O CASAMENTO E A SOCIABILIDADE BURGUESA EM HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE, DE MACHADO DE ASSIS


 

Dayane Mussulini

(Doutoranda em Letras – UNESP/Assis)

 
 
RESUMO: “Ernesto de tal”, “As bodas de Luís Duarte” e “O relógio de ouro” são produções de Machado de Assis integradas à sua segunda coletânea de contos, Histórias da meia-noite, de 1873. As três narrativas apresentam como temática o casamento, abordado em três momentos distintos: a primeira narra o namoro; a segunda, a celebração do matrimônio e a última, um episódio conflituoso na vida de um casal. A presente leitura dessas histórias, sendo assim, visa a um flagrante na sociabilidade burguesa do período, desvendada a partir da crítica do autor fluminense sobre a concepção romântica do casamento. Com essas questões, é possível observar um escritor sempre atento às questões literárias e culturais de seu país.
 
Palavras-chave: Machado de Assis; narrativas; casamento; sociabilidade burguesa.
 
ABSTRACT: “Ernesto de tal”, “As bodas de Luís Duarte” and “O relógio de ouro” are short stories by Machado de Assis included in his second collection, Histórias da meia-noite, published in 1873. All three narratives have marriage as their main theme, which comes up in three different moments: the first one narrates courtship; the second, a wedding celebration, and the last one, an episode of conflict in the life of a couple. Therefore, our reading of these stories seeks to present a glimpse of the bourgeois sociability of the period, unveiled by the author’s critical view of the romantic conception of marriage. Our purpose is to observe Machado as a writer who is very thoughtful of the literary and cultural matters of his country.
 
Keywords: Machado de Assis; narrative; marriage; bourgeois sociability.
 
MINICURRÍCULO: Dayane Mussulini é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras “Literatura e Vida Social” da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. Defendeu sua Dissertação de Mestrado em março de 2015, intitulada Uma ponte entre o Brasil e a França: Histórias da meia-noite, de Machado de Assis, em que analisa a presença da literatura e da cultura francesas na construção de sentido das narrativas da segunda coletânea de contos de Machado de Assis. Atualmente estuda, também sob orientação da Profª. Drª Daniela Mantarro Callipo, a importância da crítica literária francesa do século XIX na elaboração de uma escritura crítica de Machado de Assis.
 
 
 
 
 
 
O CASAMENTO E A SOCIABILIDADE BURGUESA EM HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE, DE MACHADO DE ASSIS
 
 
Dayane Mussulini
 
(Doutoranda em Letras – UNESP/Assis)
 
 
INTRODUÇÃO
 
Histórias da meia-noite é a segunda coletânea de contos de autoria machadiana, publica        da em 1873. As seis narrativas ali inseridas foram todas publicadas, originalmente, no Jornal das Famílias (1863-1878), importante revista mensal que tinha como principal programa o ensinamento moral e o entretenimento das famílias burguesas do Rio de Janeiro, sobretudo das mulheres.
Para cumprir o propósito do periódico, os volumes eram compostos de várias histórias com forte caráter moral e, em alguns casos, religioso, sendo Machado de Assis um de seus principais colaboradores. No entanto, recentes pesquisas acadêmica[1]
 
