiba que se quer representada precisa ser um “caleidoscópio movente” (NUNES, 2011, p. 29) que se apresente com todas as facetas, sem pudor ou acanhamento, e não apenas exiba aquelas faces calcadas na imagística artificiosa da propaganda oficial.
Percorrendo o labirinto no ventre do Minotauro
Esta peça foi primeiramente montada por Marcelo Marchioro, em 2001, empreendendo uma tradução cênica, cujo ponto de partida foi o conto Orgias do Minotauro, no qual o protagonista é o advogado enfeitiçado pela cliente – uma “macieira iluminada em flor suspirosa de abelha” (TREVISAN, 2007, p. 96). O Minotauro do conto é uma paródia do mito grego, perdido no seu labirinto de paixões, que tenta com muita lábia conseguir os favores sexuais da cliente, pois “toda família curitibana tradicional […] tem um louquinho preso no porão (…). Ó maldito Minotauro uivando e babando no próprio labirinto” (TREVISAN, 2007, p. 103). Se o Minotauro da lenda exigia sete virgens e sete rapazes para se alimentar com sua carne, o do conto trevisaniano precisa apenas de uma jovem para aplacar seu desejo, por meio de troca de carícias e outras eventuais possibilidades.
Repetindo o tema constante nos contos trevisanianos, o narrador daqui se confunde com o personagem e, por meio de um diálogo que vai minando pouco a pouco a resistência da interlocutora, o Minotauro avança no labirinto do seu corpo: desde a mão até outras partes mais íntimas. A desvairada comparação de partes da anatomia feminina com o ato de comer e beber reforça o erotismo antropofágico da cena:
Me achego e beijo a face – sem pintura, que maravilha. Fagueira penugem de nêspera madurinha.
– De uma [mulher], o seio raso da taça de champanha. De outra, bojudo copo de conhaque para aquecer a palma da mão.
– Uma empadinha recheada de camarão e premiada com azeitona preta.
Afastava essa coxa branquinha de arroz lavado em sete águas (TREVISAN, Dalton, 2007, p. 95; 97; 98; 99; 100 – grifos nossos).
Essa metaforização fescenina evidencia a intenção do narrador-personagem. Nesta conotação hibridizada Marcelo Marchioro se inspirou para selecionar 40 contos de Dalton Trevisan, dos quais retirou pequenos textos ou segmentos, e os organizou na versão teatralizada de No ventre do Minotauro, em forma de esquetes, representados com a destacada participação de Mário Schoemberger. Este ator foi fundamental para o sucesso do espetáculo durante cerca de um ano e meio nos teatros paranaenses, pois soube mais que ninguém captar o verdadeiro sentido a ser transmitido ao público durante a temporada: “Os contos se situam sempre no registro entre Eros e Tânatos. Essa dualidade aparece o tempo todo em seus contos” (SCHOEMBERGER, apud Estadão Digital, 2014).
Segundo a crítica, “a cenografia da peça (criação do grupo Usina das Artes) é simples e evocativa: cabideiros feitos de pinho estão espalhados na cena, numa referência também à imagem dos numerosos pinheiros que revestem a paisagem da região Sul do País” (Estadão Digital, 2014). A observação procede, pois a metáfora dos pinheiros remete à percepção de que os dramas se desenrolam na capital paranaense, entre os personagens são caracterizados tal como estão no texto trevisaniano. Neste caso, Marchioro produziu a sequência de diálogos para lhe imprimir a dramaticidade pretendida, num alcance muito maior que a evidenciada Curitiba, pois, à medida que procuram enfatizar o grotesco das situações, passam a ocupar “um entrelugar categorial, reconhecido por propriedades não consistentes, voltadas para a sugestão de um ser, cujas características encontram-se além do alcance da linguagem, ou seja, numa esfera afim à da representação e à da visão de mundo melodramáticas” (DIAS, 2013, p. 22-23 – grifo da autora).
Nos cabideiros é posta uma variedade de chapéus com os quais o ator compõe o figurino de cada personagem a ser representado, portanto, com um cunho universal. As sucessivas transformações são feitas diante do público, requerendo muita versatilidade do ator, em virtude da gesticulação e a entonação das falas, que têm de ser reatualizadas a cada mudança de papel. Assim, No ventre do Minotauro se aproxima da estética do melodrama mesclado à farsa, à medida que o monólogo desfiado por Schoemberger descamba para o exagero cuja intencionalidade sublinha o desempenho destacado do ator (BENTLEY, 1967, p. 188).
E para finalizar: um pico na veia
Conforme se constata até aqui, é inesgotável o potencial de teatralização do texto de Dalton Trevisan. Embora Roland Barthes considere que a teatralidade seja “o teatro menos o texto”, que submerge diante da exterioridade dos “corpos, dos objetos, das situações”, o crítico não deixa de reconhecer ser qualidade presente “desde o primeiro germe escrito de uma obra, pois ela é um dado de criação” (BARTHES, 2009, p. 58).
De fato, a estética de Dalton Trevisan se funda no exagero melodramático, indo às raias da transgressão do politicamente correto, com a intenção de fazer emergir os conflitos que se querem recônditos entre as copas do cinismo da sociedade. O autor permite seja desvendada em sua escritura as diversas nuances que a credenciam como congênere do modo melodramático, como os textos selecionados no livro Pico na veia, justamente por apresentar uma coletânea de micronarrativas cuja propensão cênica se assemelha a esquetes de representação teatral. São minicontos e haikais, numerados de 1 a 205 com uma economia bem definida desde o texto nº 3: “Um bom conto é pico certeiro na veia” (TREVISAN, 2008, p. 9), frase-síntese que poderia ser apropriada como epígrafe de toda sua obra.
