Resumo:
Este ensaio objetiva reler a crônica de Cecília Meireles – “A Casa” – e reabre a possibilidade de que, através da experiência estética e da ferramenta do imaginário, seja possível articular saberes, construir identidades e reconfigurar a relação de distancia entre o observador e o objeto da arte. A referência à obra de Vermeer abre uma releitura da crônica de Cecília no sentido a confrontar as incompletudes do espaço e do tempo que ela nos oferece.
Texto:
MINICURRICULO
Rafael Alves Pinto Junior é arquiteto, formado pela Universidade Católica de Goiás, e Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente é professor do CEFET e doutorando de História pela UFG.
RESUMO
Este ensaio objetiva reler a crônica de Cecília Meireles – “A Casa” – e reabre a possibilidade de que, através da experiência estética e da ferramenta do imaginário, seja possível articular saberes, construir identidades e reconfigurar a relação de distância entre o observador e o objeto da arte. A referência à obra de Vermeer abre uma releitura da crônica de Cecília no sentido a confrontar as incompletudes do espaço e do tempo que ela nos oferece.
O ESPAÇO DE MORAR REVELADO:
“A CASA”, VISTA POR CECÍLIA MEIRELES
Rafael Alves Pinto Junior
Universidade Federal de Goiás
Em junho de 1947 o jornal A Manhã publicou na seção “Letras e Artes”, uma crônica de Cecília Meireles intitulada “A Casa”. Tendo seu primeiro livro lançado em 1919 – Espectros – o nome de Cecília Meireles já se ligara ao que de melhor se fazia na poesia da primeira metade do século XX no Brasil. E não somente à poesia. Além dela, se dedicou à prosa em vários gêneros: artigos, ensaios, conferências, estudos sobre folclore e educação.
Este texto não se propõe a fazer uma análise do discurso “oculto” no texto de Cecília, entendido como produto cultural de sua autora; sobretudo quando se coloca este horizonte como produto de uma experiência estética intersubjetiva e vista como obra que se completa nos olhos de quem o lê. A interpretação que proponho, ao rever o mundo que o texto da escritora revela, é apenas uma entre as várias possíveis.
Como é facilmente verificável, a linguagem poética invade de sua prosa. Talvez, não importe delinear os contornos de uma ou de outra, mas perceber manifestações diversas da mesma pena, fruto de uma única poiesis.
Dentro do contexto de ruptura e de divisor de águas que o modernismo construía na literatura e nas artes no Brasil das primeiras décadas do século XX, Cecília se distinguiu de seus contemporâneos por recusar tanto uma identidade nacionalista quanto uma particularidade estética determinada através de uma ruptura. Colocada numa condição de “pós-simbolista” por Otto Maria Carpeaux e ao lado de Drummond e Bandeira entre os grandes poetas vivos daquele momento, Cecília se distingue através de uma poética simultaneamente atual e inatual, conforme o colocado por Neto (NETO, Miguel Sanches, 2001). Trata-se de uma filiação a um conceito de tempo diverso de seus contemporâneos, desligado de fraturas estilísticas, arroubos nacionalistas ou afirmações ideológicas. Para ele:
Não se trata, portanto, de uma “neo-simbolista” que apenas voltava ao Simbolismo de maneira passiva, mas de uma autora que parte desse movimento, e do que havia nele de conexões com o Parnasianismo, rumo a uma arte moderna escoimada de seu materialismo limitador, fazendo preponderar um desejo de unificação e não de cisão, de universalização e não de particularização. E esse desejo se realiza muito mais pelo desprendimento dos vínculos terrenos, num movimento de ascensão que lhe dá um olhar mais amplo sobre o homem e a existência.
Avessa ao sentimento estético separatista, ela se apossa de uma palavra agregadora, por sentir de forma aguda a fugacidade de tudo. Afastada do centro da poética modernista, manejando uma língua intemporal, ela deu continuidade a uma tradição lírica ibérica, trilhando a contramão dos rumos poéticos de nossa modernidade, que negou justamente a conexão com a cultura portuguesa, em nome da afirmação do local ou por deslumbramento por culturas mais avançadas tecnicamente. O que é considerado conservador em sua postura adquire um papel de revolta, de resistência, até hoje pouco valorizado em nossa cultura afoita demais pelas novidades (op. cit., p. xxiv-lvi).
