Maria Aparecida Rodrigues Fontes
ALGUÉM PARA JANTAR
Estamos reunidos para gozar os bons momentos que nosso anfitrião nos proporciona, a salvo neste castelinho no sovaco do Cristo, com vista completa para a Lagoa Rodrigo de Freitas, ocupando nosso tempo com magníficos jantares regados a vinho e menus dignos de Marco Polo. De sobremesa, as histórias de Margarida. (Sexameron, 62)
O mito da América antropófaga ainda povoa o imaginário não apenas do europeu, mas também do próprio americano. Não è de sem razão que hoje a América dita pós-moderna lança mão da metáfora canibal para deslocar a cultura canônica. Em 1928, influenciado pela vanguarda e sobretudo pelo futurismo de Marinetti, Oswald de Andrade, poeta e escritor brasileiro, lança o Manifesto Antropófago como uma resposta carnavalizada à dependência cultural com a Europa, e como uma avaliação irônica das várias etapas da formação cultural brasileira.
Na busca de uma Identidade Nacional e Cultural, Oswald vai buscar na pratica antropofágica das sociedades indígenas e nos Essais, de Montaigne, sua fonte inspiradora, traduzindo esse rito sacrificial em uma atitude estética-cultural, cujo objetivo era recusar, incorporar e questionar, ao mesmo tempo, a cultura e o repertório literário dominante, revisando-os e incorporando-os à nova realidade brasileira. Não podemos esquecer que nos anos de 1910-1920 o Brasil vivia um momento de transição: saía de uma economia baseada no trabalho forçado, com a abolição da escravatura, para uma economia industrial capitalista. O período favorecia, pois, a propalação de novos movimentos culturais vincados numa linguagem da TERRA, que repudiasse um tipo de consciência nacional que trazia em sua gênese valores burgueses transplantados, e uma visão etnocêntrica que impedia o conhecimento da cultura autoctone, ou seja, de nossa gente. Dizia Oswald, muito bem humorado, que a antropofagia è o culto à estética instintiva da terra nova. É a redução, a cacarecos, dos ídolos importados, para a ascensão dos totens raciais. É a própria terra da América, o próprio limo fecundo.
Esse era o ideal de Oswald: dessacralizar a herança cultural do colonizador para inaugurar uma nova tradição, ancorada nas próprias raízes, como alternativa para representar uma identidade nacional cuja “origem” (se é que há origem) era apenas uma imagem, ou melhor, um contorno difuso. Na década de 1990 surgem no Brasil e pela América vários movimentos antropofágicos, a 24ª Bienal de São Paulo, por exemplo, cujo objetivo já não era mais aquele propalado pelos nossos Modernistas, mas outro, ou seja, aquele que dissemina na contaminação de estilos, nacionalidades e períodos históricos. A antropofagia chega à era da globalização em livros, filmes, romance e ensaio, entre outros motivos, como cultura híbrida e/ou descolonizadora.
Enquanto os pós-modernistas afirmam o palimpsesto como referência e visão de mundo, os nossos modernistas desejavam consolidar uma visão de mundo legítima. Esse tipo de literatura, como a de Oswald e a de Mário de Andrade, em Macunaíma, vem preencher esse espaço de significação fronteiriço, esse lugar vazio onde as identidades pululam e se reconceituam a cada momento e em constelações diferentes.
Se por um lado a antropofagia Modernista brasileira garantia de certa forma uma identidade cultural/nacional, porque emprestava à nova estética o senso de formação, baseado na acumulação discreta de momentos decisivos da nossa historia; por outro, o ato antropofágico dos anos 1990 faz surgir uma experiência cultural marcada pelo acumulação dos valores estéticos, pela negação da metafísica historicista, e por uma discreta violência (a la Hannibal), que encontra nas citações e referências o Leitmotiv do enredo, em nome do hibridismo pós-moderno. O Manifesto antropofágico apresenta-se como catarse e como “mote” que tenta transformar a dialética colonial e pós-colonial de submissões, dependências, vazios, e discursos subalternos em subversões hermenêuticas. A nossa tão propalada antropofagia não se confundiria, pois, com o canibalismo desconstrucionista e com a produção de simulacros da pós-modernidade. Contudo, a dinâmica das figuras antropofágicas, sejam elas modernistas ou “canibalescas” pós-modernas, tem como função a afirmação de uma identidade, de um ponto de vista e de uma determinada cultura, ironizando ou dessacralizando aquele que é “devorado”, nesse caso o Outro “colonizador”.