Já no texto nº 204 são mencionadas apenas duas frases: “Lição de estilo: o último bilhete do suicida. Lição de vida: um pedaço de papel em branco – o último bilhete” (TREVISAN, 2008, p. 238). O último bilhete do suicida é a alegoria da idealização característica do autor, conhecido pela disposição obsessiva em estar sempre reescrevendo seus textos em busca da melhor expressão. Revela, na iminência da morte, o desejo de capturar o definitivo, a última palavra, sem abrir mais qualquer oportunidade à contestação. O esgar do escritor suicida intui o simulacro da pseudoverdade definitiva que, entretanto, acaba contrariada pela própria finitude acarretada pela morte, pois o sonho com a morte elimina qualquer compromisso com o real, pois ele está prestes a apagar a existência.
Daí, a última encenação, antes de cair o pano, faz com que o escritor suicida esteja à beira do abismo e se jogue no precipício, mas logo retornará como um Sísifo redivivo, fadado a reiniciar a trama em cada texto a ser (re)produzido. Assim, a reprodutibilidade de seu texto se tornará bastante previsível com o déjà vu ficcionalizado das peças populares, nas quais as tramas se resumem aos conflitos conjugais, à angústia amorosa dos namorados, ao crime anônimo das ruas, coonestando o próprio cotidiano atribulado do leitor.
Ao encenar Pico na veia (2005), Marcelo Marchioro se propõe a exibir manifestamente o teor dramático dos textos trevisanianos, com sua consistência compacta, resumida, enxuta, porém impressa com cores indeléveis no receptor, trazendo as marcas de uma representação que questionam a indecibilidade das relações humanas no seio da sociedade. Para isso, o encenador atribui a seus atores o papel de narradores-protagonistas de suas histórias e, ao mesmo tempo, a função de espectadores. Embora o título do espetáculo se identifique com o mesmo de um dos livros mais pungentes de Dalton Trevisan, Marchioro se valeu de outros textos do autor, proporcionando uma performance convincente de seu elenco: “São os atores que dão corpo e voz às micronarrativas de Trevisan, formando a ponte e o texto e o olhar através do jogo, tornando visível o universo verbal do contista, transposto para uma nova experiência estética coletiva” (CAMATI, Anna, 2006, p. 61, 63).
Para alcançar tal resultado, Marchioro se apropria de textos viscerais como o nº 2, no qual se desenvolve o monólogo de uma jovem usuária de crack. No relato, ela atua como doublée de personagem e narradora, revelando que perambula pelas ruas da cidade para assediar as demais pessoas, a fim de exigir uns trocados ou lhes aplicar golpes, cujo produto é todo destinado aos alucinógenos: “Isso não é roubo, é viração” (TREVISAN, 2008, p. 6). A personagem naturaliza sua condição de genuína credora da ajuda alheia, construindo uma lógica sui generis, pois para ela pedir seria uma humilhação e roubar é uma justa apropriação de algo que lhe é negado, mas que também lhe pertence.
Esta personagem representa um indivíduo cuja anomia alcança o universo de usuários de droga entregues à própria sorte, desintegrados num processo de abjeção que é o espaço da dessemelhança e da não-identidade (VILLAÇA, 2008, p. 181). Assim, no discurso fragmentado da jovem não há elementos que possam estabelecer sua identidade, senão os qualificativos autoproclamados de “doidona”, “zoada”, “chapada”, “viciada”, “adoidada”, “louca” e “pirada”. A breve história de sua vida também exterioriza, com cores sinistras, um percurso macabro: “Comecei com cigarro, benzina, maconha, cola, éter. Depois pedra. Se dá, pico na veia. Foi por safadeza mesmo e pra vingar do puto do pai. Só queria fazer sacanagem. A pedra não é o mal. O mal é as pessoas mesmo” (TREVISAN, 2008, p. 7). Como se deduz, trata-se de texto cuja concepção já traz embutida uma intensa carga melodramática, por isso o elenco precisa contribuir com a dosagem certa na interpretação, a fim de não cair na armadilha da pieguice. Aquilo que consegue arrecadar canhestramente nas ruas a personagem canaliza para a droga que, pouco a pouco, corrói sua existência, enquanto tem os momentos da agonizante clarividência dos moribundos: “Entrei nessa de babaca. Se quisesse, tava numa boa (…). Fui eu que ferrei com minha vida. Acho que a pedra me comeu a cabeça” (TREVISAN, 2008, p. 8).
O monólogo perfaz uma retórica patética em que sentimentos contraditórios emergem à flor da pele, levando à plateia as sensações plasticamente concretizadas (BROOKS, 1995, p. 41) mediante a exteriorização pungente de tudo que tem a revelar, numa intensa “compulsão confessional” identificada como característica fulcral dos personagens rodrigueanos (DIAS, 2013, p. 25). Mais que a autoexpiação da culpa, o monólogo revela o conflito psíquico provocado pela configuração do reprimido mediante o sacrifício do próprio corpo da personagem (BROOKS, 1995, p. XI). A personagem jaz ancorada à indecidibilidade, e soterrada no conflito entre viver ou se submeter à degradação física e moral. Pontifica neste monólogo a revelação da jovem que se autoimola no incerto mundo da euforia transitória, enredada numa trama em que cada dia é uma aventura autofágica.
Ao direcionar o foco da narrativa para a jovem usuária que recita seu monólogo em meio ao palco da vida, fica impresso na cena o denominado “caráter sinestésico” de sua visualidade, provocando o desconforto do mal-estar acarretado pelo convívio com a miséria do mundo, tornando-se conivente dela, embora este sentimento não chegue a sensibilizar muitos que ainda permanecem atrás do confortável escudo da indiferença, ao preferir não ouvir, nem ver, nem falar sobre este dilema (CAMATI, 2006, p. 71).
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