apontam para um caso de subversão do autor fluminense, pois, na medida em que ele atendia algumas das propostas da revista, o fazia de modo diferenciado. Isto é, embora seja possível perceber certo tom de moralidade em suas narrativas, elas contêm ambiguidade e ironia, quando não humor, capazes de desassociar a ideia de moralidade com aquela de correção de vícios e indicando apenas uma observação dos costumes da sociedade contemporânea. Esse traço característico da produção machadiana pode ser encontrado nas obras dos moralistas franceses, como La Rochefoucauld, por exemplo, que denunciava os hábitos da população, não com o intuito de ensinar uma maneira de corrigi-los, mas de possibilitar a reflexão sobre eles.
Um dos temas frequentes nos textos de Machado pertencentes à revista de Garnier era o matrimônio, motivo pelo qual essas narrativas foram consideradas, durante muito tempo, românticas e de pouco proveito para o cânone da literatura brasileira. A partir de um novo olhar sobre a produção machadiana, contudo, essa perspectiva preconceituosa passa a ser redirecionada, dedicando-se, então, a uma análise minuciosa de seus detalhes, que revelam a preocupação do autor fluminense em discutir os problemas da sociedade contemporânea por meio de seus escritos.
É preciso considerar que as histórias publicadas no Jornal das Famílias, todavia, fazem parte dos anos de formação de Machado de Assis, sendo um espaço muito profícuo para a prática de sua escritura. Sonia Brayner (in BOSI, 1982) denomina esse espaço de laboratório ficcional, pois é onde ele desenvolveria a sua escrita. Sílvia Azevedo (1990), nesse sentido, chama a atenção para a imensurável importância da revista para o processo de amadurecimento do gênero conto dentro da ficção machadiana e, até mesmo, nacional, tendo em vista que, naquela época, o gênero era pouco praticado em nosso meio. Por isso, é comum que os primeiros enredos tenham dificuldades de ser considerados contos. Na verdade, opta-se pelo termo narrativas e, somente a partir da coletânea Papéis avulsos (1882), é possível enquadrá-los no gênero com mais facilidade. Porém, embora haja essa problemática na classificação dos textos, não se pode deixar de lado a sua importância para a construção da literatura brasileira[2].
Pensando nessas questões, o presente artigo tem como objetivo apresentar três narrativas de Histórias da meia-noite, “Ernesto de tal”, “As bodas de Luís Duarte” e “O relógio de ouro”, a partir da temática do casamento, discutindo o seu papel fundamental para a manutenção da sociedade burguesa do século XIX brasileiro. Os três textos também carregam marcas de intertextualidade com a literatura e a cultura francesas, o que auxilia na discussão da própria literatura e cultura nacionais, dada a importância da França como centro irradiador da cultura ocidental.
 
O namoro em “Ernesto de tal”
Dividido em seis capítulos, “Ernesto de tal” estampou as páginas do Jornal das Famílias nos meses de março e abril do mesmo ano de 1873, quando foi inserido em Histórias da meia-noite, com a mesma divisão, marcada por algarismos romanos. A história gira em torno da personagem homônima, um jovem disposto a todos os riscos para se unir a Rosina, moça loureira que, por sua vez, deseja sobretudo casar-se.  
Alguns capítulos do enredo dão conta de apresentar, cada um, as personagens que compõem o triângulo amoroso. Ernesto, sendo assim, está em foco na primeira parte, momento em que o narrador heterodiegético cria um clima de mistério ao fazer uma série de suposições sobre a identidade do protagonista e, dessa forma, estabelece, também, uma relação íntima com o leitor, em uma espécie de tête-à-tête. Na segunda subdivisão, é a vez de Rosina aparecer no centro das atenções, por meio de uma descrição física, em especial de seus olhos e de seus rápidos movimentos, denunciando o seu espírito namoradeiro. O rapaz de nariz comprido, por seu turno, presente desde o segundo capítulo, porém, com a sua personalidade levada mais a fundo apenas no quarto.
Enquanto as personagens entram em cena, os conflitos vão, de igual modo, surgindo e intensificando a tensão da narrativa. Tendo como objetivo principal o matrimônio, “as intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugais. Queria casar, e casar o melhor que pudesse […] e havia uma coisa pior que casar mal, que era não casar absolutamente” (ASSIS, 1977, p. 135)[3]. Por isso, a donzela acumulava pretendentes, a fim de que seus planos, de algum modo, fossem consumados.
Armava encontros concomitantes com Ernesto e o rapaz de nariz comprido, o que alimentou as desconfianças de ambos os namorados sobre a infidelidade da moça, logo comprovada e vingada conjuntamente pelos dois. No entanto, ela conseguiu se redimir com Ernesto e, no desfecho da história, o narrador nos informa que eles se casaram e o rapaz de nariz comprido tornou-se amigo íntimo do casal.
Em um outro artigo[4], discutimos a possibilidade de “Ernesto de tal” ser lido como uma paródia da comédia francesa Le barbier de Séville,
 
