O CORPO/TEXTO TATUADO NO LIVRO DE PRAGA, DE SÉRGIO SANT’ANNA – Sara Cristina Pagotto


O CORPO/TEXTO TATUADO NO LIVRO DE PRAGA, DE SÉRGIO SANT’ANNA
Sara Cristina Pagotto
Pontifícia Universidade Católica (PUC – GO)
 
RESUMO: Apresenta-se, neste artigo, uma abordagem crítico literária de um capítulo que se intitula “O texto tatuado” na obra O livro de Praga, de Sérgio Sant’anna.  O estudo se concentra no conceito da transgressão da linguagem, precisamente na questão erótica. Através de um belo corpo apresentar-se-á um texto tatuado, cuja autoria é do poeta e escritor Franz Kafka. Deste modo conduziremos esta análise por meio do belíssimo “Prefácio à Transgressão”, teorizado por Foucault, como também o erotismo abordado por Georges Bataille.
 
PALAVRAS-CHAVE: Corpo, Tatuagem, transgressão, linguagem
 
ABSTRACT: The article The tattooed body and The Book of Praga, by Sérgio Sant’Anna, presents a literary-critical approach of a chapter called “The Tattooed Text” in this novel by Sérgio Sant’Anna. The article focuses on the concept of transgression of language, in which,  through a beautiful erotic body it is presented a tattooed text whose author is the poet and writer Franz Kafka. We will base this analysis on the beautiful “Preface to Transgression”, theorized by Michel Foucault, as well as on the approach on eroticism by Georges Bataille.
 
KEYWORS: Body, tattoo, transgression, language
 
RESÚMEN: El cuerpo/texto tatuado en El libro de Praga, de Sérgio San’Anna, presenta un enfoque de la crítica literaria de un capítulo llamado “El texto Tatuado” en la novela El libro de Praga, de Sérgio Sant’Anna.  Este trabajo se centra en el concepto de transgresión del lenguaje, donde a través de un hermoso cuerpo erótico se enseñará  un texto tatuado, cuya autoría es el poeta y el escritor Franz Kafka. Llevamos a cabo este análisis por medio del belísimo “Prefacio a la transgresión”, teorizado por Foucault, así como del estudio del erotismo por Georges Bataille.
 
PALABRAS CLAVE: Cuerpo, tatuaje, transgresión, lenguaje.
 
CURRÍCULO DA AUTORA: Mestranda em Letras – Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Católica de Goiás. Especialista em Ensino de Língua Espanhola pela Faculdade Ávila. Licenciada em Letras Português e Espanhol pela Universidade Federal de Goiás e atua como professora de língua portuguesa e língua espanhola na rede estadual de ensino de Goiás, Goiânia.

 
O CORPO/TEXTO TATUADO NO LIVRO DE PRAGA,
 
DE SÉRGIO SANT’ANNA
 
Sara Cristina Pagotto
Pontifícia Universidade Católica (PUC – GO)
 
 

  • O CORPO: TEXTO TATUADO

 
O presente estudo consiste em uma abordagem crítica literária de um capítulo da obra O livro de Praga de Sérgio Sant’anna, que se denomina “O texto tatuado”. Partiremos do conceito da transgressão, teorizado por Foucault, bem como de erotismo, abordado por Bataille.
Trataremos inicialmente sobre o termo transgressão enquanto elemento que move o processo criador na narrativa deste capítulo/conto na obra de Sérgio Sant’anna, O livro de Praga.
A transgressão é a marca para o ato narrativo quiçá criativo que vai quebrando e ultrapassando os limites para possíveis diálogos com a arte contemporânea, cheia de volúpia e dissoluta, arte essa é a literatura, movida de sutilezas eróticas e transgressivas que dialogam com o corpo, um corpo tatuado, metamorfoseado na narrativa em Praga.
Antes de adentrar na análise propriamente dita sobre o objeto de estudo, o capítulo “O texto tatuado”, relataremos sobre a obra em si no qual é uma reflexão sobre a arte, isto é, a arte interagindo com outras artes – interartes.
Esta obra evidencia e nos apresenta a arte em estreita relação com a experiência do amor e do sexo. E ao mencionar o sexo, nos deparamos com o corpo o qual é tratado de maneira inapelável, de forma transgressiva, acionando múltiplas possibilidades de gerar prazer e dor. O apelo ao corpo, nesta obra enfatiza a experiência artística no contexto dos novos meios de comunicação de massa com o intuito de sensibilizar os leitores para a compreensão da arte.
Na obra O livro de Praga cada capítulo enfatiza experiências com as várias modalidades artísticas: a música, a escultura, o teatro e a própria literatura, invoca-se o corpo para um verdadeiro confronto com o objeto artístico. Afirmamos que o elemento corpo transgride em todos os sentidos para ultrapassar os limites de compreensão da arte.
De acordo com Foucault,
“(…) a transgressão é um gesto relativo ao limite: é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na totalidade, sua própria origem. (…) A transgressão leva o limite até o limite do seu ser: ela o conduz a tentar para a sua desaparição iminente, a se reencontrar naquilo que ela exclui, a sentir sua verdade positiva no movimento de sua perda. E, no entanto, nesse movimento de pura violência, em que direção a transgressão se desencadeia senão par o que a encadeia em direção ao limite e aquilo que nele se acha encerrado” (FOUCAULT, 1963, p. 32).
 
