Ana Bárbara Pedrosa
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo: Analisaremos aqui a forma como, em O Encoberto, Natália Correia, centrando-se em D. Sebastião, símbolo da esperança no imaginário português, usa o pessimismo como mote principal para o carácter tragicómico da peça. Neste sentido, reflectiremos ainda sobre a ideia essencial do messianismo, que funcionará como forma de alienação, e a necessidade de que o símbolo da esperança se mantenha caso nele esteja imbuída a hipótese de melhoria.
Summary: This article will analyse the play O Encoberto, by Natália Correia, whose main figure is King Don Sebastian, who is a symbol of hope in the Portuguese imagination. The text employs pessimism as a tragicomic resource. The article will also reflect on the essential idea of messianism as a form of alienation and the need for it to continue as a symbol of hope if it points to the hypothesis of improvement.
Minicurrículo: Doutoranda em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina, com um projecto de tese sobre as obras das escritoras portuguesas que foram censuradas durante o Estado Novo português, mestre em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, pós-graduada em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, licenciada em Línguas Aplicadas pelo Instituto de Letras e Ciências Humanadas da Universidade do Minho.
Palavras-chave: pessimismo, messianismo, esperança, mito
Key-words: pessimism, messianism, hope, myth
O ENCOBERTO: O PESSIMISMO DE QUE SE IMBUI
UM SÍMBOLO DA ESPERANÇA
Ana Bárbara Pedrosa
Universidade Federal de Santa Catarina
Introdução
Iremos aqui fazer referência à obra teatral O Encoberto, de Natália Correia (1923-1993), uma escritora e editora portuguesa que, para além de ter tido uma vasta produção literária, principalmente poética, teve uma vida cultural e política muito activa, tendo ainda sido tradutora, jornalista, guionista e editora. Tendo-se afirmado em todas estas áreas, não espanta que tenha sido uma figura central da vida cultural e intelectual portuguesa nas décadas de 1950 e 1960.
Publicada em 1969, a obra, em que é caricaturizado D. Sebastião, uma das mais emblemáticas personagens do imaginário português, teve a ditadura salazarista como zeitgeist e foi proibida pelos serviços censórios do regime. A ditadura, que durou quase cinco décadas, viria a proibir centenas de obras, fossem estas literárias, filosóficas, políticas ou sociológicas. No que concerne à produção literária de autoras portuguesas, Natália Correia ocupa um lugar de destaque, tendo tido seis obras proibidas, sendo, assim, a autora portuguesa mais censurada pela PIDE (Comunicação, 1959; O Homúnculo, 1965; A antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, 1965; A Pécora, 1967; O Encoberto, 1969; O vinho e a lira, 1969).
Apesar da sua vasta produção literária, a fama de Natália na sociedade portuguesa durante estas décadas devia-se principalmente às suas intervenções políticas. Esta ideia desagradava à autora, que dizia estar na vida política activa pelo valor cultural. Assim como assim, casava política com literatura também na sua obra artística: a sua relação com a literatura foi sempre política e a autora encarou-a como uma forma de intervenção social. Assim, a propensão crítica da sua obra é inocultável: a produção literária tornou-se num lugar de reflexão e, portanto, num lugar onde cidadania e arte se mesclavam.
Ao longo dos quarenta e oito anos da ditadura, o efeito do zeitgeist fez-se sentir na produção literária de forma impactante, conseguindo-se, após o 25 de Abril, com o resgate de várias obras, uma memória da literatura bem sedimentada. Assim, o regime foi matéria de criação de grande parte dos autores: o contexto fez-se várias vezes matéria da criação artística e a criação passou por um olhar crítico. Ao mesmo tempo, havia, por parte da arte, uma posição de confronto relativa à ideologia oficial, levada a cabo por artistas que não queriam compactuar com um sistema que, entre outros, se imiscuía na criação artística.
Os textos de Natália, por isso, exigem uma análise que atente na sua ecuménica subtextualidade. Uma análise que peque por ignorar o subtexto, onde o símbolo se revela, cingindo-se a ser textual, não conseguirá alcançar a significação simbólica do corpus literário. Desta forma, e no caso concreto de Natália, ao partir-se para uma análise, o factor simbólico deve ser primordial: a linguagem simbólica, que oscila entre ser visível e oculta, responsabiliza o leitor no processo comunicativo com a autora: a última trabalha a palavra e apresenta-a ao primeiro, a quem caberá, por sua vez, analisar o subtexto e interpretar o universo onírico, onde se esconde o que permitirá o alcance da significação do texto. As obras da autora, por isso, põem peso na recepção da obra, que nasce já com o intuito de que os alcances das significações sejam tarefa dos leitores.
