O FEMININO HELENA: MÚLTIPLAS VOZES LITERÁRIAS – Dina Maria Martins Ferreira


 

Dina Maria Martins Ferreira

 Universidade Estadual do Ceará

Université Paris V, Sorbonne

 
 
RESUMO: Este estudo se configura pela hibridez de áreas de estudos da linguagem, já que leva em conta os estudos linguísticos e literários sobre gênero feminino em torno do mito de Helena, o eterno feminino. Faz-se um percurso analítico desde o século VIII a.C. na Grécia antiga e chega-se ao Brasil contemporâneo. Nessa jornada poética, senão filosófica, discute-se se é pertinente aceitar o conceito de gênero feminino por vozes masculinas, formadores de estereótipos falocráticos, ou se o conceito de gênero feminino se constitui apenas por performatividades da mulher.
 
PALAVRAS-CHAVE: Feminino; Mito; Estereótipo; Vozes masculinas
 
ABSTRACT: This study sets the hybridity of areas of language and literature studies, as it takes into account the linguistics and literary studies about feminine gender concerning the myth of Helen, the eternal feminine. It is an analytical survey since the VIII Century B.C., in ancient Greece, until contemporary Brazil. In this poetic journey, we discuss if it is appropriate to accept the notion of feminine gender by male voices, forming phallocratical stereotypes, or if the concept of feminine gender can only consist of  women’s performances.
 
KEYWORD: Feminine; Myth; Stereotype; Male voices
 
MINICURRÍCULO: Pós-doutora pela Université Paris V, Sorbonne e Unicamp (2010), é graduada pela Universidade de Campinas, Unicamp (2002-2003) e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ (1995). É docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará; membro pesquisadora do Centre d’Études sur Les Actuels et Quotidien, Université Paris V, Sorbonne. É autora de quatro livros, organizadora de quatro outros, capítulos de livros, artigos nacionais e internacionais.
 
 
MÚLTIPLAS VOZES LITERÁRIAS
 
Dina Maria Martins Ferreira
 
Universidade Estadual do Ceará
Université Paris V, Sorbonne
 

  1. Considerações

Este estudo é resultado de estudos sobre o feminino e mitologemas na literatura greco-latina (BRANDÃO, 1989)[1]. Aparentemente não teria ligação com os estudos atuais sobre o que, por exemplo, Hélène Cixous (apud JEANNET, 2012) e
 
Luce Irigaray (1994; 1994) chamam de “feminismo da diferença”, pois, como poderão observar, não vai se travar nenhuma luta ferrenha em prol do feminismo nem tratar especificadamente de escrita feminina. Muito pelo contrário, pois são as vozes masculinas literárias que constroem o feminino Helena.
A escolha do título “O feminino Helena: múltiplas vozes masculinas” vem justamente nos possibilitar viajar não só pelo território geográfico-simbólico de Helena como também pelos territórios das vozes dos poetas-masculinos construindo o feminino “helena”, uma representação do ‘eterno’ feminino no universo mítico masculino, cujas contingências e performatividades são da seara do sistema patriarcal ‒ um devir de helenas que não têm nem início nem fim, habitando as brumas dos mitologemas. Nessa viagem literária de ‘helenas’, mesmo enaltecida ou enegrecida, o que o movimento feminista contemporâneo (século XX e XXI) chama de gênero feminino é apagado, devido não ser construído pela performatividade feminina.
 

  1. Viagem literária no espaço geográfico-simbólico

Mesmo que tenhamos a preocupação de ‘localizar’ o geográfico, este local no atlas é de natureza simbólica. Quando me refiro à noção do simbólico estarei no espaço de mitologias gregas, quando o caso, que se constroem na sacralidade do símbolo. E por tal aporte sacralizador torna-se um signo denso e durável, na medida em que está sempre em equivalência com outros sentidos de vida (BARTHES, 1989).  Segundo Brandão (1986, p. 38), a própria etimologia do termo símbolo já ratifica sua densidade de sentido, ou seja, o vocábulo grego súmbolon (de sun = junto, com e ballein = atirar, lançar) tem o sentido de
(…) ‘lançar com’, arremessar ao mesmo tempo, ‘com-jogar’. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste, confronto, permitia aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de equivalência (grifo nosso).
 