Neste sentido, falar em brasilidade expressa na arte da época, corresponde abordar uma temática constante no cenário cultural nacional e que diz respeito aos problemas de uma conceituação de uma cultura brasileira. Como ponto de partida, entendemos que as práticas artísticas modernistas – principalmente as relacionadas à literatura – se revestiram de propriedades capazes de esclarecer práticas sociais e ideológicas inauguradoras de uma forma de ordenar, ou ao menos de propor uma unidade cultural. Sobretudo no que apresenta de imagética.
Vista desta maneira, a conceituação de uma identidade cultural não deve ser entendida como um conceito fechado, mas antes como um continuum de resultados transitórios dado basicamente às suas causas múltiplas e mutáveis. Desta forma, tornando-se um ponto de referência essencial no processo de formação da arte brasileira, o modernismo se afirmou no Brasil através de um processo historicamente inconcluso, dinâmico e contraditório em sua essência; e, portanto, problemático e aberto; ainda que em sua primeira fase até os anos 1930 esta antinomia não seja consciente.
No panorama do modernismo no Brasil, a obra de Cecília, em prosa ou verso, não revela nenhum momento de ruptura em termos profissionais, nenhum ano deconversão à modernidade, nenhuma guinada abrupta. Sua formação se deu de uma maneira peculiar, estando intimamente ligada ao seu percurso biográfico. Neto (NETO, Miguel Sanches, 2001) observa que será a orfandade, portanto, a circunstância caracterizadora de uma estética da ascese, lugar geométrico que a poeta elege como morada. Deste ponto de vista, externo e alheio é que a autora se coloca ao escrever A Casa. À compreensão deste ponto de vista é preciso entender os conceitos de tempo e de espaço revelados pela poeta e de que nos apoiaremos nesta exposição.
1 – O olhar exterior – a casa vista por fora
Das minhas altas varandas a avistava. E se a notei, foi só por sua solidão, esse uniforme pelo qual – objetos, animais, pessoas, – fazemos o nosso reconhecimento. Pensei que seria meu destino amá-la. E sobre ela pensei algumas vezes, deslizando como uma pequena mosca pelas suas vidraças insondáveis, aventurando-me como os esbeltos gatos pelos ângulos do seu telhado, farejando o desenho secular e pueril das suas cornijas.
Cecília Meireles, de suas altas varandas – reais ou imaginárias – observa uma casa de esquina, abandonada – cheio só de silêncios. A autora identifica como seu este espaço alheio: ainda quando pertençam a outros, para mim é que foram feitos. Ao lugar exterior atribui o reconhecimento de suas dispersões em portas, corredores, escadas e jardins. Aos lugares que não são seus e onde não se está, se espelha. Ao se colocar no corpo de outros seres – pequena mosca pelas vidraças, gatos pelos telhados – faz um primeiro e fundamental reconhecimento, algo como um tatear através do externo.
Assume sem rodeios sua relação com a distância e o que ela representa:
Pensei que das minhas altas varandas se inclinava um coração de amor para a casa solitária, e deixei-me ir vivendo essa nova ternura; com suas ausências, seu natural impedimento de distância, e a impossível comunicação. Mas afinal, aprendemos tanto com os homens a lição da renúncia que amar uma casa fechada é um pequeno exercício; e uma casa vazia contem mais sonho e mais resposta que a maioria das pessoas. Nunca esperei, no entanto, nada mais que esse meu amor. Porque o amor não precisa mesmo de nada. E até de certo modo, quando se fortalece muito, começa a excluir tudo. O amor quer ser sozinho, isento de repercussão.