Para mais, a autora desafia os cânones literários, abalando-os, provocando-os, e reinterpretando os mitos. Ao mesmo tempo, e ainda que dirigindo uma crítica sarcástica ao surrealismo, a autora é conotada com ele, principalmente devido a obras como O Homúnculo ou O Encoberto, em que o palco e as figuras históricas são ressignificadas.
O símbolo da esperança como pessimismo
Publicado em 1968, O Encoberto, modelo de teatro épico-narrativo, foi a décima nona obra de Natália Correia, correspondendo a uma fase madura da sua dramaturgia. Com a sua censura, a autora fechou um ciclo de uma década de grandes confrontos com os serviços censórios, vindo esta a ser a sua sexta obra proibida.
A obra é a terceira parte daquilo a que Armando Nascimento Rosa chamou trilogia dos mitos lusitanos (ROSA, 2010, p. 151), seguindo-se a O Homúnculo (1965) e A Pécora (1967). Este autor encontrou afinidades entre as três obras que lhe pareceram suficientes para irmaná-las, ainda que a autora nunca tenha sugerido nem a nomenclatura nem o agrupamento textual. Nascimento Rosa, contudo, argumenta não só pela proximidade cronológica da publicação das obras, uma vez que foram as três publicadas entre 1965 e 1968, mas também pelas parecenças na concepção estilística dos temas: os títulos das obras, para além de se comporem todos por um artigo definido e um substantivo, referem-se a mitos da história portuguesa. Assim, O Homúnculo orienta-nos para Salazar, A Pécora para as aparições de Fátima (1917) e O Encoberto para o mito sebastiânico. Nas três obras, interroga-se a identidade portuguesa e compõe-se uma visão panorâmica de uma parte relevante do imaginário nacional.
Nascimento Rosa considera que as três obras da trilogia dos mitos lusitanos indicam várias formas de escapar a uma circunscrição geocultural exclusiva e que as três dialogam com arquétipos de recorrência transtemporal tanto na experiência da psique individual quanto na colectiva. Considerando que, em O Encoberto, essa intenção universalizante é levada a uma explicitude no desfecho fantástico da parábola, tornando a peça numa reflexão teatral sobre a pulsão messiânica, o autor considera ainda que também nas duas peças anteriores se notam horizontes com uma grande mundividência (ROSA, 2011, p. 112). De facto, a circunscrição geocultural em O Encoberto remete-nos para a ideia de recorrência transtemporal dos fenómenos, sendo possível paralelizar-se a crise dinástica não só ao regime do Estado Novo mas também a qualquer outra situação, transtemporal e transgeográfica, em que não seja da vontade dos povos que dependem as decisões sobre aquilo que os rege.
Debate-se na obra o papel de D. Sebastião na cultura portuguesa e no imaginário nacional. Tendo em conta o que representa, não é de admirar que a história da literatura portuguesa lhe tenha dado um grande destaque, principalmente a partir do século XIX, com o surgimento do Romantismo e do romance histórico. Assim, os exemplos, na literatura portuguesa, em que D. Sebastião figura como personagem literária abundam e incluem obras como frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, ou O Conquistador, de Almeida Faria.
Assim, O Encoberto tem como cerne da narrativa o mito de D. Sebastião. Não estando historicamente circunscrito à crise dinástica de 1580, que levou ao poder régio a dinastia filipina, usa esta última como paisagem simbólica do drama, que se dilui na intemporalidade do mito. Fazendo-o, coloca perante quem lê a situação de um povo que, privado da sua independência, se vê incapaz de reger-se. D. Sebastião, neste cenário, aparece como a presumível (impossível?) salvação desse povo.
A obra parte, por isso, da derrota portuguesa na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, em cujo campo de batalha D. Sebastião desapareceu, assim como a nata da nobreza portuguesa, e que levou a dinastia filipina ao poder régio português, passando Portugal e Espanha a ter o mesmo rei. O mito que daqui nasceu foi o do retorno de D. Sebastião, o único que poderia restituir a independência ao povo português. A lenda a respeito do rei português começou a ser difundida em finais do século XVI. Dizia-se que este havia sobrevivido à batalha e escapado para Itália, onde se manteria, sob uma identidade falsa, até estarem reunidas as condições para que pudesse voltar para Portugal e reconquistar a independência do seu povo.