A transgressão está ligada pelo limite de forma espiral, ou seja, um movimento progressivo, construtivo e que transpõe. Logo, o corpo tatuado com um texto inédito de Kafka será um instrumento que conduzirá a compreensão da arte “tatuada” de forma a ultrapassar as barreiras do limite.
Neste capítulo é construída uma narrativa erótica e intensa. Antônio Fernandes é um escritor e apreciador de arte, que, estando em Praga chega até Jana, uma moça com o corpo tatuado por um texto inédito supostamente escrito por Kafka, por meio de seu irmão gêmeo Peter.
O personagem Peter “encontra” Antônio Fernandes em um bar chamado “A Dançarina”, neste local, dialogam a respeito do trabalho de Jana e a trajetória da história a respeito do texto de Kafka tatuado no corpo pelo professor e amante de Jana. O irmão gêmeo de Jana é uma espécie de dândi (ser passante, que conhece os pontos e lugares da vida urbana, bem como a cultura e as artes e nesse caso, na obra propriamente dita, Peter conhece a noite e seus movimentos) contemporâneo, que conduz Antônio até sua belíssima irmã, detentora do texto de conteúdo amoroso e erótico impresso em seu belo corpo. O texto havia sido tatuado em letras impressas fosforescentes.
O corpo expressa linguagem e na arte contemporânea, o artista é simultaneamente sujeito e objeto de sua obra, eis que o objeto de estudo “O texto tatuado”, suposto texto inédito de Kafka tatuado no belo corpo da atriz Jana, episódio este que contempla a linguagem por meio do corpo de modo a expressar e comunicar performaticamente a arte.
O corpo humano, desde muito, é tema privilegiado para as artes, no entanto, a partir da década de cinqüenta do século XX, deixa de ser uma simples representação para a arte e passa a ser expressão de si mesmo. Mais do que a representação de um ideal de beleza, as ações performáticas empreendidas por diversos artistas colocam em evidência o corpo que passa a ser explorado como suporte para experimentos de diferentes linguagens.
Ao estudar a obra de Sérgio Sant’anna observamos esse movimento inovador na estética do corpo que é apresentado pela personagem Jana, esta personifica a literatura em forma de texto, um texto escrito (tatuado) em seu corpo.
Interessante notar que sendo o corpo objeto de arte, o artista contemporâneo em ações performáticas propõe a diluição desse objeto artístico e, conseqüentemente cultural, na corporeidade biológica, empreendendo experimentações fomentadas por representações do pensamento simbólico que levantam questionamentos de um corpo híbrido, produtor de imagens invariantes da conduta humana como comportamento simbólico em confluência com suas possibilidades e limitações físicas.
A performance é uma linguagem artística enquanto o artista se serve do corpo para levantar questionamentos sobre fatos sociais bem como expressar-se artisticamente, no contexto de nossa análise, Jana, representa performaticamente e eroticamente o suposto inédito texto de Kafka.
 