de Beaumarchais. A ideia parte da escolha do nome Rosina, visto ser incomum em território brasileiro e, também, uma forma aportuguesada do epíteto Rosine, protagonista da obra francesa em questão. A partir de então, a intertextualidade se sustenta com a aproximação incontestável de ambos os enredos, a qual, aliás, é estendida com relação às semelhanças formais. A prosa machadiana contém características próprias do gênero dramático; por exemplo, a divisão em capítulo, assim como são os atos e cenas das peças teatrais, e a dinâmica da narrativa por meio dos constantes diálogos e mudanças de cenários, traço também pertencente ao drama. A paródia se confirma, portanto, devido às diferenças fundamentais de um texto para o outro, apontando a presença da comédia francesa como uma tentativa de memória da literatura. Ou seja, o narrador machadiano escolhe esse intertexto para elucidar que a literatura se (re)cria por meio de si mesma. No caso, defendemos a hipótese de que a partir de outras literaturas, inclusive estrangeiras, torna-se possível a construção da literatura nacional.
Essa intertextualidade, entre outras coisas, permite uma interpretação do significado do matrimônio, não apenas na opinião de Rosina, como também na de grande parte da – senão na de toda – população brasileira oitocentista burguesa. O casamento, sendo assim, instala-se como possibilidade de solução para os seus desejos, uma vez que a moça “não era inteiramente avessa aos impulsos do coração e à filosofia do amor; mas tinha ambição de figurar alguma cousa, morria por vestidos novos e espetáculos frequentes, gostava enfim de viver à luz pública” (idem, p. 131). Isto é, para que pudesse participar da sociabilidade burguesa da época, era preciso ter o título de esposa. Nesse sentido, o casamento tornava-se mais urgente que a posição econômica. Embora tenha tido o cuidado de tentar atender ambas as questões – motivo pelo qual preferia o rapaz de nariz comprido, que tinha condições financeiras um pouco superiores àquelas de Ernesto –, não obteve sucesso nas duas empreitadas, já que o rapaz de nariz comprido era mais difícil de ser enganado que Ernesto, considerado pela própria donzela um palerma.
Outro aspecto presente na citação acima é o descompasso entre o matrimônio e o sentimento amoroso, confirmado com consciência por Rosina. Amor e casamento, como sabemos, fazem parte de uma combinação do século XIX, que o Romantismo fez questão de cultivar. Embora a produção inicial de Machado de Assis seja classificada de romântica, raros são os casos em que vemos o amor como o centro das decisões das personagens. Rosina, nesse sentido, seria a representação da união conjugal enquanto contrato social, basilar para a manutenção da sociedade tal e qual e, consequentemente, para que tivesse um papel a ser desempenhado naquele ambiente. Ernesto, por outro lado, ainda está preso às concepções românticas do casamento, uma vez que é um jovem ingênuo, desejoso sobremaneira da tranquilidade amorosa por meio de sua união com a moça namoradeira.
Com perspicácia, Rosina se aproveita do espírito e do sentimento de seu namorado para obter sucesso em sua empreitada, fingindo sofrer com o rompimento deles. As características da jovem compõem uma personagem muito distinta daquelas criadas em nosso meio literário oitocentista, uma vez que não carrega em si a ingenuidade e a crença no amor idealizado. Ao contrário, apesar de estar ciente de sua posição naquela sociedade, é ela quem arquiteta os planos para ter suas ambições alcançadas. A sua preocupação, portanto, era com o status e a vida pública, razões pelas quais desejou sobremaneira o matrimônio como forma de concretizar esses anseios.
A dissimulação de Rosina, no entanto, permite a construção de uma personagem ambígua. De um lado, a aversão pelo seu comportamento loureiro e pelas vezes que enganou seus namorados, sobretudo Ernesto. Neste aspecto, o narrador contribui com a empatia pelo protagonista, utilizando adjetivos como “pobre”, “mísero” e “desgraçado”, por exemplo, para caracterizá-lo. O que também estaria expresso no título da narrativa, tendo em vista que o pronome “tal” sugere, ao menos, duas ideias antitéticas: uma de peculiaridade, como na expressão coloquial “aquele cara é o tal”, denotando a sua superioridade; e a outra, o oposto, significando falta de especificidade, como em “fulano de tal”. De outro lado, a heroína machadiana pode ser percebida como modelo da mulher moderna, capaz de ter o total controle sobre o seu amado.
O matrimônio é notado, portanto, a partir de uma ótica irônica, que aponta para a falácia do casamento por amor. Rosina, tendo consciência desse fato, busca uma maneira de casar o melhor que pode, respeitando os contratos sociais e, mais do que isso, querendo neles se inserir.
 
