Priscila Campolina de Sá Campello
Pontifícia Universidade Católicas de Minas Gerais (PUC Minas)
Sumário: O presente trabalho pretende analisar o conto “Aeroporto”, da escritora egípcio-estadunidense Pauline Kaldas, tendo como ponto de partida as motivações que levaram os dois protagonistas a consentirem em um casamento arranjado, como também as expectativas e justificativas que eles vão apresentando para isso ao longo do texto. Essa análise toma como base as teorias que permeiam a escrita de imigrantes, pois é nessa condição, do imigrante como um ser movente e fluido, que se verifica a necessidade de negociação e adaptação, tanto pelo indivíduo que ainda vive no seu país de origem, quanto por aquele que está a caminho e passará por várias experiências novas e desafiadoras. Nessa discussão, pretende-se também refletir sobre a estrutura do texto de Kaldas, no qual a justaposição de duas histórias vai, aos poucos, revelando os dois polos/indivíduos que serão eventualmente unidos e desvelados ao longo do texto.
Palavras-chave: Casamento. Diáspora. Literatura árabe-estadunidense. Pauline Kaldas.
Abstract
This paper aims to analyze Pauline Kaldas’ short story “Airport.” It will take into consideration the motivations that led the two protagonists to consent to an arranged marriage, as well as the expectations and how they justify themselves throughout the text. This analysis is based on the theories that permeate immigrant writing, since it is in this moving and fluid condition that it appears the need for negotiation and adaptation by the individual who lives in his country of origin as the one who is on his way and will face many challenging and new experiences. It also reflects on the structure of Kaldas’ text, in which the juxtaposition of two stories gradually reveals the two poles/individuals that will eventually be united and unveiled throughout the text.
Keywords: Marriage. Diaspora. Arab-American Literature. Pauline Kaldas.
Minicurrículo: Priscila Campello é formada em Letras – habilitação Inglês – pela UFMG. Cursou o mestrado em Literaturas de Língua Inglesa e o doutorado em Literatura Comparada, ambos na UFMG, e realizou o doutorado sanduíche na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. É professora adjunta de literaturas em língua inglesa desde 2001 na PUC Minas, onde é colaboradora do Programa de pós-graduação em Letras. Desenvolve pesquisa na área de literatura feminina, com foco nas literaturas de imigrantes, principalmente a árabe-estadunidense.
O QUE ESPERAR DE UM CASAMENTO ARRANJADO ENTRE SUJEITOS DIASPÓRICOS,
EM “AEROPORTO”, DE PAULINE KALDAS
Priscila Campolina de Sá Campello
PUC Minas
Uma das práticas mais comuns nas culturas árabes, e amplamente retratadas na literatura de autores de ascendência árabe, nos Estados Unidos, é a do casamento arranjado entre jovens. As razões para isso vão desde a manutenção dos mesmos valores e costumes entre as famílias até a necessidade de se realizar uma união com um indivíduo de uma condição financeira melhor e, assim, garantir um certo status social e também um futuro tranquilo. Além disso, a questão religiosa também é relevante para esse arranjo, pois o casamento constitui “o único canal legítimo para a sexualidade e a reprodução” (SHERIF-TRASK, 2003, p. 135).
No conto “Aeroporto”,[1] da escritora egípcio-estadunidense Pauline Kaldas, apresenta-se uma narrativa que se desenvolve a partir das perspectivas de dois jovens egípcios, Samir e Hoda, que se casarão nos Estados Unidos, celebrando uma união viabilizada por meio de um arranjo estabelecido entre seus parentes. A história se desdobra a partir da memória dos noivos, enquanto o rapaz está em Boston, no aeroporto, à espera da moça, e ela, por sua vez, no Egito, arrumando suas malas para a viagem. Devido à diferença de fuso horário, desenrola-se a produção de duas narrativas paralelas, que apresentam as expectativas e a trajetória dos nubentes antes de se encontrarem no destino final da moça.
Assim, começo essa análise a partir da apresentação dos dois personagens principais. Primeiramente, depara com Samir, um rapaz egípcio de 30 e poucos anos, cujos últimos anos foram vividos nos Estados Unidos. Sua saída do Egito deve-se às poucas possibilidades profissionais oferecidas pelo seu país e ao fato de que, mesmo se tivesse conseguido um diploma universitário, como, inicialmente, se propôs, ao entrar na faculdade de agricultura, acabaria tornando-se um vendedor de cigarros em um quiosque qualquer. Temendo esse malfadado destino, inscreveu-se na “loteria” pelo green card e, por um golpe de sorte, acabou recebendo a licença e mudando-se. Ao chegar ao país hospedeiro, Samir encontra bastante dificuldade em se adaptar, devido ao seu deficiente conhecimento linguístico, baixa escolaridade, pouca disponibilidade financeira e uma enorme insegurança em lidar com as novas situações. Ele, por exemplo, prefere comer sempre no mesmo restaurante e pedir o mesmo prato para não ter que lidar com a possibilidade de não entender o cardápio ou não poder pagar alguma outra escolha.