O zeitgeist em que a obra de Natália foi concebida não pode ser ignorado: escrita durante o Estado Novo, estaria intrincada no seu tempo, mostrando o contexto como mote para que o mito ressurgisse, já que este havia sido historicamente reconfigurado como símbolo de esperança e de independência de um poder que não pertencia ao povo. Assim, cumprir o mito seria o mesmo que reganhar o direito à vida política e social. Ao mesmo tempo, ter necessidade dele significava um status quo que derivava de um regime autoritário em que as decisões políticas não dependiam das vontades populares. A ideia da restauração da independência, portanto, funcionará como forma de ligar as duas circunstâncias históricas (o Estado Novo e a perda do poder régio para a dinastia filipina). Ao mesmo tempo, a obra não se circunscreve a estes dois episódios históricos, antes alcançando a mundialização do mito, já que a sua carga messiânica o torna passível de ser evocado sempre que os povos se virem omissos de liberdade, tendo, claro, um grande peso na história portuguesa. A mundialização do mito torna a obra intemporal, não a agrilhoando nem na era filipina nem no Estado Novo (o que seria usado, por Natália Correia, como mote para o recuo da censura, numa carta enviada a Marcelo Caetano1), tornando-se, assim, “inaferível pelo cronómetro” (GARCIA, 1990).
Em O Encoberto, a autora explora a ambiguidade, deixando o final em aberto, privilegiando a confusão entre D. Sebastião e o seu duplo. Assim, a peça gira em torno da identidade do actor Bonami, explorando-se a ambiguidade entre vida e teatro, tentando desvendar-se se este é ou não quem afirma ser: D. Sebastião. A acção motiva-se porque Bonami quer levar D. Sebastião para além do palco, fazendo de D. João de Castro um cúmplice. No final da peça, não consegue entender-se se o primeiro é ou não “O Encoberto”. Para mais, a dada altura, a autora satisfaz a vontade da personagem, tornando ainda mais híbridas as fronteiras entre vida e teatro: “A partir deste ponto, Bonami e D. Sebastião são uma e a mesma pessoa pelo que a autora, respeitando o arbítrio da personagem, passará a denominá-la Bonami-Rei” (CORREIA, 1969, p. 25). No decorrer da peça, as personagens afirmam ou desmentem Bonami-Rei, consoante os seus interesses. Filipe, por exemplo, quer condená-lo à morte, já que ele lhe ameaça o trono, e quer que morra enquanto rei. Como diz, “Se o prisioneiro morrer como impostor, D. Sebastião continuará vivo e o génio da desordem teimará em provocar insónias ao poder” (CORREIA, 1969, p. 109). Bonami, por sua vez, vai saltitando entre a identidade de actor e a de rei consoante lhe é mais conveniente. Ao ser espancado por Cristóvão de Moura, naquele que é um episódio tragicómico, confessa-se um actor: “Basta! Basta! Confesso que sou um actor e protesto contra o estilo sofredor desta personagem” (CORREIA, 1969, p. 105). Depois, finge ter sido apanhado desprevenido: “Tirem-me daqui! Que raio de peça é esta?” (CORREIA, 1969, p. 106). Quando acalma, volta a proclamar-se rei: “Sou D. Sebastião. Acudam! Estão a martirizar a própria humanidade” (CORREIA, 1969, p. 106). Ao azorrague de Cristóvão de Moura, volta a desdizer-se e a desdizer-se uma vez mais: “Isto não é coisa que se faça a um pobre actor. (…) Sou D. Sebastião” (CORREIA, 1969, p. 107). Quando quer, finalmente, desfazer a identidade de rei, D. João de Castro, em mais um ímpeto tragicómico, diz-lhe que os revoltosos o matam se ele desfizer a ilusão da identidade (CORREIA, 1969, p. 56) e considera que a vontade de Bonami de dizer que não é mais do que um actor “transtorna a ordem do mundo” (CORREIA, 1969, p. 56). Assim, a acção e a vontade do indivíduo são enformadas pelas expectativas da sociedade e este tem de agir de acordo com o que lhe for mais conveniente. A autora assume no texto, assim, que não havia um caminho viável para que o país saísse da situação em que se encontrava e que restava apenas fazer com que o povo acreditasse num símbolo, por falso que fosse, para que não resvalasse para o absoluto desalento. Afinal, só isso permitiria evitar mais tumultos e acalentar a alegria que a esperança contém, as hipóteses de que se imbui.
