Emanuela Carla Siqueira
Universidade Comunitária Regional de Chapecó, SC
Resumo: Elise Nada Cowen foi poeta entre os anos de 1950 e começo dos anos 1960. Circulou pelo grupo chamado de Geração beat e cometeu suicídio aos vinte e oito anos, em 1963. As fotos de Elise são raras. Seus escritos foram queimados pela família ou a seu mando, restando apenas um caderno com oitenta poemas. Elise poderia ter recebido a mesma atenção que Allen Ginsberg, ou mesmo Sylvia Plath, que cometeria suicídio apenas um ano depois, mas ficou relegada a poucas homenagens depois de sua morte, com publicações póstumas de poemas, alguns, inclusive, modificados. O presente artigo pretende situar Elise Cowen no espaço e no tempo da contracultura daqueles anos, além de pensar sua biografia e subjetividade através de seu único caderno deixado – reproduzido e comentado pelo pesquisador Tony Trigilio – memórias de amigos próximos, principalmente as relatadas pela amiga e contemporânea Joyce Johnson em seu livro Minor Characters, de 1983. Além disso, este artigo pretende reconstruir os laços afetivos – até mesmo os inconscientes – que existiram entre as escritoras que circularam entre os beats durante o período estudado, reconstituindo assim o contexto literário e feminista em que essas escritoras viveram.
Minicurrículo: Emanuela Carla Siqueira é graduada em Letras-Inglês e Literaturas pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó, SC.
O INDIZÍVEL NOS CADERNOS DE ELISE COWEN
Emanuela Carla Siqueira
Universidade Comunitária Regional de Chapecó, SC
O contexto da geração beat
O que se conhece como Geração Beat hoje é um dos mais importantes movimentos contraculturais do século XX, um embrião para os movimentos como o hippie e o punk, por exemplo. Mas como aponta Cláudio Willer, no livro introdutório Geração beat, a aceitação e definição do termo pelo seu círculo não foi tão simples assim. Ele considera como definitiva a versão apontada por Allen Ginsberg em 1996 (ver Willer, Claudio, 2009, p. 7). Nesta, a expressão beat generation se tornou famosa em 1948, em uma conversa entre os escritores Jack Kerouac e John Clellon Holmes numa discussão sobre a natureza das gerações de escritores. Ambos não sentiam pertencer à lost generation e, na tentativa de nomear o grupo de que faziam parte, Kerouac aceitou a denominação de que eram uma “geração beat”, sem dinheiro, que vivia e escrevia de forma espontânea.
No fim da década de 1940, a geração beat já vivia uma certa consolidação, e escrevia sobre temas como a estrada, sexo, a não conformidade com o American way of life e empregavam a escrita espontânea. Esses temas já faziam parte do vocabulário que percorria entre o underground do Village, em Nova Iorque, e a boêmia, em San Francisco.
Os beats foram uma espécie de vanguarda que estabeleceria relações com alguns grupos hippies nos anos 1960 e outros projetos de hipsters nas décadas posteriores. Barbas, camisas xadrez, declamações de poesia, saraus e reuniões em cafés baratos eram facilmente identificados e apontados como influências vindas de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, a santíssima trindade. Mas é olhando de forma mais atenta para as fotos da época que se encontram figuras femininas, que, embora sempre presentes nas narrativas dos homens, como amantes, nessas imagens são apenas mulheres de preto, trajando calças e cabelos curtos, outras usando vestidos e cabelos bem arrumados, mas sempre estão em segundo plano, sinalizadas apenas como acompanhantes, coadjuvantes de contextos, cenários de uma história que parece ter sido escrita apenas por mãos grossas, revestidas de pelos e testosterona à flor da pele.
Apesar das afirmações dos próprios homens do meio beat (Joyce Johnson, 1983, p. 79), de que uma verdadeira organização artística só podia ser formada por homens, havia mulheres em seu meio. Muitas eram inconformadas com seus papéis desempenhados nessa nova sociedade, recém-saída da segunda grande guerra, em que os homens retornavam para o lar em busca apenas de sossego, uma vida em família e “normal”: longe das armas e conflitos. Percebiam que nada era como antes, pois o mundo poderia entrar em colapso a qualquer momento. E nesse contexto de incertezas, os jovens eram os primeiros a questionar o tradicional.