Apesar de estarmos aventando ao símbolo um caráter sacralizador, durável e equivalente, ele não está ontologizado no essencialismo; até, muitas vezes, está agregado ao simbólico, pois não se nega à morfologia cultural de cada emergência simbólica. O que se propõe é entender a construção do ‘gênero helena’ pela percepção de que
 
(…) os símbolos são diversamente vividos e valorizados: o produto dessas múltiplas atualizações constitui em grande parte os ‘estilos culturais’ (…) [e] como formações históricas, essas culturas não são mais intercambiáveis; estando já constituídas em seus próprios estilos, elas podem ser comparadas no nível das Imagens e dos símbolos (ÉLIADE, 1996, p.  173) (grifo nosso).
 
E Haesbaert (2006, p. 40) nos auxilia a entender porque estamos designando essa viagem de uma geografia simbólico-literária. Para esse autor nada é mais coerente do que tratar território pela vertente cultural ou “simbólico-cultural: [que] prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido”; Ou seja, a dimensão simbólica habita um espaço social organizando-se pela historicidade e geograficidade, quesitos de territorialidade. Vale a observação que historicidade e geograficidade podem ser valores construídos no próprio território ou designados por outro território ‒ neste caso estaremos ainda em viagem, mas já fora da Grécia Antiga, pois os valores da mitologia grega podem ou não ser apropriados por outro território, tal como Itália, Alemanha, Brasil ‒ os territórios que também vamos visitar.
Apresentamos o início de nossa viagem com um guia-atlas: primeiro a localização histórico-geográfica dos poetas masculinos[2], depois o percurso de Helena pela literatura mais antiga. Vale a ressalva de que reduzimos em muito nossa viagem, pois só na literatura greco-romana haveria mais de 34 obras em que Helena se presentifica.
Onde bradam as vozes dos poetas-masculinos gregos:[3]
 
 
 
Figura 1
www.atlas.google.com.br
 
Legenda:
Geografia das vozes dos poetas e suas obras:
Anatólia,                              Homero,               Ilíada e Odisseia (séc. VIII a.C.)
Ilha de Kíos,                        Hesíodo,               Os trabalhos e os dias e Teogonia (séc.VIII e                                                                                                           VII a.C.)
Ilha de Lesbos,    Safo,                      Poemas, L.I (séc. VII a.C.)
Éfeso,                                    Hipônax,              Fragmentos (séc. VII a.C.)
Ilhas Cíclades,     Semônides
de Amargós,         Sátiras às Mulheres (séc. VII e VI a.C.)
Atenas,                  Ésquilo,                 Oréstia (séc.V e IV a.C) e
Eurípedes,            Andrômaca, Orestes, Medeia, Helena                                                                                                         (séc.V e IV a.C)
 
Peregrinação literário-simbólica de Helena:
Troia
Ilha de Ítaca
Micenas
Esparta
Creta
 
 

  1. Helena e o feminino

E já tendo a contextualização geográfico-histórico-simbólico, é na e pela linguagem que se os poetas masculinos constroem as suas helenas, senão os estereótipos de representação feminina. Estamos chamando novamente a atenção para os estereótipos, devido ao fato de não haver performativos femininos nessa caminhada. No entanto, se os estereótipos fossem considerados gêneros, teríamos quatro subgêneros ‒ feminino-deusa; feminino-heroína; feminino-traidora-prostituta; e feminino-em-paz ‒, todos sob a égide do hemistíquio de Ésquilo ‒ “sofrer para compreender”.
 
3.1. Feminino-deusa
A primeira Helena se constitui em divindade creto-micênica. Sua existência foi comprovada em Atenas e na Ilha de Creta e outros lugares como Rodes etc, conforme atestou o geógrafo Estrabão (63 a.C.-24 a.C., grego da Amaseia, atual Turquia). Era uma deusa ctônica da vegetação, que sempre renascia todo ano. Tanto que Apolo na tragédia euripidiana Orestes confirma a tradição divina de Helena:
 
Porque, filha de Zeus, ela deve viver como imortal,
E com Cartor e Pólus entará nas profundezas do éter,


como guardiã da vida dos navegantes [4]
 
(Or.1635-1637)
 
E Homero a apresenta na Ilíada, quando ela sobe as escadarias em Troia para ser apresentada ao Rei Príamo, pai de Páris, o príncipe de Troia, encantado por sua beleza a sequestra de seu marido Menelau, rei de Esparta:
 