As personagens, no decorrer da peça, entram e saem para afirmarem ou negarem a identidade de Bonami. Por exemplo, o coro das Catadeiras de Piolhos, a que estão associados um pessimismo profético e o constante desprestígio de D. Sebastião, revela os factos históricos e diz-se e desdiz-se, afirmando e negando a identidade de Bonami. Afirma que pode ser e pode não ser o monarca, aumentando a ambivalência entre actor e personagem. Ainda que parta do desprestígio, acaba por reproduzir o hibridismo que outras personagens e o desenrolar da história acentuarão.
É Maria de Fátima Marinho quem nota que o cerne do enredo é precisamente “a estrutura em abismo que faz periclitar reciprocamente as duas acções” (MARINHO, 2003, p. 35). Quer isto dizer que o actor Bonami se vai progressivamente transformando em D. Sebastião e que a transformação é feita de tal forma que, como dissemos, a autora cumpre a vontade do actor e começa a tratá-lo por Bonami-Rei (CORREIA, 1969, p. 25). Ao longo do texto, a ambiguidade permanece, actor e personagem confundem-se, o hibridismo nunca cede, antes se adense. A peça gira à volta do messianismo e cabe ao público indagar sobre se o messias existe ou não.
A dualidade é instável. Quem lê desconfia, mas até a desconfiança vacila. O jogo ambíguo da autora não sucumbe: as personagens entram e saem em cena, argumentando, endrominando, sugerindo uma verdade que esteja aos seus serviços. Perante o texto que é apresentado, e uma vez que este não fornecerá respostas em relação à identidade de Bonami, resta ao público leitor a reflexão sobre a questão messiânica e o papel do messias na vida social e no imaginário cultural português. A dualidade serve para pôr a ideia do messias em perspectiva e pouco importará que, no final, não se entenda se Bonami é ou não o rei.
Quando Bonami afirma: “Vejo-me na difícil situação de um actor em que o público acredita” (CORREIA, 1969, p. 53), a ironia atinge um alcance ímpar, não sendo possível, a partir daí, fugir-lhe, ou fugir à ambiguidade. Para mais, é o próprio Bonami-Rei quem diz não ter culpa pelas duas faces da verdade (CORREIA, 1969, p. 92), assumindo que a sua identidade terá de ser sempre volátil. Apresenta, assim, a verdade como uma conveniência e, portanto, as interpretações como formas manipuladas de interesses. É por isso que o facto de ter dito “Pois fica sabendo que somos quem supomos ser” (CORREIA, 1969, p. 85) anula a verdade enquanto fidelidade aos factos: as pessoas, como as personagens, são quem crêem ser e é tendo estas crenças por base que as interpretações irão nascer, também estas sendo dirigidas para o que for mais conveniente aos interpretantes. A ideia de verdade, assim, ou será inútil ou inexistente.
A utilização do absurdo permite que se misture mais eficazmente a realidade com a ficção. Aliás, a autora, ainda que se tenha tentado afastar das conotações com o surrealismo, recupera-o nesta peça para ridiculizar o espírito messiânico (MARINHO, 2003, p. 36) e, entenda-se, são ridicularizados símbolos de esperança, que são apresentados na peça como forma de endrominar ou acalmar os intentos de um povo. Ao mesmo tempo, a ideia da verdade é apresentada tão-só como forma modificável, que varia consoante as conveniências do Estado e o seu interesse em que seja ou não acalentada a ideia da existência de um messias. É neste sentido que, quando Bonami-Rei admite fazer flutuar a sua identidade, e aqui em detrimento das necessidades alheias, querendo dizer ao povo que não passa de um actor (CORREIA, 1969, p. 55), D. João de Castro, depois de lhe ter dito que ele simboliza a liberdade, quer que insista na ideia de que é rei porque esta servirá o interesse comum. Para mais, diz a Bonami-Rei que, se este desfizer a ilusão da identidade, as pessoas irão sentir-se enganadas e matá-lo (CORREIA, 1969, p. 56). Desta forma, tenta que seja reconhecido como rei: “Se este homem não é D. Sebastião, que eu seja condenado por blasfemo e herético” (CORREIA, 1969, p. 22). Contudo, quando a acção passa por uma reviravolta e Bonami é condenado à morte, D. João muda o discurso e pede-lhe que diga que é um comediante. Se morrer enquanto comediante e não enquanto rei, a sua morte pouco simbolizará, não terá a carga simbólica da extinção da esperança. É neste sentido que a ideia essencial do messianismo sobrevive: o símbolo deve ser mantido se nele estiver imbuída a hipótese da melhoria.