O Barnard College, por exemplo, famosa escola nova-iorquina dedicada à educação para moças, era um verdadeiro celeiro para as jovens questionavam a repetição dos velhos papéis impostos às mulheres. A própria convivência entre as moças provocava novos conflitos, que se refletiam diretamente em suas ações fora da universidade, e elas terminavam por se opor às tradições familiares, a fugir de casa ou a resolver tomar decisões sobre sua própria vida e seus corpos.
Em Minor Characters (1983), Joyce Johnson define de forma primordial o que sentiam as garotas quando decidiam sair construir uma vida sem ter nenhum exemplo anterior para seguir, tornando-se verdadeiras transgressoras protofeministas:
Those of us who flew out the door had no usable models for what we were doing. We did not want to be our mother or our spinster schoolteachers or the hard-boiled career women depicted on the screen. And no one had taught us how to be women artists or writers. We knew a little about Virginia Woolf, but did not find her relevant. She seemed discouragingly privileged, born into literature, connections and wealth. The “room of one’s own” that she wrote about presupposed that the occupant had a small family income. Our college educations enabled us to type our way to fifty dollars a week – barely enough to eat and pay the rent on a tiny apartment in Greenwich Village or North Beach, with little left over for shoes or the electric bill (Johnson, 1983, p. 22-23).
Essas pequenas revoluções que se criavam nas principais universidades para garotas eram inspiradas, e em alguns casos simplesmente análogas, à universidades maiores mistas ou apenas para garotos. Bem se sabe que a Universidade de Colúmbia – onde estudaram os principais homens da Geração Beat – eram levados não como locais de obtenção de conhecimento, mas como um lugar onde receitas de tradições eram apenas passadas de geração em geração, moldando mentes que apenas repetiam o eco que ouviam dos intelectuais do passado. No filme Kill your Darlings (2013), do diretor John Krokidas, no qual é relatado o famoso episódio do assassinado de David Kammerer por Lucien Carr e encoberto por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, são mostradas várias cenas em que alunos como Allen Ginsberg, tomados por um espírito vanguardista, questionam as aulas da Universidade de Columbia que não ensinam Walt Whitman ao invés de Shakespeare, tão distante do tempo deles.
A escritora Diane Di Prima, que frequentou durante um ano e meio a Swarthmore College, relata um ambiente menos movimentado, porém pleno de inconformismo, em Memórias de uma beatnik (2013):
Após a liberdade alegre e um tanto surreal da escola secundária em Manhattan, a faculdade havia sido, de modo geral, uma decepção absoluta: um lugar de estereótipos masculinos e femininos de suéter de caxemira, e festas ruidosas e desagradáveis, regadas a cerveja. Lugar de um corpo docente infeliz com olhares de soslaio para virgens lascivas de Little Rock. Um lugar de partidas de bridge intermináveis, de festas superficiais, de um tédio que se espalhava feito praga por um campus muito bonito e por cada canto e fenda dos prédios cobertos de marfim. Um bom lugar para um assassinato, certamente, em que, em vez disso, ocorria uma média de três suicídios por semestre (Di Prima, 2013, 57).
O final dos anos 1940 foi uma época ideal para a maturação de um movimento vanguardista que rompesse com as tradições e redefinisse o sentido de contracultura. A geração, constituída em sua maioria de homens, pegaria a estrada durante essa década e a próxima e seria uma inspiração para algumas garotas que iriam conquistar não as rodovias norte-americanas, mas sua liberdade de ir e vir pelas ruas de metrópoles, pagar aluguéis baratos em lofts com seu próprio trabalho e assim adquirir um teto próprio sob o qual poderiam repensar os seus valores, os limites de seu corpo e a forma que teria sua arte teria.
Escritoras na geração beat
“Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram, elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia alguém escreverá a respeito” (Gregory Corso).