Não, não é uma nêmesis [“uma punição”] que troianos e aqueus de belas grevas
[sofram tantas desgraças,
há tanto tempo, por semelhate mulher ()
Quando vista de perto ela se assemelha  terrivelmente às deusas imortais …     
(Il. III. 156-158)
 
Esse trecho se refere ao fato de que Zeus engendraria uma filha, Helena, de tal modo que provocasse uma guerra entre atual Ásia e Europa, de modo a trazer o equilíbrio cósmico, os homens mortais estavam em grande alarido. E Helena seria o pretexto para deflagar o conflito e Aquiles agiria. Esta mesma prerrogativa se repete em Helena de Eurípides, não só ratificando o papel do feminino que deve ser punido, como também transformando esse papel punidor em glórias ao masculino (Aquiles):
 
Além do mais, a estes infortúnios acrescentaram-se
outros desígios de Zeus: a eclosão da guerra entre os helenos
e os desventurados troianos, a fim de aliviar a Mãe-Terra
de uma pletora impertinente de mortais e enaltecer
o mais destemido dos gregos.
(Hel. 36-41)
 
Helena como a deusa da punição, já constrói a representação estereotípica de que tudo que acontece é culpa da mulher. Não é só o hemistíquio de Ésquilo que compõe o feminino-punição, Eurípedes é insistente nessa prerrogativa na obra Medeia:
 
De todos os seres viventes e pensantes, somos nós, as mulheres,
as criaturas mais sofredoras. Primeiro, somos obrigadas
a gastar muito dinheiro para comprar um marido
e (além disso, a) dar um senhor ao nosso corpo, mal
ainda mais grave que o primeiro
E vem o problema mais sério: será ele bom ou mau?
Pois é uma vergonha para as mulheres abondonar o marido
sem lhes ser possível repudiá-lo.
(Med. 230-237)
 
3.2. Feminino-heroína
E, na condição de heroína, mesmo isenta de culpa pelo rei de Troia, Príamo, Homero não deixa Helena livre do sentimento de que merece punição. Helena se amaldiçoa e se julga digna de castigo:
 
Diante de ti, dileto sogro, sinto-me constrangida e temerosa,
Antes me tivesse levado a morte cruel do que ter seguido
teu filho até aqui, abandonando meu tálamo, meus parentes,
minha querida filha e minhas amáveis companheiras.
(Il. III. 172-175)
 
Na Odisseia, Helena minora, de um lado, sua culpa de mulher espartana em diálogo com Telêmaco ‒ conta sua experiência em Troia com a entrada de Ulisses e o “cavalo de Troia”, o famoso “presente de grego” ‒, e, de outro, não deixa de glorificar a superioridade masculina:
 
 Nesse tempo, enquanto outras mulheres troianas lamentavam-se em altas vozes,
meu peito, no entanto, se alegrava, pois meu coração já se inclinara
a voltar para casa, e lamentava a loucura em mim,
provocada por Afrodite, quando para lá me arrastou de minha terra pátria, 
deixando minha filha, meu tálamo, meu esposo,
que não é inferior a ninguém, quer no espírito, quer na beleza.
(Od. IV. 259-264)
 
A superioridade masculina também é enaltecida pelo próprio feminino Helena, tanto que na Ilíada, a mulher heroína necessita, para ter tal atributo, de um marido herói, Menelau, já que Páris se enfraquece diante dos horrores da guerra de Troia:
 
Se os deuses, todavia, nos reservaram estes horrores,
porque, ao menos, não sou mulher de um homem destemido,
capaz de sentir a repulsa e as múltiplas injúrias dos homens?
Páris, no entanto, não tem persistência alguma e jamais aterá.
E creio que, em breve, ele verá as consequências.
(Il. VI, 349-353)
 
Helena se faz tão heróina que enfrenta Afrodite, acusando-a do feitiço recebido para ter abandonado Menelau, rei de Esparta. Manda Afrodite deitar com Páris:
 
Vai deitar com ele. Abandona a companhia dos deuses,
deixa de escalar o Olimpo. Aprende a te atormentar por causa dele,
vela por ele, até que o mesmo te faça sua esposa e talvez sua escrava! 
(Il. III, 406-409)
 
Mas Helena-heroína, rapidamente se transforma em anti-heroína por Hesíodo, em Os trabalhos e os dias:
 
Outros, conduzidos em navios, para além do abismo marinho,
para Troia, por causa de Helena de linda cabeleira,
lá foram envolvidos pela morte que tudo finaliza.
(Trab. 164-166)
 