A celebração de “As bodas de Luís Duarte”
Acertados os detalhes do consórcio, é chegado o momento de sua celebração.  Assim, “As bodas de Luís Duarte”, também publicadas em 1873 no Jornal das Famílias, nos volumes de junho e julho e inseridas no final do mesmo ano em Histórias da meia-noite, narram os preparativos e a festa de casamento entre Carlota e Luís Duarte.
O início da história, dando-se in media res, coloca em foco José Lemos, pai da noiva, ocupado com a decoração da casa para recepcionar os convidados. Desde então observa-se o seu pedantismo, ao fazer questão de dar aparência de um erudito sem realmente sê-lo. Exemplo disso é a escolha que faz dos quadros para enfeitar a casa: a Morte de Sardanápalo e a Execução de Maria Stuart. A primeira pintura foi criada por Eugène Delacroix, em 1827 e é baseada na obra de Lord Byron que, por sua vez, conta a história do antigo rei da Babilônia, Sardanápalo, cuja ameaça de queda levou a ordenar o assassinato de suas mulheres. A tela, por meio de suas cores vibrantes, com a proliferação do vermelho e do dourado, bem como de seus contornos que dão movimento ao quadro, foi considerada uma afronta aos modelos neoclássicos, pois rompia com essa estética. Embora D. Beatriz aponte para a incoerência das pinturas com respeito às bodas, há a preocupação de José Lemos em se mostrar um erudito, um conhecedor da História e, igualmente, um admirador das belas artes, de modo que pouca relevância tinha o conteúdo dos quadros em relação à festa. O que importava, de fato, era a aparência de conhecedor da alta cultura. Já a segunda pintura poderia estar representada em várias telas, dentre as quais La mort de Marie Stuart, do francês Abel Pujol e Execution of Mary, Queen of Scots, do escocês Robert Inerarity Herdman. Apesar dessa indefinição, o tema do quadro seria o mesmo, trazendo em cena o dia da execução de Maria Stuart, que fora rainha da França e depois da Escócia e, tendo sido retirada de seu trono por conspiração, pediu ajuda à sua prima, rainha Elizabeth da Inglaterra, que se sentindo ameaçada, ordenou a prisão e, anos mais tarde, a morte de Mary Stuart.
Apesar dos quadros indicarem incoerência temática com respeito à festa nupcial, o que foi notado por D. Beatriz, eles apontam para o jogo de poder, também encenado no ambiente dessa narrativa, onde cada personagem desempenha um papel que lhe é próprio dentro da sociedade burguesa do século XIX brasileiro. Dessa forma, então, percebemos que a escolha do narrador não é gratuita, uma vez que os quadros impõem à história esse alerta.
Ao longo da narrativa aparecem cenas e personagens que dão sucessão à sociedade de aparências, preocupada, sobretudo, com o efeito de seus atos, deixando de lado a essência dos acontecimentos. Com uma espécie de câmera cinematográfica, sendo assim, o narrador machadiano percorre todas as personagens presentes na cerimônia, tecendo comentários sobre elas ou flagrando algumas de suas ações. A intenção é de apresentá-las de modo irônico e ambíguo, causando humor na leitura.
O narrador, contudo, por meio de um discurso jocoso e dissimulado, faz-se de desentendido ao dar a falsa impressão de que as características levantadas das personagens são definidas por terceiros. Dessa maneira, embora compactue com essas opiniões, gostaria de se ausentar de sua responsabilidade, de forma a mostrar que não é ele o autor de maliciosos comentários, sendo apenas o responsável por torná-los de conhecimento do leitor.
As descrições caricaturais, todavia, são mais sutis em relação às personagens femininas. Com a exceção das moças, o narrador utiliza o pronome de tratamento “Dona” para as demais senhoras, sendo que os homens são apenas chamados pelos seus nomes próprios – exceto Dr. Valença que era advogado e, em alguns momentos, quando opta por chamar José Lemos de Sr., quase sempre na tentativa de ironizar este tratamento mais formal, pois condizia com a superficialidade da personagem que tratava a filha com formalidades no momento em que era necessário um comportamento mais íntimo. Com isso, o narrador aponta para a questão social da mulher, ou seja, qual seria o seu papel representado naquela sociedade. Se à mulher cabia a submissão ao marido, pelo menos se vista de fora, no ambiente interno pode ser que tivesse um pouco mais de “autonomia”, por falta de melhor expressão. D. Beatriz, por exemplo, foi a responsável em dar as ordens aos escravos da família, enquanto o marido se incumbia de decorar, ele próprio, a casa. Também, o narrador deixa claro era D. Beatriz quem decidia muitos assuntos dentro de casa (ASSIS, 1977, p. 106):
 