Se os nomes de Kerouac, Ginsberg e Burroughs ecoam até hoje é porque a geração beat desenvolveu um papel importante tanto como movimento contracultural, colocando os valores sociais da época em cheque, quanto como movimento literário, promovendo a poesia, a escrita espontânea, os saraus e a boêmia, característica já importante naquele momento para os que escolheram estar na oposição aos bons costumes. Mas, se houve homens, também houve mulheres muito além das conhecidas musas Carolyn Cassady, Joan Kerouac e Edie Parker.
É um trabalho de dedicação encontrar registros e trabalhos das mulheres da época. Toda a produção literária, cartas, diários e imagens, é bastante escassa. Onde quer que se procure “Women of the beat generation” seguida da busca pelo nome de cada escritora, o resultado será pequeno, apenas baseado em poucas fotos de época e em obras publicadas depois dos anos 1990, pelo esforço de pesquisadores que foram acrescentando os nomes delas aos da produção masculina. Diane Di Prima – a escritora ligada ao grupo e mais comentada – parece ter recebido mais atenção graças a seu envolvimento posterior com a cena hippie e os grupos de San Francisco antes do que em sua vivência inicial no cenário literário de Nova Iorque. Hettie Jones, que circulava muito pelo grupo beat – era casada com o único poeta negro do movimento e é primorosamente citada por Joyce Johnson em Minor Characters. Há poucas fotos de sua juventude, e posou para as câmeras só após seus cinquenta anos, pelo menos. Vale salientar que escritoras como Joyce Johnson, Hettie Jones e Elise Cowen – mesmo com seus cadernos queimados – já mostravam bons indícios de produção antes ou durante o mesmo período, proporcionalmente às grandes publicações masculinas de Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
Na introdução ao livro de Cowen, Minor Characters (1983), a pesquisadora Ann Douglas procura enumerar alguns motivos para que a autoria feminina do movimento ficasse em segundo plano diante do protagonismo masculino, sem perder o desenvolvimento da sororidade entre elas e descoberta de suas próprias subjetividades como mulheres e escritoras:
Minor Characters records the cost the beat generation exacted of its most gifted women. Joan Burroughs and Elise Cowen didn’t survive, in part because they internalized their male Beat models too intimately; Hettie Jones postponed her own public career as poet to further that of LeRoi Jones (later Amiri Baraka), then her husband. Yet, as Barbara Ehrenreich has argued, the male beats provided an example of liberation for the feminists of the next decade, and Minor Characters tell us how a number of beat women found themselves in each other, discovering in the cultural ground their male peers cleared the space for their own self-expression (p. 16).
No Brasil, Claudio Willer – provavelmente o principal pesquisador dos Beats por aqui – cita o envolvimento de algumas mulheres com o grupo, em Geração beat (2009). Mas, apesar de se ter conhecimento de mulheres escritoras circulando entre os Beats, praticamente não houve interesse editorial pelo trabalho delas. Isso nem da parte de editoras que visavam o mercado, nem tampouco os divulgadores e tradutores que apresentavam esses escritores em pequenas publicações como zines e revistas independentes.
Foi nos anos de 1990 que surgiram as primeiras tentativas de colocar as mulheres dentro do mapeamento de trabalhos da geração beat. A confusão em tratá-las apenas como amantes, amigas ou companheiras não tornava o trabalho simples e fácil para quem as pesquisasse. Claro que algumas foram figuras atuantes dentro do grupo, mesmo que o mercado editorial, os jornalistas literários e os próprios escritores, as omitisse. Diane Di Prima, por exemplo, sempre fora citada junto aos nomes masculinos. Poeta desde os anos 1950, ela foi associada mais como um membro honorário do que uma figura realmente pertencente à boêmia do momento. Afinal, para a época, não era cabível uma moça ser boêmia, escritora e independente ao mesmo tempo. Se é difícil definir o que, ou quem, foi a geração beat, é ainda mais complicado associar essas mulheres ao grupo. Como se sentir parte de algo que sempre a colocou como coadjuvante?
O trabalho de Ronna C. Johnson, Nancy M. Grace, Ann Douglas, e outras que se dedicaram a divulgar a autoria feminina dentro da geração beat foi fundamental para que finalmente essas escritoras tivessem representatividade. E é refazendo o percurso dos homens, dessa vez sob uma ótica das mulheres que viveram o momento, que se percebe que eles, mesmo sendo transgressores, destituídos da moral e dos bons costumes, vivenciando a bissexualidade e alheios às cobranças da sociedade, ainda assim mantinham uma visão conservadora a respeito da representação feminina.