Abro aqui um parêntese para ressaltar a necessidade que o imigrante tem de encontrar elementos de identificação em meio às novidades e diferenças. Ao repetir, ocasionalmente, o pedido por comidas fritas, no restaurante chinês, conforme aprendera com colegas de trabalho, em uma ocasião em que saíram juntos após o expediente, Samir está recorrendo, justamente, a elementos que lhe são muito familiares, como o gosto e o cheiro de frituras que sua mãe preparava e que lhe trazem sentimentos de segurança, identificação e pertencimento. Segundo Michel de Certeau e outros, em A invenção do cotidiano,
(…) quando alguém é forçado ao exílio pela conjuntura política ou pela situação econômica, o que subsiste por mais tempo como referência à cultura de origem é a comida, se não para a refeição cotidiana, pelo menos para os dias de festa. É uma maneira de mostrar a pertença a outro solo (DE CERTEAU, 2008, p. 250).
Dessa forma, Samir mantém o vínculo com a sua terra natal e sua família e reafirma sua condição de sujeito deslocado.
A vida de Samir, no entanto, toma uma guinada mais positiva e promissora a partir do momento em que seu patrão, no restaurante onde lavava pratos, descobre sua habilidade para consertar objetos com defeitos. Ao ser indicado para trabalhar em uma loja especializada em consertos, Samir passa a levar uma vida menos sacrificada, além de estar fazendo algo de que gostava e sabia de fato executar. Há aí uma injeção de confiança em sua autoestima, afinal, havia “achado seu nicho nesse país que podia fazer tantas coisas, mas não sabia como consertar o que quebrava” (KALDAS, 2009, p. 24).
Em paralelo, apresenta-se também Hoda, uma jovem egípcia, de, aproximadamente, 25 anos, mestranda em química, que não está disposta a se casar com qualquer rapaz escolhido por sua família e que deseja trabalhar e ser diferente daquelas mulheres egípcias, cujas vidas se resumem a serem apenas esposas, mães, donas de casa.
Não era que ela não quisesse se casar. Ela sempre teve esperanças de que sua vida seria com um parceiro, e em algum momento ela esperava ter filhos. Mas sabia que não queria a vida que via ao seu redor. Mulheres arrastando seus afazeres como correntes, limpando a casa, lavando roupas, cozinhando, tudo para os outros. Ela havia visto amigas se casarem com 18 e 19 anos, às vezes até com homens de sua própria escolha a quem amavam. No primeiro ano, a vitalidade delas dissolvia-se como cristais de açúcar em água. Prever sua vida desse modo a amedrontava, seus dias preenchidos com os cuidados da casa e da família, seu corpo ficando pesado com a inatividade de seu cérebro (KALDAS, 2009, p. 24).
Para ambos, o casamento havia-se tornado uma necessidade. E suas famílias trataram de arranjar os devidos parceiros para os dois. Samir explicitou ao irmão, no Egito, que “precisava de alguém que pudesse ficar nesse mundo ao seu lado, talvez até guiá-lo um pouco”. Ele necessitava de “uma mulher que tivesse estudo, que soubesse bem inglês, que quisesse trabalhar; uma mulher que pudesse nadar em águas profundas” (KALDAS, 2009, p. 25). Já Hoda não queria ser uma solteirona e despertar “pena ou desconfiança”, portanto, casar-se com um homem como Samir seria sua chance de “conseguir um emprego de verdade, fazendo pesquisa, trabalhando com alguém que a levaria a sério (…)” (KALDAS, 2009, p. 25). Se, por um lado, observa-se um protagonista que vive, há anos, distante do seu país de origem e que já está relativamente adaptado ao país hospedeiro, por outro, há uma noiva que está à frente da sociedade conservadora e patriarcal de seu país de origem e aceita essa união por perceber nela a oportunidade de poder realizar os seus desejos e ideais “modernos” e avançados para aquela sociedade.