O pai da noiva inclinava-se a que o casamento fosse celebrado depois do jantar, e nisto era apoiado pelo jovem Rodrigo, que com uma sagacidade digna de estadista, percebeu que, no caso contrário, o jantar sairia muito tarde. Prevaleceu entretanto a opinião de D. Beatriz.
 
A possibilidade de a mulher mandar e desmandar no ambiente doméstico, sendo a dona da(e) casa, explica o pronome de tratamento empregado para indicá-la. Essa “autonomia”, entretanto, é restringida ao espaço doméstico, uma vez que os assuntos externos, como a política e a economia, eram responsabilidades exclusivas do marido. Pela primeira vez em Histórias da meia-noite, o narrador traz em cena o núcleo familiar burguês do século XIX completo, com o homem, a mulher e sua prole, sem deixar de aludir, em raros momentos, à extensão da família, ocupada pelos criados, que assim como na narrativa, ficavam à margem da estrutura familiar do período.
Em meio a tantas personagens e situações, o leitor, ansioso pelo caso de romance que o título sugere, frustra-se ao perceber que Carlota e Luís Duarte não ocupam senão o mesmo espado que as outras personagens. A intenção do texto, portanto, está direcionada na representação de uma festa de casamento, bem como dos preparativos da mesma, de forma que o ponto de vista do narrador seja de cima, isto é, de alguém que observa esse evento social, dando atenção igual a todos os presentes, sejam eles os noivos, os pais, os padrinhos ou os outros convidados. Como em uma narrativa de costumes, o importante é trazer em cena o passo a passo de uma cerimônia essencial para a manutenção daquela sociedade. Para tanto, o narrador opta por oscilar entre as cenas e os sumários, na medida em que ora assume a sua posição de contador da história, ora permite que as personagens sejam mostradas por si; porém, sem nunca abandonar o seu posto de editor do texto. Convidados e noivos são, destarte, igualmente importantes: “Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente Porfírio davam sinais de si” (ASSIS, 1977, p. 110), posto que, aos olhos de José Lemos, tanto o “orador de sobremesa” quanto o noivo eram, da mesma maneira, imprescindíveis para a realização da cerimônia.
Acreditamos que a narrativa tece uma crítica, não em relação ao matrimônio de maneira ampla; entretanto, ao apresentar um enredo em que o casamento, já expresso no título, não aparece senão como pano de fundo, o narrador tem como intuito criticar a união conjugal excessivamente idealizada pela escola romântica. Embora ironizada, e até levada ao ridículo, em muitos aspectos, a família não é de todo satirizada. A censura aos costumes familiares só existe ao passo que há a prevalência do parecer em oposição ao ser. O que pode ser explicado a partir da atuação vazia e superficial de José Lemos com sua filha, em contrapartida, a relação terna e sincera de D. Beatriz com a moça.
A celebração, assim sendo, que parece ter começado com impaciência e tédio por parte dos convidados, termina com um “animadíssimo” baile, “que durou até às três da manhã”, regado a champagne e a vinho. Para o narrador, todavia, a história se encerra com a mesma ironia que se principia: “Mas o verdadeiro brinde dessa festa memorável, foi um pequerrucho que viu a luz em janeiro do ano seguinte, o qual perpetuará a dinastia dos Lemos, se não morrer na crise da dentição” (idem, p. 122). Dessa forma, parece estar claro que a ideia não é abominar o matrimônio, mas sim a idealização do mesmo que não se efetiva na prática. Além disso, ao sugerir uma possível “crise de dentição”, o narrador elucida um aspecto realista – sem deixar a ironia de lado – presente em seu texto. O mesmo tom de realismo, aliás, encontra-se nos pormenores descritivos, tanto os dos preparativos da festa quanto os das personagens e suas ações, permitindo, assim, afirmar que a narrativa é uma espécie de flagra na sociedade burguesa do Oitocentos brasileiro.
O flagrante também ocorre no que concerne à presença francesa, dado a sua importância no contexto fluminense daquele tempo. Tanto a personagem como o narrador dão, desse modo, mostras de sua erudição por meio de objetos oriundos da cultura francesa.
 