 

  • LINGUAGEM ERÓTICA E TRANSGRESSORA

 
O cenário erotizado através de um corpo que apresenta o texto tatuado nos remete ao que nos explica Bataille sobre o erotismo “é a dança, propriamente humana, que se dá entre este dois pólos: o do interdito e o da transgressão”. Essa transgressão é o ápice do humano e o erotismo é a experiência interior: do segredo e da ruptura que está exposta e nua.
Ainda segundo Bataille, “o erotismo é, de forma geral, infração à regra dos interditos: é uma atividade humana. Mas, ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não deixa de ser o seu fundamento”.
Durante a encenação há um diálogo erótico entre os dois personagens onde Jana inicia a encenação falando/recitando o texto de Kafka em francês, nesta cena até a voz é alterada com características ora masculinas ora femininas, ou seja, incorporando com muita propriedade o tema do texto em seu corpo, ou melhor, o corpo-texto.
Jana inicia a sua fala, na língua francesa, com uma voz próxima do masculino, sem dúvida uma voz que representava a de Kafka.
Observamos esse recurso na estética da obra de Sérgio Sant’anna onde um texto narrativo está tatuado no corpo desta jovem que teatraliza, ou melhor, contracena, sutilmente essas sensações e confidências eróticas do próprio Kafka à sua amante “como as notas de uma composição que gostaria de talhar em teu corpo, que está a me dizer”.
E logo, Jana muda a voz para um gracioso tom feminino: “Ah, nossos lábios e línguas que se misturam, num desses raros beijos de conhecimento que não devem se repetir continuadamente para não se tornarem um hábito vazio. Melhor, então, depois, explorar outras partes muito sensíveis do meu corpo”. Na sequência voz e expressão tornam-se sensuais:
“(…) tua língua áspera em meus seios, sentindo os seus grãos minúsculos, e repara que, à simples menção disso, os bicos destes seios, que também deves morder de leve, se tornaram durinhos… E há também os lábios de baixo, onde sinto palpitações, e deves trazer aqui a tua língua e teus próprios lábios no meu sexo úmido, e sentirás também outros grãos e um gosto único, e quem sabe  poderás decifrar neles, como na leitura dos cegos, a inscrição: labirinto do amor. Ou escolhe outras palavras, obscenidades, por que não?” (SANT’ANNA, 2011, p. 117).
 
Interessante notar como essa linguagem transgressora vai ultrapassando os limites e extasiando o seu receptor, o conduzindo ao prazer erótico da narração. Octavio Paz define muito bem a relação entre linguagem e erotismo:
“A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota idéias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora” (PAZ, 1994, p. 12).
 
Observamos que a abordagem desta linguagem erótica além de seduzir o receptor, Antônio Fernandes também o leva a querer praticar o ato descrito. “Seu poder de convencimento era tal que me ergui e já quase me ajoelhava para praticar o que estava marcado no texto, mas ela estendeu a mão para que eu me detivesse: Aqui é a linguagem que comanda tudo, só a linguagem”. Vemos aqui que o corpo representa o texto que vai comunicar eroticamente na voz ora feminina e ora masculina da personagem Jana.
Além do corpo-texto aqui analisado, pontuamos a posição do homem, que “sentado”, representa um estado passivo, mas que quer assumir a posição ativa (do ato sexual), ele se “levanta” para assumir a posição ativa de homem, mas o corpo-linguagem o impede.
Logo a seguir notamos que a narração do texto e a exibição de Jana para Antônio Fernandes mudam de posição, o corpo vai representar a linguagem erótica do texto posicionando-se de forma passiva: “(…) pois foi ela, Jana, quem se ajoelhou diante de mim, estando eu de pé”.
Bataille nos explica que,
“A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. Esse termo, dissolução, corresponde à expressão familiar vida dissoluta, ligada à atividade erótica. No movimento de dissolução dos seres, o parceiro masculino tem em princípio um papel ativo, a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído” (BATAILLE, 1994, p. 41).
 