É possível afirmar que o casamento arranjado resolve questões importantes na vida desses personagens. A primeira delas é, em termos gerais, a que se refere à necessidade de se casar, tanto para o homem, que precisa de uma mulher para cuidar dele e da casa, para lhe dar filhos e continuidade à sua linhagem, como para a mulher, que, em uma sociedade patriarcal, machista e conservadora, não é bem vista como solteira e independente. A segunda questão, considerando que se trata de dois personagens que, de certa forma, fugiram à regra, em seu país de origem (um homem que foi em busca de condições de vida melhores e uma mulher que não quer ser mais uma dona de casa, esposa e mãe), remete à necessidade de reduzir os problemas advindos da diferença cultural. Casar-se com uma pessoa da mesma cultura, mesmo que ela não tenha sido escolhida pelas próprias partes interessadas, em uma união arranjada pelo interesse de suas famílias, minimiza possíveis desencontros e conflitos que possam surgir entre pessoas de diferentes culturas. É um obstáculo a menos a ser enfrentado e menos trabalhoso para ambos os lados. Claro que nada impede o surgimento de problemas de incompatibilidade, como ocorre com tantos outros casais, mas, ao considerar que ambas as partes possuem a mesma origem cultural, linguística, e uma proximidade de valores e costumes, a fase de adaptação e conhecimento cultural possivelmente será bem mais curta e menos problemática. Uma terceira questão ainda a ser considerada, nesse caso, é a da aceitação do modo de ser do outro.
Para Samir, havia a necessidade de encontrar uma mulher independente, estudada, fluente em inglês. Assim, ele não precisaria cuidar dela e ensinar-lhe tarefas básicas, uma vez que Hoda já apresentava desenvoltura suficiente, por ser culta, ocidentalizada, aberta para o novo e resistente a algumas tradições/costumes de seu país de origem. Embora uma mulher com o perfil desejado por Samir pudesse também ser uma fonte de problemas, conforme a opinião de seu irmão, devendo, com essas características, permanecer solteira, Samir não queria ninguém diferente: “Seu irmão argumentou que ele estava procurando confusão, que esse tipo de mulher deveria permanecer solteira. Mas Samir foi insistente e disse que não aceitaria outra coisa” (KALDAS, 2009, p. 25).
Já para Hoda, Samir indicava ser um homem menos conservador e tradicional, por já estar fora do Egito há um certo tempo. Ele já estava relativamente ocidentalizado e aberto a uma mulher que não fosse tradicional, que desejava ser independente, trabalhar e não reproduzir o papel/lugar destinado às mulheres nas culturas árabes. E, além disso, Hoda resolveria uma questão pessoal que era o seu próprio estado civil. Ao se casar com Samir e poder trabalhar, ela não iria fazer exatamente o que mais temia: “cair no padrão repetido por outras mulheres” egípcias (KALDAS, 2009, p. 25).
Desse modo, é possível afirmar que, embora o encontro deles se dê por meio de um casamento arranjado, carregado do que há de mais tradicional e mecânico em uma relação entre dois indivíduos, em que o amor não é a base inicial, é exatamente essa união que funcionará como a salvação de suas condições contraditórias e não convencionais e que também possibilitará que eles se posicionem como seres hifenizados e ansiosos por expressarem suas “reais” identidades.
Ao final do texto, quando Hoda está terminando de fazer suas malas, ela resolve levar apenas metade de tudo que possuía, tanto em relação às peças de roupa quanto aos outros itens pessoais. É justamente nesse ato de separar apenas a metade dos seus pertences que se explicita a divisão interna desse sujeito. Deixar metade para trás demonstra o lugar onde Hoda se encontra, entre dois países, duas vidas, duas culturas, duas línguas, duas experiências. Para Nubia Hanciau (2005, p. 135), o sujeito hifenizado “(…) é alguém que está in/conscientemente situado entre pelo menos dois mundos, duas culturas, duas línguas e duas definições de subjetividade, constantemente mediando entre elas (…)”. A arrumação das malas aponta para um possível comportamento de negociação que Hoda pretende adotar e que lhe ajudará a mediar seu processo de adaptação na nova terra.
Acredito que seja a partir dessa mediação entre os dois mundos, em que o sujeito não rompe definitivamente com a sua origem e o seu passado, que se configurará a sobrevivência de Hoda no novo lugar. E o mesmo ocorre com Samir, ao querer casar-se com uma mulher egípcia com características mais ocidentais. Edward Said afirma que
(…) o exilado vive num estado intermediário, nem de todo integrado ao novo lugar, nem totalmente liberto do antigo, cercado de envolvimentos e distanciamentos pela metade; por um lado, ele é nostálgico e sentimental, por outro, um imitador competente ou um pária clandestino” (SAID, 2005, p. 56).