Já Filipe II, que tem interesses contrários aos de D. João de Castro, diz a Cristóvão de Moura, que hesitava em relação à identidade do prisioneiro, temendo que este fosse o rei, que seria benéfico que ele morresse enquanto rei, já que, morrendo o mito, morreria também o futuro: “Mete de uma vez para sempre nesses teus miolos de magarefe que a segurança do Estado exige que esse homem seja D. Sebastião e, como tal, será executado a fim de impedir que haja futuro” (CORREIA, 1969, p. 108). Assim, e como o próprio nota, se Bonami morresse enquanto actor, o mito continuaria vivo, o povo continuaria acalentado e o poder estaria sempre sob ameaça: “Se o prisioneiro morrer como impostor, D. Sebastião continuará vivo e o génio da desordem teimará em provocar insónias ao poder” (CORREIA, 1969, p. 109). Assim, dá-se espaço, no decorrer da peça, à confusão em torno do protagonista: o símbolo existirá mesmo ou existirá apenas para que o povo não desespere? Assim como assim, Bonami deve viver para que a esperança exista: se estiver vivo, interessa ao povo. Se morrer enquanto símbolo da esperança, como intenta Filipe II, nada acalentará a esperança do povo.
Neste cenário, o clero apoia o poder, sendo-lhe indiferente as mãos em que se encontra. Belchior do Amaral, por sua vez, simboliza aqui a razão, que, em mais um episódio tragicómico, será fonte do ódio do povo: ao opor-se à campanha de África, alertando o povo para a manipulação de que era alvo, é linchado pela população alienada (CORREIA, 1969, p. 44). Mais tarde, reaparece na forma de um cientista do século XX, retomando o mesmo discurso, e também aí é alvo de maus-tratos. Assim, o mito simboliza ainda uma forma de alienação e, ao mesmo tempo que representa a esperança, funciona como grau último do pessimismo: só pode acreditar no mito quem recusa a razão; se o mito é uma ilusão, não há um caminho viável, a melhoria é impossível.
O mito, portanto, aparece como única forma de salvação do país, reconfigurando a esperança. Que a imagem de D. Sebastião seja precisamente um mito e não uma hipótese viável muito nos dirá sobre o pessimismo inerente à obra: a salvação só é possível pelo cumprimento do mito que não chega, pela existência do que não existe. A salvação, por isso, é impossível: D. Sebastião está evidentemente morto: “D. Sebastião morreu em Alcácer Quibir. Encontraram o seu cadáver crivado de lanças”, diz Belchior do Amaral (CORREIA, 1969, p. 43).
Ao mesmo tempo, neste cenário em que Bonami parece uma farsa, mantendo a sua identidade de acordo com as expectativas e existindo apenas para acalentar um povo, esse povo é mostrado como incapaz e dá-se a ideia de que, faça o que fizer, não conseguirá nunca libertar-se:
“ (…) três Catadeiras de Piolhos, [que] desbastam a cabeça de três imundas crianças. No seu filosófico alheamento do entusiasmo pela vinda do Encoberto, leia-se a conclusão realista de que aconteça o que acontecer, o mundo está coberto de piolhos” (CORREIA, 1969, p. 38).
Neste sentido, contra a vida portuguesa, é usado um símbolo da cultura portuguesa, aquele que no seu imaginário personifica e simboliza a esperança. D. Sebastião salvaria a pátria, restituir-lhe-ia a liberdade, mas aquilo que simboliza resvala em ironia: a esperança assenta num símbolo que, obviamente, não se fará chegar, tornando-se, assim, numa ideia vaga, num caminho sem rumo, numa prospecção sem força material. Só aceitando que apenas a ilusão pode significar a esperança, com toda a ironia que tal ideia acarreta, é que pode aceitar-se a ideia de que “o mundo está coberto de piolhos” (CORREIA, 1969, p. 38).
Assim, também o povo chega a considerar que o símbolo é opressor2, tornando aqui o pessimismo inultrapassável. No início, é-lhe indiferente que Bonami-Rei morra ou não, mas pouco depois concede-lhe o interesse da utopia, o interesse do que poderia ter sido: “Estes heróis só interessam na medida em que podiam ter sido” (CORREIA, 1969, p. 114). Também aqui se vê o grau último do pessimismo: nem no símbolo da esperança pode haver esperança, esta será sempre traída. Por isso, a utopia não pode tornar-se real, valendo apenas pelo que podia ter sido, já que a sua realização traria uma nova opressão. A ironia suprema passa, por isso, por entender-se que o próprio símbolo da esperança é falso e que servirá mais enquanto morto: a esperança não tem razões para existir e os seus símbolos valem tão-só enquanto utopia, jamais enquanto hipótese.