Embora a ação de ajoelhar-se seja passiva, a linguagem do corpo se torna ativa, representando assim eroticamente o texto tatuado.  Observamos explicitamente neste trecho do capítulo no qual a personagem Jana diz a Antônio Fernandes: Já que falarei como que com tua virilidade em minha boca, prefiro a língua alemã para o som deliciosamente obsceno de uma mulher falando com um pau em sua boca, para o êxtase dela e de seu homem”.
Logo, o personagem Antônio Fernandes usa a sua linguagem obscena em resposta à representação de Jana: “Assim você me mata de desejo de gozar dentro de sua garganta, viu, sua puta obscena?”, mas ao chamá-la dessa maneira “puta obscena”, comparando-a a uma puta, Jana retruca afirmando que o corpo não é a mercadoria e sim o texto tatuado. A puta vende o corpo, Jana está vendendo o texto que está tatuado no seu corpo.
Antônio Fernandes questiona e duvida da autoria do texto tatuado: “Kafka? Como saber? Kafka jamais desceu ao pornográfico. E fiquei em dúvida se você não inventava tudo na hora”.
Segundo Jana, o texto é um amor emergencial escrito por Kafka em um sanatório de tuberculosos para ser enviado a sua namorada, Julie. Jana ainda menciona que Kafka nunca o leu para os amigos no café Arcos nem mesmo o mostrou a Max Brod.
A seguir a personagem continua a recitar o texto de amor emergencial de Kafka:
“Atravessas o meu corpo que é igual a um corredor de castelo, ou de um museu, em que estão dependurados pedaços de sonhos, quadros vivos, com cenas em que sou o objeto de desejo e prazer, e também eu sinto o prazer e a delicia de ser penetrada nessa cópula da carne e das palavras. Um corredor ébrio em que se ouvirão gemidos e suspiros e se verão letrinhas talhadas que são como insetos ou vaga-lumes na escuridão vagando sobre mim, nua. E conheço segredos que retardam ao máximo o gozo de um homem, meu sexo que te envolve com a textura aveludada das flores úmidas e te ensinam os segredos das sacerdotisas desse templo do amor em que se ouve uma música quase silenciosa, e te deixas levar, teu corpo teu corpo e teu espírito, o concreto e o abstrato, e é isso, principalmente que tenho a te oferecer, e fodo com as palavras e sou fodida por elas” (SANT’ANNA, 2011, p. 119).
 
Atrevo-me a afirmar que nessa passagem, até as palavras servem como espécie de corpo de linguagem, são penetradas e penetram saciando assim o desejo dos amantes como também erotizando o corpo-texto de Jana o qual recepciona Antônio Fernandes.
A cena continua e Jana, dá dois passos para trás e senta-se em uma poltrona negra, as letras tatuadas continuam visíveis em seu corpo. Segue o texto de Kafka:
“E eis que tu entras em mim e sentes os meus seios como se fossem teus, e assim também o meu sexo, e te tornas um dos raros homens a conhecer em si o que é o prazer feminino sem limites, o que é ser mulher, tu desaparecendo em mim, estás sentindo? E sou capaz de pronunciar palavras que de hábito não poderia pronunciar, mas também as palavras cruas, mete em mim, Franz, o teu pau se perde em meu interior, essa febre dos tísicos que te toma, esse arrepio que te acaricia, o meu perfume único entre todos os perfumes, e nossos tremores como que agônicos, esse desfalecer, essa pequena morte” (SANT’ANNA, 2011, p. 119).
 
Para Bataille, o ser humano é um ser descontínuo. Nasce só. Morre só. O paradoxo é que se, por um lado, queremos sempre conservar essa descontinuidade (tememos a morte), por outro, sentimos falta da continuidade perdida ao nos percebermos como ‘indivíduos’ (desejamos a morte).
Considerando que o erotismo é sagrado e divino, porque possuem, em sua base, a violência e a intensidade do erótico, ambos participam do mesmo impulso, desta forma, essa “pequena morte” representa para o teórico Bataille o “orgasmo”, o “gozo”. O diálogo com a arte acontece, portanto, na liberdade que resulta da consciência, e mesmo da vivência, desse erotismo.
De volta à narrativa, notamos que possivelmente esse foi o último trecho do texto tatuado de Kafka encenado pela atriz Jana. Podemos observar que a personagem representa também esse “desfalecer” e a “pequena morte” da mesma maneira do texto representado em seu corpo. Segue parte da narração do conto que nos permite ilustrar a cena:
“(…) e de repente ela ficou em silêncio, ressonava suavemente abandonada na poltrona e perguntei-me se ela não teria mesmo tomado drogas no banheiro com Peter. O texto devia ter terminado ali, ou não, mas o certo era que ela se calara e dormia, e a luz do refletor fora desligada e procurei Peter com os olhos e só pude ver sua sombra no sofá e ele também parecia dormir de rosto virado para a parede” (SANT’ANNA, 2011, p.119-120).
 