Para essas mulheres os atos transgressores podem parecer mais levianos e simplórios se colocados em comparação às viagens de carona em beiras de estrada, ao trabalho braçal feito em plantações de algodão ou à busca de um lugar para dormir e um prato de comida enfrentados pela trupe masculina. O fato de apenas sair da casa confortável de seus pais, abandonando o sonho familiar de casamento e submissão, era um dos maiores atos de rebeldia enfrentado pelas mulheres da época.
Boa parte delas acabaram publicando um pouco tardiamente quando comparadas a Allen Ginsberg, por exemplo, um dos maiores influenciadores de escritores de qualquer gênero, na época. Mas, em qualquer pesquisa sobre essas mulheres, nota-se que elas já eram arrematadas escritoras, memorialistas e poetas. No único caderno que sobrou de Elise Cowen, já é possível traçar um panorama dos doze meses em que escreveu suas poesias e anotações, e nele notar uma voz latente e uma série de figuras que se repetem em sua poesia, legitimando um estilo na sua escrita. Como bem definem Ronna C. Johnson e Nancy M. Grace (2002) sobre a importância de se compreender a construção dessas escritoras como sujeitos da geração beat nas suas condições na época:
(…) understanding the female subjects inscribed in their writing and restoring this writing to the Beat canon is essential project that illuminates postwar sexuality and discourse the masculine and feminine in Beat culture and literature as well as in those of the mainstream. Beat women writers bring to Beat literature women-centered subjects and themes from the domestic to the sexual to the existencial and by this modification to beat’s exclusionary masculinism expand what it means to be beat (Johnson, Grace, 2002, p. 11).
ELISE COWEN E O QUE SOBROU DE SEUS CADERNOS
Elise
Pegou um Greyhound.
Sabotou
alguns relógios
na cidade
me deixou o resto,
e um destino
de um eterno chop suey,
uma cópia surrada d’O Idiota
Ela não tinha muito.
Quando as portas fecharam
e o ar-condicionado ligou,
a estrada de couro negro
a levou.
Seus amigos
celebraram sua ida
com cerveja e punhos cerrados.
Seus pais
em sua impenetrável sala de estar
cerraram as cortinas.
(Joyce Johnson)
Her middle name was Nada – a name of such bleak prophecy it’s astonishing to think of anyone inflicting it upon an infant daughter. (Mine, for example, was Alice, conjuring up the looking-glass child, teas in pinafores on lawns). “Literally it means Nothing – Nothing and Nothingness,” Elise said with a certain melancholy pride (Joyce Johnson, Minor Characters, 1983, p. 54).
Não é difícil ter empatia, ou mesmo um interesse latente, por Elise Cowen apenas olhando para as poucas fotos que restaram, principalmente uma que parece esboçar um sorriso na imagem que ilustraria seu passaporte, nunca usado. Os óculos de bibliotecária, tão comuns nos anos 1950, lhe conferiam uma certa personalidade, uma firmeza indescritível no olhar. Não diferente das descrições feitas por Joyce Johnson em Minor Characters, Elise era tão decidida e impulsiva que podia levar quase tudo ao limite, deixando de lado a autoestima e a capacidade de controlar as situações.
Pouco sobrou de Elise Nada Cowen, de sua produção apenas oitenta e três poemas escritos entre o outono de 1959 e a primavera de 1960, período de pouco menos de dois anos antes do seu suicídio. O restante do que deixou, como cartas, diários, cadernos e anotações foram queimados logo após sua morte por parentes próximos e vizinhos do apartamento de seus pais, de onde pulou de uma janela fechada do sétimo andar após passar por uma série de situações com que não conseguiu lidar, no auge dos seus vinte e oito anos.
Joyce Johnson e Leo Skir foram os primeiros a falar de Elise com maior profundidade, apesar de que foi Allen Ginsberg que usou de sua influência para publicar alguns poemas que ficaram com Skir. Segundo os relatos de Skir e Joyce Johnson, nos respectivos Women of the Beat Generation e Minor Characters, ambos não conviviam muito com Elise que flanava entre espaços, sempre silenciosa e impetuosa.
Joyce Johnson conheceu Elise na Barnard College e por cerca de dez anos ambas mantiveram contato, em uma amizade as vezes distante mas muito afetuosa. Pelas descrições de Johnson em Minor Characters, Cowen era bastante cuidadosa com a amiga, aparecendo as vezes para contar alguma situação, tomar um café ou apenas desabafar, sem nunca deixar de pedir que Joyce fosse feliz. O trecho que Johnson relata o primeiro encontro das duas é moldado por um certo tom onírico e saudosista, mostrando que talvez as lembranças do momento sejam mais suntuosas do que ele em si. Mas algo é certo, Joyce jamais esqueceu da amiga e dos pequenos detalhes e cartas trocadas:
I did not want to how Elise Cowen, who clearly was not collegiate and whom I could tell at a glance was even beyond the effort of trying. She introduced herself in such low voice I had to ask her to repeat her name. But her eyes insisted, “I do know you. We have been to the same places. And I isn’t it ridiculous for us to be here?” And all the while, in my plaid and lamb’s wool, I’d hoped I blended in so perfectly (Johnson, 1983, p. 51).
O livro Women of the Beat Generation (1998), editado por Brenda Knight, traz uma carta de Leo Skir – o qual, junto com uma prima de Elise, é um dos poucos que teve acesso ao único caderno deixado por ela – em que ele conta, em forma de relato, como conheceu Elise Cowen e acompanhou sua trajetória durante os anos em que se relacionou com Ginsberg e Caroline Hiller, mudou-se para San Francisco, sofreu um aborto perigoso, frequentou clínicas psiquiátricas como Bellevue e Hillside e como em um dia aleatório recebe uma ligação de Caroline sobre a morte de Cowen.
O pesquisador americano Tony Trigilio é atualmente o mais dedicado a divulgar o que sobrou da vida e obra de Elise Cowen. Responsável por editar Poems and Fragments (2014), livro composto por todos os poemas do único caderno que sobrou, com comentários, notas e trechos fac-símile do original.
Nascida em 1933, Cowen vinha de uma família de classe média judia, que vivia no simpático bairro de Washington Heights, em Nova Iorque. Como qualquer mulher de sua época, o pós-guerra esperava dela apenas calma e procriação, aguardava-se um futuro incrível para a pequena Elise: uma excelente educação, passando pela faculdade para garotas Barnard College, um posterior bom casamento e a vida que seguia em bom tom. Mas contrariando todo tipo de expectativa Elise detestava as aulas em Barnard, frequentava lugares onde se encontravam todo de tipo de grupo boêmio da época, tais como beats, artistas, músicos de jazz e inconformado com o velho e falido sonho americano.
Aos treze anos Elise teve um acidente assando brownies para colegas de escola, sendo que boa parte do cabelo e sobrancelhas foram perdidos, depois disso nunca mais se achou bonita e tinha dificuldades em aceitar a sua aparência. Talvez foi nesse momento que surge nela uma certa autopiedade e obsessão em relação à parceiros(as) e como ela deveria se comportar de forma submissa em relação ao outro, fosse como amiga ou amante.
Quando entrou em Barnard aos dezoito anos ela já não tinha intenções de alimentar a figura de moça comportada esperada por sua família. Engatou um relacionamento com o jovem professor de filosofia Donald A. Cook, que iludido com a vida adulta praticava alguns experimentos psicoterapêuticos com seus alunos, os confortando com versos do poeta William Butler Yeats. Como bem descreve Joyce Johnson sobre Elise e Donald (no livro com a alcunha de Alex Greer) “Of course she fell in love with him” (Johnson, 1983, p. 58).
Elise via em Donald uma figura de rapaz mais velho e inteligente, diferente dos garotos que conhecia nos grupos de jovens judeus, nas festas que ambos frequentavam, conta Skir em Women of the beat generation. Donald sabia aproveitar o que Elise tinha para oferecer, estava em um casamento falido e tinha um filho para criar. Elise se saia muito bem como ajudante, fosse na cama ou na cozinha de sua casa. Mais tarde ele iria dar um novo rumo para ela, apresentando Allen Ginsberg, que havia sido seu colega de classe em Columbia, se tornando uma figura recorrente na poesia de Elise.