Visto em sua relação com o espaço, a dimensão temporal adquire um novo significado. Além do comprimento, largura e altura – as dimensões espaciais -, o tempo comparece como um elemento de se estar no espaço. O verdadeiro sujeito da percepção da arquitetura é aquele que se coloca no espaço, ainda que do lado de fora como na Casa. Ao tempo real da experiência, Cecília contrapõe uma quarta dimensão temporal simbólica, processada pelo afastamento em relação ao objeto.
O fato de não entrar na casa, não explorar seus ambientes internos, não vê-los por dentro, é significativo. A autora escolhe ficar do lado de fora apesar de nada indicar um impedimento de se entrar no espaço da casa. Entretanto, esta não ação desperta na autora os mecanismos da imaginação e, através da distância, compõe um espaço de sonho que ela preenche com ela própria. Não interessava a ela entrar na casa. A renúncia seria exercitada através da distância do olhar. O conhecimento do interior, ao revelar o conteúdo, poderia impedir o espelhamento; e o espaço que ela compõe não pode ser mensurável ou definido pelos parâmetros construídos pela arquitetura do edifício.
Ao se colocar do lado de fora, Cecília cria uma visão de espaço peculiar, plena de subjetividade, relacionada com sua noção de tempo. O tempo não se apresenta em sua condição de passado ou futuro, mas em sua condição transitória, fugidia. Apesar de presente, escapável e móvel. Daí seu encantamento e sua dor. À imobilidade do objeto físico da casa, a autora identifica uma ação. Ação de igual intensidade à sua de observadora e em sentindo contrário. Uma ação que não é percebida por ninguém além dela:
Mas um dia a casa tirou todas as suas telhas. E entendi que para mim as tirava, e que era seu modo de dizer-me “Eu também te amo.” Era o seu modo de entregar-se. E das minhas altas varandas vi toda a sua anatomia, suas divisões, suas passagens, suas claridades, seus descalabros, a mancha dos quadros no papel das paredes, as pias, os lavatórios, os ladrilhos amarelos e azuis, o chão com sua geometria, o lugar de comer, o lugar de dormir, e esse espaço geral de sofrer, que as casas piedosamente cercam com seus sucessivos regaços.
Metáfora do seu próprio fazer poético, a figura da casa é instrumento, ela própria, de representação de um mundo interior absolutamente sensorial. Através desta “desconstrução” se processa uma revelação e o interior do objeto passa, mesmo à distância a ser percebido. A imagem corresponde a um desnudar em que observam novas cores. Os espaços internos outrora cobertos – e portanto menos sujeitos às variações da luz – adquirem novas tonalidades através do sol e da lua. Elementos naturais que adquirem presença de protagonistas dentro do espaço contruído.
Esta ação de ruína do espaço construído, vista e comprendida pelo olhar exterior, é para a autora o objeto mesmo da percepção, numa ação que podemos identificar como fenomenológica. O que a poeta vê – real ou imaginariamente – são dados absolutos apreendidos em intuição pura. O processo de desmaterialização do espaço físico objetiva descobrir tanto as estruturas essenciais dos atos de ver e imaginar (noesis) quanto as entidades objetivas que correspondem a elas (noema), para usar uma terminologia tão cara à fenomenologia.
A experiência propiciada pela distância e pela solidão, se constitui no habito da habitabilidade, a que se refere Ferrara (FERRARA, Lucrecia D´Alessio, 1993). Pela vivência da solidão, a cronista aplica à cidade e aos seus elementos – as outras casas – o seu modo de habitar e de ver o seu entorno. A solidão é a lente através do qual ela faz o uso do seu entorno. Falando sobre a habitabilidade e o uso do espaço, Ferrara esclarece que:
Na homogeneidade da cidade, o hábito é a sedimentação de um uso urbano e, ao mesmo tempo, fator de baixa definição da cidade enquanto fonte de informação; entretanto, é por este mesmo uso que o homem se apropria do espaço ambiental, identificando-o e se identificando com ele; é o uso que dinamiza o espaço e o concretiza como modo de ser de uma cidade ou de um modo de viver. A cidade adquire identidade através do uso que conforma e informa o ambiente. O espaço é informado pelo uso que o transforma em lugar, em ambiente público ou privado (op. cit., 1993, p. 21).