A linguagem erotizada que observamos ao longo das citações do corpo-texto nos remete a Foucault, que afirma a sexualidade como experiência contemporânea. Essa sexualidade,
“(…) encontrou uma verdade natural, somente hoje nossa perspicácia positiva permite decifrar. Essa erotização, jamais teve um sentido mais natural e sem dúvida só tenha conhecido como “felicidade de expressão”, isto, no mundo cristão dos corpos decaídos e do pecado” (FOUCAULT, 1963, p. 28).
 
Ainda de acordo com Foucault, “a mística e espiritualidade provam que não podiam absolutamente dividir as formas contínuas do desejo, embriaguez, penetração, êxtase, extravasamento, porque faz desfalecer”.
Estes movimentos pareciam conduzir sem interrupção nem limite ao centro de um amor divino do qual eles eram o último extravasamento e a fonte, neste caso o princípio.
A sexualidade moderna, mencionada por Foucault, não foi ter encontrado de Sade a Freud, a linguagem da razão ou da sua natureza e sim a violência dos seus discursos.
A linguagem, na violência do discurso, é corrompida, ou melhor, como aplica Foucault “desnaturalizada”. Ela é “lançada a um espaço vazio, onde ela só encontra a forma tênue do limite”.
Não liberamos a sexualidade, mas a levamos, exatamente, no limite: limite de nossa consciência, já que ela dita finalmente a única leitura possível, para a nossa consciência, de nossa inconsciência: limite da lei, conteúdo universal do interdito, limite de nossa linguagem.
Nada é negativo nessa linguagem transgressiva, a transgressão afirma o ser limitado, levando-o a existência.
O olho de Bataille, em sua novela, “História do olho”, define o espaço de vinculação da linguagem e da morte, lá a linguagem descobre seu ser na transgressão dos seus limites.
 
 

  • A TATUAGEM NO CORPO-ARTE

 
A arte tatuada neste corpo é um suposto texto de Kafka. Como sabemos a tatuagem sempre existiu na cultura humana. Antes, de forma ritualística em alguns povos e tribos, para diferenciar castas sociais ou o poder hierárquico. Hoje, em nossos tempos modernos, como uma atitude. Para alguns, como moda; para outros, como um estilo de vida. A questão é que, independente das razões ou motivos, ter no corpo impressos – por meio da tatuagem – desenhos, signos e até textos nos leva a ver o corpo como um livro que conta uma experiência, um modo de ser, de ver e sentir o mundo.
Neste capítulo da obra de Sérgio Sant’anna, o elemento corpo transgride as perspectivas vigentes normativas, pois o corpo da personagem é inteiramente tatuado, considera-se que são matizes da arte, mergulhados em sentimentos e sentidos que interpretamos como corpos maculados e marginalizados devido suas intervenções textuais cravadas na pele.
A cada nova experiência, seja ela de amor, dor, aprendizagem, representação (como encenou Jana para Antônio Fernandes) ou mesmo, pelo viés da estética, o corpo assume cores tantas com textos e imagens capazes de transcender meros dizeres de sentimentos e sensações. Enquanto exibe seu corpo nu e recita para Antônio o texto kafkiano que tem impresso no corpo, Jana coloca em evidência o caráter teatral, encenado – estamos aqui em pleno domínio da representação – de sua performance literária e dramática.
A pele passa a se tornar uma epiderme, o corpo/texto metamorfoseado por Jana nada mais representa a própria arte, ou melhor, o texto de Kafka tatuado em sua pele que desperta em seu receptor sensações e desejos eróticos de possuir esse corpo linguagem.
A transgressão, conforme Foucault, não opõe nada a nada, não triunfa sobre os limites que ela apaga, ela afirma o ser ilimitado abrindo-o à existência. A transgressão é pensada como a ultrapassagem de limites históricos. O limite está dentro do jogo da lei. A transgressão derruba o limite e a lei, não gira em torno deles. É no movimento do limite e transgressão, onde a resistência entrará nesse jogo, que num dado momento algo é perdido, o limite fica para trás, e, diante do ser ilimitado que se abre, a transgressão movida pela resistência cria um novo limite, um novo assujeitamento, e assim incessantemente.
Bezerra nos anuncia em seus estudos:
“O corpo que transgride seus limites através da pele, dando-lhe possibilidade de vislumbrarmos painéis vivos como se fora um corpo-grafite, é senão, um corpo que reiventa-se para continuar sua caminhada subvertendo as ações cotidianas do sentir e fazendo-o parar a partir da escrita cravada na pele. Esta arte que modifica a pele e a deixa viva salta aos olhos dos outros e se faz significar” (BEZERRA, 2014, p. 6).
Interessante notar que há uma imersão do sujeito no social. Bataille nos afirma que “A transgressão organizada forma com o interdito um conjunto que define a vida social.” Intitulamos de organizada por serem pictografias com sentido coletivo. Bezerra (2014) ainda acrescenta que não se tatua em qualquer lugar, qualquer signo e para qualquer um ver. Constatamos tatuagens que têm sentidos muito íntimos e abriga verdades compartilhadas por determinados sujeitos.
Desse modo, o corpo-arte, ou seja, o corpo tatuado da personagem Jana desvincula-se de culpas e assume diversas possibilidades artístico-discursivas com variados significados.
 