A POESIA DE ELISE COWEN
“And Isn’t amazing that suicide is illegal when society is so indifferent to human life?” (Johnson, Minor Characters, 1983, p. 65).
Elise Cowen sai da casa dos pais com apenas dezenove anos, idade que na época era comum uma garota estar preparando seu próprio casamento, além de estar finalizando o curso superior. Foi também nesse período que aconteceu o primeiro “acidente” de tentativa de suicídio. Quando questionada pela amiga Joyce Johnson sobre o ocorrido, Elise afirma que teve um acidente com cacos de vidro na banheira e, indignada sobre o médico achar que foi uma tentativa de suicídio, ela afirma: “Não é interessante que o suicídio seja ilegal em uma sociedade tão indiferente à vida humana?” (Minha tradução, Johnson, 1983, p. 65).
O caderno deixado por Elise Cowen tem o estilo de um bloco de notas comum. Tony Trigilio descreve-o como pequeno. Na reprodução do texto, o organizador faz o possível para usar a harmonia escolhida pela poeta e em alguns poucos casos reproduz um fac-símile das páginas do caderno.
O caderno não contém apenas poemas, mas possui ainda algumas anotações, tais como fragmentos de possíveis cartas para pessoas próximas como a Betty Gibbs, mãe do amigo Keith Gibbs, e Leah, sendo essa última carta apenas um rascunho riscado. Elise também copia fragmentos, como um trecho de uma poesia de Emily Dickinson, uma de sua maiores influências e figura presente não apenas na estética/forma dos seus poemas, mas também nos temas que envolvem sentimento e natureza. A própria Dickinson figura em duas ou três poesias, como em “Emily White Witch of Amherst”.
“Sonho” é o segundo poema do livro de Cowen e um dos poucos que brinca com a prosa. O poema remete ao estilo espontâneo dos beats, principalmente de Allen Ginsberg, talvez bastante influenciada por Kaddish, obra que ela datilografou para Ginsberg durante o ano de 1959, justamente quando iniciava a escrita desse caderno. Nesse poema existem muitos paralelos com Kaddish: além da forma, a temática perturbada e suicida de Elise, muito próxima da da mãe de Ginsberg, que é o principal tema do livro dele.
Elise já havia realizado algumas tentativas de suicídio, e sua rebeldia incentivava os pais judeus a a colocarem em clínicas psiquiátricas. O conteúdo onírico, sendo praticamente um pesadelo, deixa clara a relação difícil de Elise Cowen com os pais, bem descrita por Joyce Johnson em Minor Characters: “Sonho” destaca uma característica que se torna marcante após a leitura de todos os oitenta e três poemas: a forma com que Elise costuma atuar ou performatizar a questão do gênero na sua poesia. Ela abusa das metáforas e figuras de linguagem com o fito de representar a ambiguidade do órgão sexual. Usando a palavra “gash”, é possível tanto se referir a uma fenda aberta quanto a uma conotação grosseira para vagina.
Todos os poemas abaixo têm minha tradução:
Sonho (p. 4)
Não consigo lembrar de tudo.
Ar bem limpo. Estou com Mamãe &
Papai. Estão me levando ao médico
já que estou doente, neurótica. Estão
enojados de mim, cansados durante todo
o sonho, especialmente Papai como na
vida (?) real. Depois de falar com o médico,
cujo rosto não lembro, ele, o
médico, senta na cama & retira uma
atadura de sua longa perna, mostrando
uma fenda a secar.
“Quero vestir e sair” também possui uma lírica ao estilo beat. O poema tem ritmo, o famoso “tudoaomesmotempoagora” proposto por Jack Kerouac. Mas o que mais encanta nesse poema simples é forma como Elise passeia por dois assuntos muito caros a sua poesia: a liberdade, a busca de autonomia como mulher e a morte. Há um episódio narrado tanto por Joyce Johnson como por Leo Skir, em que Elise havia conseguido um bom emprego como datilógrafa em um estúdio conhecido. Em uma fase boêmia, ela se atrasava e às vezes chegava bêbada ou drogada, até que foi demitida do emprego. Inconformada com a situação, afinal não morava mais com os pais, Cowen chegou cedo na empresa no dia seguinte, sentou-se imponente diante da máquina de escrever e exigiu uma resposta sobre a demissão, o que resultou em ter de sair do local escoltada pela polícia.
Quero me vestir e sair (p. 9)
Quero me vestir e sair e subir em um ônibus pegar um cheque e registrar um
seguro desemprego
Corpo, porque esse sentimento engraçado – pavor
De quê –
Morte? Morte tão desejada?
“Morte da mente” – paz – não, a dissolução a sete palmos
A morte é um assunto frequente na poesia de Elise Cowen, pelo menos foi um tema recorrente durante o ano que manteve esse caderno publicado por Tony Trigilio. Alguns dos poemas mais conhecidos de Cowen – os que mais circulam na internet, como “Sem Amor” e “Morte, estou chegando” – tem imagens sobre a morte tão potentes que geralmente são associados como os derradeiros poemas de Elise. Como era uma grande adepta de escrever quase diariamente em seu caderno, é praticamente impossível que o poema em que se despede das pessoas mais próximas seja o último.
Joyce Johnson também relata que Elise, sem salário fixo, acabava por viver muitas vezes em em lugares de condições precárias e pouco iluminados. Referências a uma masmorra, escura e fria podem ser associadas aos períodos de depressão, mas também aos ambientes em que Elise acabava por viver. Nota-se, por exemplo, uma sequência de poemas sobre baratas, quase kafkianos, no quais ora as colocava como dispositivos de divagação, ora as aproximando como companheiras, tratando-as de forma afetuosa, enquanto, em outros momentos, apenas questionando as motivações que levariam uma barata a sobreviver nesse mundo.
Às vezes em minha masmorra há algo que rasteja (p.12)
Em algum lugar nesta masmorra
Algo rastejante
Uma lagarta eriçada
Uma vir-a-ser borboleta
Ficará desapontada
Se não houver dia para ver?
Se tornar-se uma mariposa?
Que triste visão
Pois não há nada além dessas paredes
Sou o único clarão
Morte, pequena mariposa cinza (p. 13)
Morte, pequena mariposa cinza
Obrigada pela corrente curta e gelada
Olhos fechados
Frio
Tentei (p. 39)
Tentei
Tenho tentado
Tentarei de novo
Apesar da fraqueza do meu ser
Não há nada digno
Além de Deus & você
E deus foi dormir
Morte, estou chegando (p. 105)
Morte, estou chegando
espere por mim.
Sei que estará
Na estação de metrô
Equipada com galochas, capas, guarda-chuva, vovó
e sua única e simples resposta
para cada sentido
Instituição incorruptível
Desmancha-prazeres cautelosa de sinais
Ouça o que ela diz
“Há uma passagem através das cabanas brancas”
Sem Amor (p. 116)
Sem amor
Sem compaixão
Sem inteligência
Sem beleza
Sem humildade
Vinte e sete anos são suficientes
Mãe – tarde demais – anos de mesquinhez – me desculpe
Papai – O que houve?
Allen – Me perdoe
Peter – Jovem rosa sagrada
Betty – Tal bravura feminina
Keith – Obrigada
Joyce – Garota tão bela
Howard – Querido se cuide
Leo – Abra as janelas e Shalom
Carol – Faça acontecer
Me deixem agora por favor –
– Por favor me deixem ir
Uma barata (p. 14)
Uma barata
Rastejou para dentro
Do meu sapato
Gostou da fragrância da escuridão
Uma barata
Escalou
Meu sapato
Longe do frio & luz
Arrasto minha mão
A
Seguindo
Barata
O melhor que posso fazer por você
É compará-la a o bronze
E judeus
Não é bem-vinda
a usar o meu sapato
Como descanso de viagem
Óbvio
Da sombra da minha mão
Você sempre volta
pelo chão
Mais? – olhe –
Você perdeu uma antena
Eu trato você
seriamente afetiva como um bebê
Em Poems and Fragments Elise faz referências a outros(as) amantes, mas a figura mais predominante é a de Allen Ginsberg, provavelmente pela proximidade dos períodos em que ela escreveu o caderno e o em que conviveu com ele. Em “Sentada com você na cozinha” ela basicamente faz um carinho, um momento de ternura em meio ao turbilhão de sentimentos que vivia. Relata uma cena na cozinha, um sentimento de saudade e não deixa de brincar com os gêneros. No inglês usa o artigo ‘The’ como “a beautiful, regal, perfect word” para reforçar o indefinível, como se talvez se tratasse dela e de Allen, algo sem definição, fora dos padrões.