O casamento em “O relógio de ouro”
Após a festa das bodas é que o casamento se inicia, de fato. “O relógio de ouro”, neste sentido, responsabiliza-se por trazer ao livro um fato ocorrido na rotina de um casal que, até então, desfrutava a mais perfeita e invejável vida conjugal, ao menos se vista de fora. O conto, aparecendo pela primeira vez no Jornal das Famílias nos números de abril e maio de 1873, é a penúltima narrativa de Histórias da meia-noite.
O tom de mistério, já existente nas outras narrativas da coletânea, é praticado de modo mais enfático em “O relógio de ouro”, dado que o enigma move toda a trama e apenas se desfaz nas linhas finais da história. É, então, o enredo com maior contenção e tensão em sua estrutura, aproximando-se das definições clássicas do gênero conto praticado ao longo do século XIX.
O narrador onisciente começa a história dando pistas da sua autoridade enquanto organizador da narração, ao mesmo tempo em que parece querer estabelecer uma ligação com os textos anteriores, dando ideia de sequência. Mais uma vez, assim sendo, o leitor acredita que pode confiar nesse narrador quando ele não sabe dar todas as informações sobre as personagens. É preciso, contudo, estar sempre atento, já que este é o responsável pelo andamento da narrativa e, por conseguinte, pelas conjeturas que aquele pode realizar durante a sua leitura. O narrador, portanto, tem o domínio sobre os dados que escolhe tornar conhecidos do leitor. Luís Negreiros, dessa forma, ao chegar em sua casa e se deparar com um relógio masculino que não era seu, interroga a sua mulher diversas vezes e, não obtendo respostas, faz uma série de considerações, que podem ser as mesmas realizadas pelo narratário. Leitor e personagem, então, têm o conhecimento das mesmas coisas e desvendam juntos o mistério.
Luís Negreiros é o típico marido burguês oitocentista brasileiro. É o provedor da casa e, por esse motivo, o chefe da família. Passa parte do dia fora, trabalhando em seu escritório. Clarinha, por seu turno, é a esposa-modelo dessa sociedade; obediente e portadora de cândidos traços e trejeitos, responsável pelo cuidado com o lar. Notamos o furor de Luís Negreiros aumentar ao passo que Clarinha recusava-se a colaborar com o interrogatório proposto por ele. Mergulhada em uma aparente indiferença, levou o marido a gestos brutos com ela. Foi durante a discussão que se deu o aparecimento de Meireles, pai da moça, que habitualmente ia jantar na casa da filha.
A presença de Meireles é muito importante para a estrutura e o desenvolvimento narrativo, pois lhe dá movimento e faz com que o leitor, pela primeira vez, desvie sua desconfiança de Clarinha para Luís Negreiros. Em primeiro lugar, o sogro relembrou ao genro de que no dia seguinte seria o seu aniversário, de modo que este encontrasse aí a explicação para o tal enigma. Em segundo, após a entrada de Meireles, o narrador faz uma breve digressão para apresentar a vida de solteiro de Luís Negreiros, mostrando-o um galanteador, amante das noitadas e da vida mundana. É então, a partir da inserção desses detalhes, que o narrador chama a atenção do leitor sobre um passado que poderia comprometer a resolução dos acontecimentos presentes.
Essa digressão permite, de igual forma, que se conheça um pouco mais dessa sociedade fluminense. Observa-se que Meireles tinha receio da infelicidade da filha ao aceitar o seu casamento com Luís Negreiros, uma vez que conhecia os “costumes pouco austeros” do rapaz. Por insistência da moça, porém, o pai acabou cedendo e consentindo no matrimônio, também com a promessa de que o “leão impetuoso” se tornaria um “pacato cordeiro”. Ademais, o próprio Meireles havia sido um “marido pouco exemplar”, de sorte que essa revelação possibilita um panorama da sociabilidade exercida no período. Ainda que os homens pareçam não apresentar um perfil para a monogamia, assim como estava prescrita na Constituição do país, eles precisavam da união conjugal com uma mulher para dar continuidade aos interesses e à própria manutenção da burguesia. O casamento, dessa maneira, era a peça chave para os jogos de poder da época e, por isso, na maioria dos casos, sobretudo dentre a classe mais alta da sociedade, ele não se realizava por amor, mas sim por convenção social. Para a satisfação do prazer carnal, no entanto, era comum que os homens tivessem amantes.  Algumas vezes, esses relacionamentos adúlteros tinham como fruto filhos bastardos.
Como vimos em outras narrativas, as mulheres, muitas vezes, tinham o conhecimento dessa prática e, ainda assim, desejavam o matrimônio, tendo em vista que gostariam, também, de desempenhar o seu papel nessa sociedade. Se continuassem solteiras não teriam nenhum tipo de autonomia, nem mesmo a doméstica, tal como representa D. Beatriz, em “As bodas de Luís Duarte”. Além do mais, elas foram criadas para o casamento, daí a importância de revistas como O Jornal das Famílias, fundamentais para a reafirmação desses hábitos.
Em “O relógio de ouro”, portanto, encena-se mais um exemplo do consórcio enquanto manutenção dos interesses da sociedade burguesa oitocentista. O amor, se existisse, seria um item acessório e não teria nenhuma relação com a paz conjugal. Clarinha e Luís Negreiros, sendo assim, viviam um casamento, aparentemente, perfeito, cuja tranquilidade foi interrompida devido ao aparecimento de um objeto que denunciava o adultério. Este, por sua vez, pode até ser consentido, desde que escondido, pois quando trazido às claras fica mais difícil de ignorá-lo.
Como o marido não conseguia tirar nenhuma informação de sua esposa, achou necessário tomar uma atitude decisiva. Luís Negreiros, assim, realizou uma série de conjeturas, de modo a resumir o comportamento de sua mulher, que ora a mostrava vítima, ora culpada. O recurso narrativo é interessante pois convida o leitor a fazer as mesmas suposições. A carga dramática da história, dessa forma, chega ao seu ápice no momento em que o homem está prestes a ameaçar Clarinha de morte, caso ela não resolvesse o mistério. A mulher, por fim, entregou ao marido uma carta que viera acompanhada do relógio, na qual revelava ser este um presente de aniversário para Luís Negreiros de sua amante.
Cabe ressaltar o tom irônico e ambíguo empregado pelo narrador na construção de seu enredo. Algumas vezes, contou também com certo humor, por exemplo, ao descrever a reação do marido ao descobrir o objeto desconhecido: “Luís Negreiros gostava de charadas, e passa por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros” (ASSIS, 1977, p. 184).
Brincando com os trocadilhos que as palavras permitem, o trecho ilustra não um caso isolado da dificuldade em lidar com a traição, mas sim como essa questão era problemática para aquela sociedade, desde que a desconfiança do adultério recaísse sobre a mulher. A ambiguidade do narrador, assim sendo, foi necessária para manter a expectativa do leitor, sendo a ironia capaz de ampliá-la e de possibilitar um desfecho surpreendente, ao mesmo tempo em que catártico.
O narrador, entretanto, já revelava a posição de cada personagem diante da infidelidade conjugal a partir da escolha de seus nomes. Clarinha, de um lado, é o diminutivo de Clara, cuja origem latina remete ao significado de brilhante, ilustre. O nome adjetivo é também usado com a intenção de mostrar algo transparente, sereno e sem ambiguidade, bem acentuado. É nesse sentido, então, que o nome Clarinha prefigurava a sua condição de vítima, no que é auxiliada com o uso do diminutivo, trazendo a ideia de fragilidade. Luís Negreiros, por outro lado, possui um sobrenome relativo à cor negra, ao que é obscuro e escondido, indicando, assim, o oposto daquilo que é claro, tendo em vista que a ausência de luz impossibilita de se enxergar com clareza. O nome Luís Negreiros, portanto, pressupunha a sua responsabilidade no ato adúltero. Não obstante as designações transparentes das personagens, o narrador lança mão de estratégias narrativas na tentativa de confundir o leitor, indiciando em diversas vezes o comportamento suspeito de Clarinha, ao mesmo tempo em que absolvia Luís Negreiros em sua empreitada angustiante na solução do mistério.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As três narrativas analisadas, entre outras coisas, têm como semelhança a temática do casamento, cada uma ocupada em narrar um momento distinto desse acontecimento social. Se, durante muito tempo, esse tópico foi encarado com depreciação por parte da crítica machadiana, já há algumas décadas, os pesquisadores se esforçam para mostrar a sua relevância. Com a tese de Doutorado da professora Sílvia Maria Azevedo (1990), neste sentido, começou a ser percebida a subversão do narrador machadiano na composição de suas personagens femininas. Como a maioria de suas narrativas, nesse período, eram destinadas ao Jornal das Famílias, a subversão fica ainda mais evidente como maneira de “desautomatizar” as leitoras, até então acostumadas com leituras românticas amenas, produzidas a partir de um modelo esquemático pronto, oriundo, sobretudo, dos folhetins melodramáticos franceses.
Tivemos o intuito de mostrar como Machado de Assis reagia sobre a concepção do matrimônio e de sua importância para a manutenção da sociedade burguesa daquela época. Para isso, foi preciso tecer personagens femininas capazes de buscar um espaço, ainda que mínimo, nesse ambiente, colaborando, também, para a dissociação do casamento com o sentimento amoroso.
Ao colocar em cena essas histórias, percebemos que as mulheres não se iludiam com o casamento, uma vez que tinham consciência do seu real significado: a possiblidade de participar da sociabilidade burguesa de seu tempo. Ao constituir uma família, teriam um papel a desempenhar; sem ela, dificilmente o fariam. Por isso, suportariam o adultério, entretanto, não conseguiriam conviver com ele às claras, por questões que vão além dos hábitos de uma ou de outra época.
As primeiras narrativas machadianas, portanto, embora abordem o tema das bodas, não o fazem de maneira romântica. Ao contrário, fazem criticando, justamente, a concepção romântica idealizada do matrimônio, que não existia em meio à burguesia, preocupada em manter os seus privilégios. A crítica, sendo assim, também não se dirige ao casamento enquanto contrato social, mas apenas à tentativa de escondê-lo atrás de uma fantasia romântica.
Com isso, Machado de Assis coloca em foco questões fundamentais para a manutenção da sociedade na qual vivia, de modo a pode ser considerado um formador de leitores e leituras atuantes, ainda que com a aparência de amenidades.
 