A poeta não pretende dominar estes elementos ou suas antinomias, mas transitar por eles mediante uma experiêcia sensível e imagética. O texto relata uma experiência que deveria ser o contrário do de se construir uma memória. Mediante o desfazer, a autora constrói um sentido. Cria, mediante a ruína da casa, uma experiência de se estar no mundo. O espaço e o tempo da arquitetura comparecem como sujeitos de uma metáfora e de uma experiência poética. No texto, a figura da casa, do espaço construído, arquitetônico, desempenha a função de se estar diante de uma obra de arte. Quer como presença ou como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela, como entende Brandão (BRANDÃO, Carlos A. Leite, 1999, p. 4). Segundo ele, a existência da obra de arte se afirma na ação de se produzir um sentido:
Já na sua Poética, Aristóteles estabelece a verossimilhança e não o vero como o objetivo do poeta trágico. Propondo a este retratar não “os homens como eles são” mas “tais como devem ser”, afora inúmeras outras considerações derivadas acerca da eticidade original e da função da obra de arte, o estagirita coloca a necessidade da obra ater-se aos princípios de unidade tempo, ação e lugar que a capacita a condensar as ações e concentrar a vida de modo a que ela, afastando-se da dispersão do contingente, revele um sentido e promova a catarsis e o auto-reconhecimento do espectador. E, assim fazendo, ela se vê conferida de sentido e oferece um conhecimento da verdade que antes se ocultava. Tal experiência da verdade é o que muda o espectador e, portanto, é um outro tipo de verdade que se anuncia na obra de arte e que não pode ser compreendida como adequatioentre a obra e algo exterior a ela: é a verdade como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela (op. cit., p. 3-4).
Através do espaço revelado pela casa, a autora refuta qualquer presentificação e desafia a percepção linear do tempo. Para isso, utiliza o instrumental da poesia que a permite transpor a noção imediata do tempo e à concretude da matéria. De dentro de seu invólucro, a autora cria um mundo pessoal e ao povoar a casa com o “seu” tempo, dissolve a barreira da distância espacial do que vê.
Envolto no mesmo silêncio que envolveriam Cecília Meireles, o espaço de Vermeer é concebido pela distância. Através dela o silêncio unifica, entrelaça e equaciona tanto pessoas quanto objetos. O mundo externo, o tempo da natureza e sua realidade não interessa ao pintor. Desprovido de interesse, ele se dedicou ao mais intimo dos espaços: o de morar. O pintor constrói um espaço cuja única intromissão do exterior é a luz e seus reflexos, sua geometria e sua sombra. A luz revela e fixa as figuras suspensas em gestos solitários através de uma intimidade que não se imagina revelada. Uma intimidade que é medida através da luz, da sombra e da distância, ela própria espaço.
Referências Bibliográficas:
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BRANDÃO, Carlos A. L (1999). A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
BRITO, Mário da Silva (1997). História do Modernismo brasileiro. São Paulo: Civilização Brasileira.
FERRARA, Lucrecia D’Alessio (2007). Espaços comunicantes. São Paulo: Anablume.
FERRARA, Lucrecia D’Alessio (2000). O texto estranho. São Paulo: Perspectiva.
DIDI-HUBERMAN, Georges (1998). O que vemos, o que nos olha. Lisboa: Editora 34.
JANSON, Jonathan. Essential Vermeer.http://www.essentialvermeer.com. Acesso: 15 outubro 2007.
MEIRELES, Cecília (1998). Obra em prosa. Volume I. Crônicas em Geral. Tomo I. Apresentação: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
SANCHES NETO, Miguel (2001). Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In: SECCHIN, Antonio Carlos (Org.). Cecília Meireles. poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana (1988). Literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes.
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SECCHIN, Antonio Carlos (Org.) (2001). Cecília Meireles. poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
WÖLFFLIN, Heinrich (2000). Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes.