Autor: Auta de Souza
Título: O Horto
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 03/02/2006
O HORTO
Auta de Souza
1- sensuais – feminino
MORENA
A moça mais bonita de minha terra
Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!
Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!
Que doces encantos
No brilho fulgente,
No brilho dolente
De teus olhos santos!
E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando.
Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!
***
POBRE FLOR !
Deu-m’a um dia antiga companheira
De tempinho feliz de adolescente;
E os meus lábios roçaram docemente
Pelas folhas da nívea feiticeira.
Como se apaga uma ilusão primeira,
Um sonho estremecido e resplendente,
Eu beijei-lhe a corola, rescendente
Inda mais que a da flor da laranjeira.
E como amava o seu formoso brilho!
Tinha-lhe quase essa afeição sagrada
Da jovem mãe ao seu primeiro filho.
Dei-lhe no seio uma pousada franca…
Mas, ai! depressa ela murchou, coitada!
Doce e mísera flor, cheirosa e branca!
Angicos – 1896
***
TRANÇA LOURA
A linda trança dourada
Que eu vi domingo à noitinha,
Guardava a maciez amada
Das penas de uma andorinha.
Recordava uma esperança
Bordada com fios d’ouro…
Ó doce e mimosa trança,
Meu raio de sol tão louro!
Ventura, sonho, alegria,
Tudo se resume ali…
Para tecer serviria
O ninho de um colibri.
Era já noite, e, no entanto,
A loura madeixa olhando,
Cuidei que, cheio de encanto,
O dia vinha raiando.
Deus fez-la numa redoma
De beijos, de luz, de amor,
E deu-lhe o sagrado aroma
Das madressilvas em flor.
Ah! sobre aqueles risonhos,
Dourados, macios folhos,
Quem dera embalar meus sonhos,
Quem dera cerrar meus olhos
***
AS MÃOS DE CLARISSE
Causam-me tantos martírios
As tuas mãos adoradas,
Com estes dedos de fadas,
Tão formosos e pequenos…
Que eu chamaria dois lírios,
Se houvesse lírios morenos!
***
VERSOS LIGEIROS
Eu acho tão feiticeira
A Noemita da esquina,
Com o seu recato de freira,
Muito morena e franzina;
Que fico toda encantada
Quando na Igreja a contemplo,
Pois cuido ver uma fada
Ajoelhada no Templo.
Doce nuvem cor de rosa
Parece que a Deus se eleva.
D’aquela boca mimosa,
D’aquele olhar cor de treva.
É sua prece que voa,
Indefinida e tão mansa,
Como um hino que ressoa,
Como uma voz de criança
A trança de seu cabelo,
(Como ela é negra, Jesus!)
Semelha um lindo novelo
Tão preto que já reluz.
Tem a boquinha vermelha
Como uma rosa entreabrindo…
É um favo de mel de abelha
Aquela boca sorrindo!
Minh’alma nunca se cansa
De vê-la assim, tão divina,
Sempre formosa e criança
Com seu perfil de menina.
As vezes, eu olho-a tanto,
Com tanta veneração,
Que fico muda de espanto,
Depois da contemplação.
É verdade que não faz
Mal nenhum fitá-la assim…
Meu Deus! se eu fosse rapaz
O que diriam de mim?!
Macaíba, 1897.
2- amor – masculino
MINH’ALMA E O VERSO
Não me olhes mais assim… Eu fico triste
Quando a fitar-me o teu olhar persiste
Choroso e suplicante…
Já não possuo a crença que conforta.
Vai bater, meu amigo, a uma outra porta.
Em terra mais distante.
Cuidavas que era amor o que eu sentia
Quando meus olhos, loucos de alegria,
Sem nuvem de desgosto,
Cheios de luz e cheios de esperança,
N’uma carícia ingenuamente mansa,
Pousavam no teu rosto?
Cuidavas que era amor? Ah! se assim fosse!
Se eu conhecesse esta palavra doce,
Este queixume amado!
Talvez minh’alma mesmo a ti voasse
E n’um berço de flor ela embalasse
Um riso abençoado.
Mas, não, escuta bem: eu não te amava.
Minha alma era, como agora, escrava…
Meu sonho é tão diverso!
Tenho alguém a quem amo mais que a vida,
Deus abençoa esta paixão querida:
Eu sou noiva do Verso.
E foi assim. Num dia muito frio.
Achei meu seio de ilusões vazio
E o coração chorando…
Era o meu ideal que se ia embora,
E eu soluçava, enquanto alguém lá fora
Baixinho ia cantando:
“Eu sou o orvalho sagrado
Que dá vida e alento às flores;
Eu sou o bálsamo amado
Que sara todas as dores.
Eu sou o pequeno cofre
Que guarda os risos da Aurora;
Perto de mim ninguém sofre,
Perto de mim ninguém chora.
Todos os dias bem cedo
Eu saio a procurar lírios,
Para enfeitar em segredo
A negra cruz dos martírios.
Vem para mim, alma triste
Que soluças de agonia;
No meu seio o Amor existe,
Eu sou filho da Poesia.”
Meu coração despiu toda a amargura,
Embalado na mística doçura
Da voz que ressoava…
Presa do Amor na delirante calma,
Eu fui abrir as portas de minh’alma
Ao verso que passava…
Desde esse dia, nunca mais deixei-o;
Ele vive cantando no meu seio,
N’uma algazarra louca!
Que seria de mim se ele fugisse,
Que seria de mim se não ouvisse
A voz de sua boca!
Não posso dar-te amor, bem vês. Meus sonhos
São da Poesia os ideais risonhos,
Em lago de ouro imersos…
Não sabias dourar os meus abrolhos,
E eu procurava apenas nos teus olhos
Assunto para versos.
Fonte: Sousa, Auta de. Horto. Poesia. 5a ed. Natal, Fundação José Augusto, 2001. 275 p.