3.3. Feminino-adúltera-traidora-prostituta
E de anti-heroína Helena passa a adúltera e traidora, em Andrômaca de Eurípedes:
 
Nenhuma jovem espartana, mesmo que o desejasse,poderia permancecer virtuosa:
desertando a casa paterna, coxas nuas e peplos esvoaçantes,
participam com os adolescentes
dos exercícios nos estádios e palestras, hábitos a meu ver intolerávies.
É necessário, após isso, admirar-se de não formardes esposas honestas?
(And. 595-601)
 
Realmente Eurípides não perdoa Helena, porquanto não a isenta de um segundo julgamento que a condena à morte. A impura mulher em Orestes  deve ser condenada:
 
Se nosso punhal se erguesse contra uma mulher honesta,
seria um crime abominável. Helena, todavia, pagará pelaGrécia inteira,
cujos pais matou, cujos filhos fez perecer, cujas mulheres privou de seus maridos.
Erguer-se-á um grito de júbilo e as chamas dos altares
(…)
por termos derramado o sangue de uma mulher infame.
(Or. 1132-1140)
                                                                                                                         
Ésquilo também se insurge contra Helena, na trilogia Oréstia. Aliás é impossível em tragédia salvar alguém, não?
Quem, pois, senão um ser invisível que na sua presciência,
fazendo-nos falar a língua do destino, deu este nome tão verdadeiro
àquela que, objeto de contestação, o esposo reclama, lança na mão,
esta Helena justamente cognominada perdição de navios,
perdição de homens, perdição de cidades
(Agam. 681-688)
 
Esta mulher traidora ascende a Hesíodo, em Os trabalhos e os dias, pois conclama que /quem confia em mulher está confiando em ladrões/ (Trab. 375), e também na Teogonia:
 
E quando, em vez de um bem, [Zeus] criou este mal tão belo,
conduziu-a (Pandora) para onde estavam os demais deuses e homens.
                      (…)
(…) Dela se originou
a espécie maldita das mulheres, flagelo terrível instalado
entre os homens mortais…
(Teog.585-588; 590-592)
 
E um pouco mais ao sul do continente grego, nas Ilhas Cíclades, Simônides de Amorgós também não perde a vez de satirizar Helena em Sátira às mulheres:
 
Zeus criou com efeito este imenso flagelo
e a ele nos prendeu com liame indestrutível: o Hades
recebeu, por isso mesmo, os que lutram por causa deuma mulher.
(Sat. mulh. 115-118)
 
Mas a misogenia alcança o seu épice com Hipônax de Éfeso, cujo ditado popular circula até hoje entre homens machistas:
 
Há dois momentos em que a mulher nos proporciona um prazer supremo,
no dia do casamento e quando a levamos à sepultura.
(Frag. 29 Bergk)
 
3.4. Feminino-em-paz
Diante de tanta misogenia, parece-me que até a voz patriarcal-poética se cansa, A este cansaço chamo pelo feminino-em paz, porquanto Eurípedes desvanece Helena em éter:
 
Todos vós, frígios e aqueus, como sois infelizes. As maquinações de Hera
fizeram que, por minha causa, durante tantos anos morrêsseis
nas margens do Escamandro! Julgáveis que Páris, possuísse
uma Helena e ele no entanto nunca a teve. Agora, após cumprir
durante todo esse tempo o que me foi pelo destino imposto,
retorno para junto de meu pai, nos altos dos céus.
(Hel. 608-613)
 
Já Goethe a celebra em Fausto (1806 [1981]), nas serenas camadas do Éter, vivendo com Aquiles, na foz do Danúbio, eternamente ditosa na Ilha Branca:
 
Eu [Helena], como sombras, vinculei-me a ele, outra sombra,
Um sonho foi, dizem-no as próprias palavras;
Desmaio. E sombra torno-me eu, para mim mesma.
(Fausto, Ato III)
 