A mensagem última da peça é a da impossibilidade de mudar o que está mal, ao mesmo tempo que se manifesta uma profunda insatisfação com o estado de Portugal, o que o rege e o seu povo, perpassando por toda a obra um concomitante horror ao possível. Daí que a obra, ideologicamente conservadora, portanto, formule a ideia de que todas as revoluções são inócuas, sonegando a esperança que as motivou e tornando todas as situações perfidamente equivalentes. Aliás, é a própria autora quem, na folha de sala da peça, já em 1977, diz que a obra “tem a condicionante de um tempo mas dele se descondiciona na intemporalidade do próprio tema” (CORREIA, 1977, folha de sala3). E é no mesmo documento que contrapõe a irracionalidade do poder que escraviza à irracionalidade do messias, da crença em D. Sebastião como salvação de um povo, como derrota do poder indesejado. Confrontado as duas irracionalidades, é a própria Natália Correia quem admite que a peça representa o insolúvel e que, como tal, tem de derivar em humor. Daí que o sentido tragicómico da contraposição das duas irracionalidades a que autora faz referência perpasse toda a obra e seja um dos seus pilares fundamentais: afinal, como evitar a tragicomédia de uma situação em que o povo tem de acreditar no impossível para vencer o que é possível? O que poderá ser mais pessimista – e, acrescente-se, desesperante – que resgatar o impossível como medida única de combate ao possível? De que forma pode analisar-se as pretensões de que Bonami, ao ser condenado à morte, finja/diga ser um actor que fingia para que a sua morte não represente o fim daquilo que ele queria representar/representava até então, o rei impossível capaz de vencer o possível?
O pessimismo é, assim, o mote principal do carácter tragicómico da peça. No entanto, a peça foi publicada já no pós-PREC e talvez aí tenha parecido estar um tanto fora de tempo. Afinal, veio a cena já depois de tempos convulsos em que não só se havia derrotado uma ditadura que parecia arrastar-se indefinidamente, uma ditadura que soube durar (ROSAS, 2013), como se arriscavam sucessivas tentativas de reorganização da sociedade, que incluíam não só o Verão Quente de 1975, mas também o Golpe Militar de 25 de Novembro do mesmo ano.
Finalmente, nota-se que a ambiguidade se alia à questão do messianismo e, com esta junção, Natália Correia, herdeira da tradição surrealista, recusa a afirmação unívoca da identidade, antes mesclando identidades e optando por uma abordagem ambígua da história. As personagens estão perfeitamente alinhadas, dizendo-se e desdizendo-se, consoante vontades momentâneas e usando da palavra de forma manipuladora, de forma a que este jogo ambíguo possa ser exercido e a que sobreviva a ideia de que a realidade não chega, porque é preciso um símbolo de algo que partiu, que representa o que poderia ter sido, para que a esperança se acalente.
Notas
Referências bibliográficas
ANTUNES, José Freire (prefácio e organização) (1985). Cartas particulares a Marcello Caetano. v. 2. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
CORREIA, Natália (1969). O Encoberto. Lisboa: Galeria Panorama.
GARCIA, José Martins (1990). O “Espaço” dramático em O ENCOBERTO in Letras & Letras, nº 26, Fevereiro.
MARINHO, Maria de Fátima (2003). D. Sebastião entre o Ser e o Parecer (a propósito de O Encoberto)” in Colóquio Natália Correia, 10 anos depois: p. 31-42.
ROSA, Armando Nascimento (2010). Eros, história e utopia: o teatro de Natália, in: Abreu, Maria Fernanda de; Fernandes, Margarida; Goulart, Rosa Maria; Mourão, José Augusto (orgs.) (2010). Natália Correia, A festa da escrita, p.137-153. Lisboa: Edições Colibri.
ROSA, Armando Nascimento (2011). Arcaica e futura: a dramaturgia de Natália Correia: uma leitura d’O Encoberto, in: Teatro do Mundo, vol. 5: p.103-114
ROSAS, Fernando (2013). Salazar e o poder. a arte de saber durar. Lisboa: Tinta-da-china.