 
REFERÊNCIAS
 
ASSIS, Machado de. Histórias da meia-noite. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
 
AZEVEDO, Silvia Maria de. A trajetória de Machado de Assis: do Jornal das Famílias aos contos e histórias em livro. Tese (Doutorado em Letras). São Paulo: USP, 1990.
BARTHES, Roland. O efeito de real. In: Idem. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 158-65.
BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis: antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. Org. Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CRESTANI, Jaison L. Machado de Assis colaborador do Jornal das Famílias: da periferia do Romantismo para o centro da literatura brasileira. Dissertação (Mestrado em Letras). Assis: UNESP, 2007.
MUSSULINI, Dayane. Uma ponte entre o Brasil e a França: Histórias da meia-noite, de Machado de Assis. Dissertação (Mestrado em Letras). Assis: UNESP, 2015.
SAMOYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008.
 

NOTAS AO TEXTO
[1] Como exemplo disso, ressaltamos a leitura de AZEVEDO, Silvia Maria. A trajetória de Machado de Assis: do Jornal das Famílias aos contos e histórias em livro. Tese (Doutorado em Letras). São Paulo: USP, 1990. E de CRESTANI, Jaison L. Machado de Assis colaborador do Jornal das Famílias: da periferia do Romantismo para o centro da literatura brasileira. Dissertação (Mestrado em Letras). Assis: UNESP, 2007.
[2] Vale lembrar que nessa época a maioria da população era analfabeta, sendo as narrativas publicadas em periódicos imprescindíveis para a criação de um público leitor e, consequentemente, da própria literatura.
[3] Em todas as citações, respeitamos a grafia original das palavras.
[4] O artigo aludido chama-se “A intertextualidade em ‘Ernesto de tal’: a presença de Le barbier de Séville como memória da literatura”, a ser publicado no número 5 da revista Non Plus, ISSN: 2316-3976.