  1. As helenas contemporâneas: equivalências simbólicas

Contudo, parece que Helena não descansa no éter da Ilha dos Bem-Aventurados, continua até hoje a provocar pulsões (séculos XIX, XX e XXI), sejam elas misóginas ou não, sejam irônicas, suaves e deleitosas ‒ mas sempre pulsão na voz do masculino. Como diz Brandão (1986, p. 121), “Curioso é que entre muitos poetas modernos Helena continue sua caminhada, às vezes parecendo até que o sangue de Troia nunca foi purgado!”. Continua o hemistíquio esquiliano “sofrer para compreender”!
O poeta neogrego Giorgos Seféris (apud PAES, 1986, p. 169) a transforma em sombra, talvez querendo lhe dar paz ou até culpando-a da guerra, quiçá?:
 
E em Troia?
Nada em Troia – apenas um fantasma.
Assim os deuses o quiseram.
E Páris se deitou com um sombra, como se ela fosse um ente sólido,
e por Helena durante dez anos fomos massacrados.
(Diário de Bordo III)
 
Na comédia Abel e Helena (título é um trocadilho) de Artur de Azevedo (1877), Helena tem um rapto diferente. Helena deveria ir para um convento, pois seu padrinho Nicolau (que a pretendia para esposa) a surpreende com o bem-amado Abel. E este, disfarçado de frade, rapta Helena. Na fuga, já no trem em movimento, Abel tira o capuz, os óculos e a barba e grita para a apoplético Nicolau:
 
Ó Nicolau, triste papel
fizeste em cena:
cá levo Helena…
Eu sou Abel!
(Ato Terceiro, Cena IX)
 
Já o poeta e ensaísta Gilberto Mendonça Telles, no poema Ubi Troia Fútil, em quatro versos, euripidizou Helena, em Sociologia Goiana (1982, p. 111):
 
Helena de um
Helena de dois
Helena de trois
Helena de trottoir
 
Enfim, parece que o feminino se eterniza em mito e poesia, pela voz literária-masculina de Goethe em Fausto:
 
Têm os filólogos aqui
Enganado a si mesmos como a ti.
Se é mitológica, é única a mulher;
Recria-se o poeta como lhe prouver.
Não envelhece, nem fica madura,
Mais sedutora, sempre, sua figura.
Raptam-na, moça, idosa, ainda é do amor a meta;
Pois basta! Não se atém ao tempo o poeta.
 
Mas ainda o feminino não é o agente de sua representação, é o Alter masculino que a constrói, seja belamente, seja ironicamente.
 

  1. Representação do feminino

Mesmo em uma viagem que se iniciou em tempos primevos, a voz feminina deu o seu brado: Safo, a poetiza da ilha de Lesbos. Talvez um marco para o movimento feminista em que a mulher é agente de suas escolhas. A história de Safo é envolta em lendas e muitas controvérsias devido à Escola para Moças que fundou, onde se ensinava poesia, música e dança somente a mulheres. Safo amava todas as suas “amigas” e não alunas (daí o termo lesbianismo, devido sua homosessualidade), e principalmente seu grande amor e amante Ítis. Safo, diante da escolha de Helena de acompanhar seu amante Páris, elogia sua coragem e destemor:
 
Uns consideram que as corridas de carros, de infantes ou de navios
são o que há de mais belo na face da negra terra.
Para mim, o que de mais sublime existe é o objeto do amor de cada um.
É muito fácil fazer que todos compreendam esta verdade:
Helena, que pôde comparar a beleza de tantos homens,
escolheu como o mais atranete aquele que destruiria a gloriosa Troia.
Tendo abandonado a filha e os parentes mais queridos,
deixou-se ir, arrastada por Cípris, a fim de amar
 um homen de terras longínguas
(Liv. 1, 27 D, 1-13)
 
Mesmo que o percurso do feminino pela voz masculina não revele um embate feminista, este estudo não deixa de captar a prerrogativa de Simone de Beauvoir (1949[1973]), quando diz “não se nasce mulher, torna-se mulher”; até porque é uma afirmativa que embuti toda uma noção de performatividade, seja uma suposta Helena um sujeito agente, seja um personagem do universo masculino.
Se pudéssemos ancorar a representação do feminino pela figura de Helena(s), duas categorias são aventadas para a constituição de sua representação social: feminilidade e “feminilitude” (MARTINS FERREIRA, 2009). Na feminilidade, encontramos com a Helena que “alimenta o perfil identitário do senso comum da mulher tradicional, provido por arquétipos do sistema patriarcal” (MARTINS FERREIRA, 2009, p. 126) ‒ não é à toa a construção que é feito pelos poetas-masculinos. E, na “feminilitude”, encontramos a Helena de Safo que “escolheu”, agiu ‒ enfim esta Helena constrói “ o sujeito-’feminilitude’ [que] precisa afirmar-se no seu meio funcional, adotando elementos que indexem seu posicionamento de força” (MARTINS FERREIRA, 2009, p.127).
Retornando a Simone de Beauvoir (1949[1973]), Helena, a meu ver, torna-se mulher, mesmo sob a égide do falocentrismo, até porque os poetas precisaram da força centrípeta de Helena para compor sagas, comédias e tragédias humanas. Sem Helena, mesmo sendo assinalada com fantasma, cf. Seféris, suas ‘histórias’ literárias não se narrativizariam. Sob o falocentrismo é a mulher punição, precisa “sofrer para compreender”, no entanto o masculino esqueceu que sofrer é ação, é um “tornar-se mulher”, mesmo que, pretensamente, submetida ao alter masculino.
 