 

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

 
Transgredimos pelo prazer. No objeto de estudo “O texto tatuado” observamos que o jogo da arte está acontecendo, o gozo, essa transgressão, ou seja, a arte se criando.
Há um desejo de intimidade com o universo que lança o excesso a seu ponto de fuga. Tudo acontece como se, no limite, as ações devassas do narrador respondessem a uma exigência superior, a insaciabilidade da devassidão por parte de Antônio Fernandes seria uma passagem desse ser social e animal, humano e desumano que ao projetar-se além recria de maneira incessante.
Não apenas o capítulo estudado como também O livro de Praga possibilitam uma fruição artística que deixa efetivamente marcas – de uma tatuagem no corpo – na sensibilidade do receptor.
Refletindo sobre o objeto “O texto tatuado”, e como aponta Nascimento,
“(…) o autor da obra (Sérgio Sant’anna) ousadamente transita nos dois reinos, o real e o irreal. Todavia sensível ao belo e à modernidade cambiável e fluída, ele transgride profundamente tudo o que o impede o aparecimento de um novo ser artístico (…) a transgressão é o compasso para o ato narrativo mais criativo, pois sensível ao fato de a obra de arte se circunscrever a determinados empecilhos que a separam da realidade mesma do ser humano, Sérgio Sant’anna a inscreve em seu texto espaço” (NASCIMENTO, 2015, p. 3).
O autor hábil criador literário seduz o leitor com sua narrativa enxuta e ágil e ao mesmo tempo constrói um conto intrigante e fascinante. Busca arte, não apenas dentro de um museu, mas sim na rua, em um pub, em lugares subterrâneos, às vezes com pouca luz, como no cenário do conto estudado, o qual Peter conduz Antônio Fernandes à encenação/performance do corpo-texto. Dessa forma leva o leitor a situações reais e irreais, dá voz ao narrador que flana nas ruas de Praga em busca da arte para escrever um livro.
Nessa interartes a obra dialoga com outras artes: música, escultura, teatro, literatura; enfim nos conduzindo a um caminho cheio de transgressões que se consolida na construção da arte, onde nesse transgredir exercitamos a plena liberdade enquanto ser pensante na literatura.
O corpo, no conto “O texto tatuado” é um livro para ser lido e contemplado por dentro e por fora, devemos sair do tradicional e ver o mundo às avessas. A arte que não provoca estranhamento não é arte.
Tal qual Sade, “O texto tatuado” possui uma relação visceral com a arte.  Essa arte representada como a literatura e o corpo como espécie de linguagem nos apresenta supostamente um inédito texto de Kafka, ou seja, a arte – literatura que está tatuada no corpo- linguagem. Essa linguagem que fala, estala, encena e transmite eroticamente, loucamente, ultrapassa o racional, o real pra projetar o irreal, o irracional. Atrevo-me a citar Bataille, “sendo inorgânica, a literatura é irresponsável. Nada pesa sobre ela. Pode dizer tudo”.
 
 

  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
BATAILLE, Georges. História do Olho. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo; Cosac Naify, 2003.
BEZERRA, S. Josenildo.  Corpo-arte, Corpo-sentido, Corpo-linguagem. A constituição da sociedade/ sujeitos transgressores a partir de tatuagens. Actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT26/GT26_SoaresBezerra.pdf, 2014.
FOUCAULT, M. “Prefácio à transgressão”. In Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1963. V. III.
NASCIMENTO. Maria Teresinha Martins do. Estética contemporânea como transgressão aos cânones literários tradicionais. (texto). 2015.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo:
Siciliano, 1994.
SANT’ANNA, Sérgio.  O livro de Praga – narrativas de amor e de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 102-122.