O GUARANI


Autor: José de Alencar
Título: O GUARANI
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 09/02/2006

O GUARANI

 

 

José de Alencar

 

 

A Prece

 

 

Parte I

 

A tarde ia morrendo.
O Sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.
Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; o ouricuri[1] abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde.
Era a Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que esvazando-se[2] pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.
O urutau[3] no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas[4] de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do angelus.
A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.
Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.
De repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde, era um dos aventureiros que tocava a Ave-Maria.
Todos se descobriram.
D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram agrupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distancia.
O Sol com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de antigo cavalheiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.
Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim o Sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.
(…).
 
Fonte: Alencar, José de. O Guarani. Rio de Janeiro, Tecnoprint.



[1] Ouricori – palmeira de até dez metros, nativa do Brasil.
[2] Esvazando-se – esvaziando-se. (sinônimo). Nota da Editora.
[3] Urutau – pássaro noturno; chora-lua, mãe-da-lua.
[4] Crastas – claustros. Nota da Editora.