Uma mulher egípcia seria a ligação de Samir com o seu mundo pré-exílio, sua família, língua, origem, e quem sabe até mesmo com as comidas fritas que sua mãe fazia, ou seja, a representação do lado nostálgico e sentimental a que Said se refere. Já a mulher estudada e que queria trabalhar apela para o lado do “imitador competente”, principalmente em uma cultura (no caso, a estadunidense), em que as mulheres já estão concorrendo em pé de igualdade com os homens.
Com fundamento nessas observações feitas até aqui, pode-se dizer que o texto de Pauline Kaldas se constrói à medida que se apresentam, de forma justaposta, os personagens. Os parágrafos se intercalam, ora Samir está em evidência, ora Hoda. Gradativamente, o leitor é apresentado aos personagens, por meio de suas histórias e suas versões, mesmo que em uma narrativa em terceira pessoa. O que chama a atenção é que, em várias passagens, os sentimentos (de dúvida, preocupação etc) e as ações dos noivos se assemelham, demonstrando, assim, que a expectativa e a ansiedade são mútuas, parecidas e até universais. Reforço aqui o caráter universal e humano dos sujeitos diaspóricos, independentemente do caminho a ser trilhado – seja em direção ao país hospedeiro, ou ao país de origem – do tempo no exílio e do objetivo do seu deslocamento geográfico.
Há duas passagens que valem a pena serem citadas para ilustrar o paralelismo e a simultaneidade do que estava ocorrendo com os personagens e que sinalizam para a expectativa que a viagem de Hoda e, consequentemente, o início da vida a dois geravam. A primeira passagem narra o dia da chegada da noiva aos Estados Unidos. Samir acorda cedo para buscá-la e demonstra estar bastante ansioso com a aproximação da hora de ver Hoda. No aeroporto, inclusive, resolve apenas beber uma xícara de café, pois temia que algum outro alimento revirasse seu estômago. O parágrafo assim se inicia: “Eram onze horas da manhã de domingo. Ele havia acordado cedo, um pouco antes das seis, apesar de ter ficado até tarde limpando seu pequeno apartamento”. E assim se fecha: “Estava muito quente para beber, então ele apenas podia ficar sentado, os sons do aeroporto se misturando até que se tornaram um murmúrio constante em sua cabeça” (KALDAS, 2009, p. 20). Hoda também passa pelo mesmo processo, mas sua noite anterior havia sido uma noite de despedidas. “Eram onze horas da manhã de sábado. Ela havia acordado cedo, um pouco antes das seis, apesar de ter ficado até tarde se despedindo de amigos e parentes”. Esse mesmo parágrafo a respeito da noite de Hoda termina assim: “(…) fez uma xícara de café apesar de raramente o beber. (…) Sentou-se na cozinha quase em transe até que seus ouvidos tornaram o barulho do lado de fora em um murmúrio constante em sua cabeça” (KALDAS, 2009, p. 21). O murmúrio na cabeça dos dois reproduz o turbilhão de emoções que a mudança que estava prestes a acontecer estava causando a eles.
Vê-se que, embora em países e culturas diferentes, os dois estavam reagindo da mesma forma diante dos fatos que estavam por vir. As poucas horas de sono, a escolha da mesma bebida, o murmúrio na cabeça, tudo isso ocorre aos dois, independentemente de onde se encontram, do gênero, da idade, da profissão. O fato de optarem pelo café, uma bebida originária da África, mas difundida pelo mundo, por meio do Egito e da Europa, e de grande importância para o mundo árabe, também sinaliza para o fato de recorrerem a algo familiar, aconchegante e protetor, especialmente Samir, que está distante de sua terra natal. Segundo Gláucia Gonçalves, muitos dos personagens retratados por escritores contemporâneos de origem árabe nos Estados Unidos “se agarram à comida [aqui, no caso, à bebida também] (…) como forma de equilibrar a ambivalência de suas próprias existências híbridas” (GONÇALVES, 2010, p. 158).
Um segundo exemplo da simultaneidade e do paralelismo que unem as histórias de Samir e Hoda é a dúvida sentida por ambos em relação a esse outro que estão prestes a encontrar. Como não se conhecem, o texto demonstra que a expectativa passa também pelo medo e desconhecimento, não só diante da situação, mas também desse sujeito que agora fará parte da vida de cada um deles. Samir reflete:
Ela estaria no avião? Foi o irmão dele que havia escrito com as informações do voo. Ele havia recebido uma carta dos pais dela, aceitando seu pedido e dando sua bênção. Todo o resto, assinar os papéis do casamento, processar os documentos da imigração, havia sido feito por seu irmão. E havia demorado mais tempo do que o esperado, quase dois anos preenchendo formulários, apresentando provas disso e daquilo, até que ele sentiu que sua vida havia sido transformada em uma pilha de papéis. De vez em quando, ele se esquecia do propósito por trás de tudo isso, que isso finalmente o levaria a se casar com alguém que ele não conhecia. Às vezes, o medo perpassava pelo corpo de Samir. Talvez ele devesse ter ouvido quando seu irmão havia insistido para que ele retornasse para o Egito, para ele próprio escolher uma esposa” (KALDAS, 2009, p. 21).