  1. Considerações finais

Parece-me que, mesmo insistindo em categorias dicotômicas na construção identitária de gênero feminino, em que o universo ontológico se exacerba, a dicotomia perde sua força hierarquizante. O “tornar-se mulher” beauvoiriano encontra-se com a asserção do filósofo analítico Willard van Orman Quine: “ser é ser o valor de uma variável” (apud Rajagopalan, 2000, p.80). O termo ser pode nos levar ao onto, mas o variável se movimenta, se performatiza, torna-se. Nesse sentido,
 
Tal assertiva vislumbra o universo multifacetado em que a identidade se constrói, por exemplo, ser mulher é ser o valor feminino de uma rede variável sócio-cultural-ideológica, ou seja, o construído da identidade do feminino mobiliza, situado em espaço social e cultural, sentidos ideológicos (MARTINS FERREIRA, 2009, p. 127).
 
A própria Judith Butler (1986, p. 35), uma das grandes representantes do feminismo contemporâneo, afirma que “se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce mulher e sim torna-se mulher decorre de que a mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim”.
Não foi isso que aconteceu às helenas (propositadamente no plural) pelas vozes masculinas desde o século VIII a.C. até os XIX, XX e XXI? O “ser mulher” não foi se “tornando mulher” x, y, z, de acordo com o tempo e espaço, de acordo com as gramáticas culturais nas quais emerge?
 
É preciso também lembrar que a noção de gênero[5] “é um conceito contemporâneo, que surge a partir da ideia de que o feminino e o masculino correspondem
 
a construções culturais que vão mais além das fronteiras entre os secos de  caráter puramente biológico (KUBISSA, 2006, p. 182).
Resta a questão de saber se o gênero feminino é apenas delimitado pela agência do discurso feminino ou pode ser construído pelo masculino.
Se gênero feminino está vinculado ao discurso da mulher, à Helena não aplicamos a noção de gênero, e sim a de um arquétipo feminino construído pelo sistema patriarcal. Se o movimento do “feminismo da diferença” reclama contra a divisão cultural genérica entre masculino e feminino, buscando uma superação de gêneros para uma compreensão unitária do humano (cf. KUBISSA, 2006, p. 183), o nosso estudo sobre o poeta masculino construindo o feminino perde sua razão de ser. Até porque uma “compreensão unitária” é uma linha cultural e sociológica de valoração, mas eliminar as diferenças, parece-me inviável. Para Hélène Cixous (apud JEANNET, 2012), a linguagem é uma tradução e que qualquer escritor fala através do corpo; e como o corpo feminino é diferente do masculino, logo as literaturas vão construir outros corpos diferentes de acordo com o corpo-escritor. Nesse sentido, Helena não seria um gênero feminino ‘puramente’ feminino já que a escritura é construção do masculino?
Se gênero é uma estilização do corpo, independente de quem o constrói, Helena seria um corpo construído (pelo masculino), estilizado pelo tempo e história em que é construído; mas se depende da própria agência, Helena seria uma fantasma-mulher ou uma personagem feminina segundo a vontade do masculino. Conforme argumentação de Pinto (2002, p. 106) agência/linguagem/corpo é uma rede de contínua intercomunicação, pois “o efeito do ato de fala é operado ao mesmo tempo pelo que é dito, por quem diz e como é dito”, logo, sujeito, fala e corpo estão em relação imbricada. No caso de nossa viagem, teríamos o sujeito e a fala masculina construindo o corpo feminino.  Aí o perigo de entendermos gênero como dissociado de quem fala, pois
 
(…) o dizer do corpo não é um acidente, uma causalidade psico-física-motora do momento da enunciação ligada à intenção do/a falante. O corpo é também ritualizado. Sua ação não é um ato físico não convencional. (…) Suas estilizações fazem parte dos processos de marcação social; a convencionalidade e a repetição definem sua legitimidade e traçam o domínio do possível, do pensável e do executável (PINTO, 2002, p. 107).
 