Sentada com você na cozinha (p.23)
Estar com você na cozinha,
Conversando tranquilamente sobre qualquer coisa
Tomando chá
Amo Você
“O/A” é bela, suntuosa, palavra perfeita
Oh, queria seu corpo aqui
Com ou sem poemas barbados
Na introdução de Poems and Fragments, Tony Trigilio relata todos os pormenores do seu trabalho tentando editar a poesia de Elise Cowen e um deles foi que ele acreditava que Leo Skir era o único detentor dos últimos poemas de Cowen. É inegável a importância de Leo na divulgação da obra poética da escritora, graças a ele muitas poesias de Elise – que nunca mostrava para ninguém o seu trabalho – foram publicadas logo após a sua morte. Mas por outro lado Leo fazia modificações estranhas aos poemas e um deles foi “O corpo é uma coisa humilde” modificado para “A mulher é uma coisa humilde” (Body versus Lady). Ambas as palavras dão uma conotação forte ao poema que dá o tom – de maneira tão certeira e rápida – sobre noção de lugar/espaço e corpo da mulher no fim dos anos 1950, em um momento protofeminista e necessário.
O corpo é uma coisa humilde (p. 25)
O corpo é uma coisa humilde
Feito de morte & água
A moda é vesti-lo simples
E que a mente seja o molde
CONCLUSÃO
If you wished to live free, you could not also expect to live wel. (Joyce Johnson, Minor Charcaters, 1983, p. 63).
Quando se sabe que o que sobrou da obra de Elise Cowen é apenas um caderno pequeno, com anotações e oitenta e três poesias pode-se muito bem pensar que o estudo se esgota rápido e se fecha no curto ciclo da vida da escritora. Seria um engano trabalhar com tal afirmação pois a obra de Elise e a sua misteriosa vida de vinte e oito anos são um material vasto e prolífico.
Escrevendo e fazendo tentativas de tradução sobre apenas dez poemas escolhidos de Poems and Fragments é inegável sentir que seria possível passar anos se debruçando por uma obra tão repleta de indícios e ousadia sobre a subjetividade feminina na literatura. Os poemas de Elise são profundos e certeiros como de qualquer poeta da época como, por exemplo, a contemporânea Sylvia Plath. Assuntos como família, sexualidade e posição diante de uma sociedade são visíveis e profundamente tratados em versos curtos. Elise Cowen ainda tem muito para mostrar ao mundo mesmo através dos seus cadernos. Resta saber se alguém está disposto a ouvi-los ou lê-los.
REFERÊNCIAS
Cowen, Elise (2014). Poems and Fragments. Boise: Ahsahta Press.
Di Prima, D. (2013). Memórias de uma beatnik. São Paulo: Campos.
Grace, N. & Johnson, R. (2001). Girls who Wore Black; Women Writing the Beat Generation. New Brunswick: Rutgers University Press. [2003]. [2002].
Johnson, J. (1999). Minor Characters. Introd. Ann Douglas. New York: Penguin. [1983].
Knight, B. (1996). Women of the Beat Generation. Berkeley, Calif.: Conari Press.
Skir, Leo (1996). Elise Cowen: a Brief Memoir of the Fifties. In: Women of the Beat Generation: the Writers, Artists and Muses at the Heart of the Revolution. Ed. By Brenda Knight. Berkeley, Calif: Conari Press.
Willer, C. (2009). Geração beat. Porto Alegre: L&PM.