Talvez, o trecho mais simbólico dessa passagem seja o fato de que Samir não tenha escolhido Hoda sozinho, mas que tenha sido uma escolha do irmão, conforme as suas especificações. O medo e o desconforto, portanto, passam pelo fato de que ele tenha delegado essa tarefa. Assim, que garantia ele teria que ela estaria naquele avião? Que garantia ele teria que aquilo daria certo?
Hoda, por sua vez, também compartilha da mesma dúvida:
Ele estaria lá? O que ela estava fazendo indo para outro país para se casar com um homem que nem conhecia? Seus pais haviam ajudado a convencê-la de que isso seria o melhor para ela. “Ele vem de uma boa família e, além disso, está na América e não são muitas pessoas que conseguem ir para lá”. “Além disso”, seu pai continuou, “essa tal de América é mais apropriada à sua natureza independente”. “Sim”, sua mãe complementou, em um tom resignado, “e lá eles gostam de pessoas com estudo”. (…) “Você tem um diploma universitário”, argumentaram os pais, “e está com 21 anos agora. Procure por um marido. Está na hora de se acomodar” (KALDAS, 2009, p. 22).
Os argumentos dos pais de Hoda são uma forte evidência da necessidade de se aceitar esse casamento, mesmo que seja com um desconhecido e em um outro país. Para Hoda ser livre e poder ser quem ela gostaria de ser, ela teria que se submeter a esse arranjo e, necessariamente, distanciar-se fisicamente daqueles que a oprimem (correndo o risco, evidentemente, de Samir reproduzir sua cultura, nos EUA). Essa passagem aponta também para a forma como as mulheres são vistas no Egito. Não há lugar para mulheres independentes e estudadas ali. Além de a reputação feminina ser julgada pelo estado civil, o excesso de independência e o grau de escolaridade também eram mal vistos naquela sociedade.
Desse modo, verifica-se que o movimento diaspórico permite a esses sujeitos que se posicionem entre dois polos, sejam eles linguísticos, culturais, geográficos, e até intelectuais. O casamento, para Samir e Hoda, passa a ser o passaporte para que eles possam realizar-se mais plenamente, mesmo que ele se dê pela via dos interesses de seus familiares. Ambos os personagens encontram, nessa instituição e um no outro, a âncora para a sua sobrevivência em um mundo (e, especialmente, em uma cultura) que demanda e pressiona que as pessoas se casem.
Como se viu, o texto de Kaldas expõe o percurso dos seus dois protagonistas, que se estão preparando para o encontro, que se dará, primeiramente, no saguão de um aeroporto, espaço que, por excelência, reúne sujeitos em trânsito, cheios de expectativas e esperanças no que está por vir. Embora, para Samir, seja bizarro o fato de um país utilizar-se de uma loteria para tomar suas decisões relativas à imigração, tanto ele quanto Hoda apostaram, como em um jogo, que suas vidas poderiam ser melhores a partir de um encontro arranjado entre dois desconhecidos.
Referências bibliográficas
DE CERTEAU, Michel et al. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2008.
GONÇALVES, Gláucia. A memória nossa de casa dia: reflexões sobre comida, literatura e diáspora árabe nas Américas. In: CARIZZO, Silvina L.; NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Orgs.). Território e cultura: relações literárias interamericanas. 1ª ed. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2010. p. 151-164.
HANCIAU, Nubia. Entre-lugar. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. p. 125-141.
KALDAS, Pauline. Airport. In: KALDAS, Pauline; MATTAWA, Khaled (Eds.). Dinarzad’s Children: An Anthology of Contemporary Arab-American Fiction. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2009. p. 19-25.
SAID, EDWARD W. Representações do intelectual. As conferências Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SHERIF-TRASK, Bahira. Love, Courtship, and Marriage from a Cross-cultural Perspective: the Upper Middle-Class Egyptian Example. In: HAMON, Raeann R.; INGOLDSBY, Bron B. Ingoldsby (Eds.). Mate Selection cross-Cultures. Thousand Oaks, California: Sage Publications, 2003. p. 121-136.
[1] O título e os excertos do conto aqui analisado foram traduzidos pela autora do artigo.