E nessa viagem a “convencionalidade” e a “repetição” de helenas-sofrer-para-compreender parecem se deter na categoria feminilidade, sob a legitimação do sistema patriarcal.
Porém, o “domínio do possível, do pensável e do executável” está aí, haja vista a nova imortal da Academia Brasileira de Letras, a pensadora e crítica Rosiska Darcy de Oliveira, que assumiu a cadeira 10 em junho 2013, cujos atributos, “a rebeldia, a irreverência, a defesa do ‘feminino’ e uma ruidosa campanha pela felicidade” (ZAIDAN, 2013, p. 154) constróem o gênero feminino: “O movimento feminista se constrói sobre uma ideia extraordinária ‘nosso corpo nos pertence’. Quer botox? Faça!” (ZAIDAN, 2013, p. 158).
Se o gênero está no “que é dito, por quem diz e por como é dito”, Helena continua um gênero-fantasma. Mas “Fazemos votos que Helena e helenas se libertem dos bárbaros e não sejam raptadas por culpa de Zeus, mancomunado com Momo, Têmis e Plutão, nem tampouco espezinhadas e ameaçadas por algum truculento Diomedes (BRANDÃO, 1989, p. 8).
 
 
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, A. Abel, Helena. In: Teatro de Arthur de Azevedo. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas/INACEN. V. 7. (Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro, Tomo 1), 1887.
BARTHES, R. Elementos de Semiologia. Tradução Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1989.
BERGK, Teodor. Poetae Elegiaci et Iambographi. Lipsiae. In: Aeditus B.G. Teibmero, MCMXIV.
BEAUVOIR, Simone (1949). Le deuxième sexe.  Tome I et II. Paris: Gallimard, 1973.
BRANDÃO, Junito de S. Helena – O eterno feminino. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.
BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega. Volume I. 2a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
BUTLER, Judith. Sex and gender in Simone de Beauvoir’s Second Sex, Yale French Studies, Oxford, 72, 1986: p. 35-49.
ÉLIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
GOETHE, Johann W. von. (1806) Fausto. Tradução Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. São Paulo: Bertrand Brasil, 2006.
IRIGARAY, Lucy. Thinking the Difference: For a Peaceful Revolution. New York: Routledge, 1994.
IRIGARAY, Lucy. Toward a Culture of Difference. New York: Routledge, 1993.
JEANNET, Fréderic-Yves. Hélène Cixous: Encounters: Conversations on Life and Writing. Trans. Beverley Bie Brahic Malden. Chicago: University of Chicago Press, 2012.
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NOTAS AO TEXTO
 
[1] Não poderia deixar de agradecer a Junito de Souza Brandão de me ter permitido, mesmo post mortem, utilizar sua obra Helena, o eterno feminino (1989), do qual fiz parte como compositora do texto grego, praticamente na íntegra, como forma de reescrever o já dito, de modo que este primoroso livro chegue mais perto aos leitores do século XXI.
[2] Também incluímos no mapa a ilha de Lesbos, local da poetisa Safo, como forma de economia de figuras, desordenando um pouco a nossa argumentação.
[3] Em formatos diferentes e em cor vermelha, a legenda indica o local de nascimento dos poetas gregos, o título da obra em que Helena se faz personagem e o período aproximado dessas obras. As formas em turquesa referem-se às passagem de Helena na geografia das obras gregas. Aos outros poetas que se inserem na Grécia Moderna, na Alemanha, com Goethe, e no Brasil, com dois poetas, não recebem figuração em atlas devido à memória recente dos leitores.
[4] As citações de fragmentos foram retiradas da obra de Junito de Souza Brandão, Helena, o eterno feminino (1989), vide nota 1.
[5] Tradução livre da autora; texto original: También el concepto de género, dentro de la elaboración teórica del feminismo, es de cuño contemporáneo y surge a partir de la idea de que lo femenino y lo masculino responden a construcciones culturales, que van más allá de la frontera entre los sexos de carácter puramente biológico.