PRATO PRINCIPAL
“Nada me abre mais o apetite que uma história suculenta dessas – comentou Efebo. – E agora, meus amigos, vamos ao prato principal. Queiram passar ao salão.” (Sexameron, 25)
Em Sexameron: novelas sobre casamentos, Luiza Lobo retoma as figuras antropofágicas como uma forma de testemunho das experiências culturais e femininas. As figuras, entre as quais vemos a nossa experiência de mundo, não morrem, não se desfazem, elas se transformam, liberando na metamorfose a imagem que ilumina as suas transfigurações. Esse processo, algumas vezes, só pode ser evidenciado ao transformar-se em experiência a partir da narração. Essa tem sido a escolha de poetas, escritores, pintores e escultores que narram e pensam o mundo através de figuras. Luiza Lobo ao eleger a dinâmica antropofágica como intertexto e Leitmotiv de suas novelas delineia um mapa das experiências femininas, reconstruindo as condições sociais e histórico-políticas das quais emergem esses sujeitos plurais comprometidos com a “elaboração das representações culturais” de nossa época.
Nada nos abre mais o apetite do que fazer uma desleitura das tradições culturais logocêntricas, desde o Renascimento ao Modernismo. A geografia cultural empreendia por Luiza Lobo, em Sexameron, constitui uma cartografia dos espaços culturais que nortearam o pensamento Ocidental. Partindo da “estória-moldura” de Decameron, de Boccaccio, a autora compara, através do intertexto parodístico, o clima fin-de-siècle de decadência cultural, moral e político-ideológico do período da renascença com o contexto cultural do final do século XX: “Nas mencionadas novelas, aparecerão casos de amor – uns agradáveis, mas na maioria escabrosos, e todos ocorridos nos tempos antigos” (Sexameron, 11).
O Leitmotiv é a relação entre a peste bubônica na Itália de Boccaccio e o fenômeno da AIDS, no século XX. Como metáfora da “peste do sexo”, a AIDS é, em Sexameron, menos importante como a causa da extinção da espécie humana que o modo através do qual se presentifica nas relações culturais, ou seja, como um ato antropofágico. O que é o vírus da AIDS senão um instalar-se no corpo do outro e, a partir da apropriação celular deste corpo, produzir infinitamente novos vírus, até a morte. O vírus da AIDS, neste caso, é o próprio hipertexto.
A ESTÓRIA-MOLDURA
Margarida de Navarra é a personagem que encontra os fragmentos dos manuscritos de Sexameron e quem assume a voz da narrativa. O intertexto estrutural com o Heptameron é claro, mas não é tão importante quanto o deslocamento que ocorre na composição dessa personagem híbrida. Enquanto neste, ela é a escritora, em Sexameron, constitui um metapersonage e, um meta-autor :
Eu já fui Ana, Diana, Cíntia, Délia, Hécate, Luna, Febe, Selene ou Artemisa, mas pode me chamar de Margarida de Angoulême, a rainha de Navarra. Vou-lhes contar história relativas a um tempo não muito passado, mas tornado passado pela nossa história” (Sexameron, 15).
Entretanto o que nos interessa saber é de que modo Margarida se instala no corpo desse passado, apropria-se de suas “células”, para rescrevê-lo? Através de fragmentos da história e da cultura. O passado chega em forma de textos e de vestígios textualizados – memória, relatos, escritos publicados, manuscritos, arquivos, monumentos e outros que são introduzidos na narrativa menos para negar o valor da história cultural que para redefinir as condições desse valor. Como nos diz a própria Margarida: “Portanto, a fim de que para mim se corrija o pecado da Sorte, pretendo relatar estas novelas, ou fábulas, ou parábolas, ou histórias, ou contos, ou relatos, ou narrativas, ou fragmentos, ou o que quer que sejam” (Sexameron, 11). Segundo Linda Hutcheon (1991, p. 168), “a incorporação textual desses passados intertextuais como elemento estrutural constitutivo da ficção pós-moderna funciona como uma marcação formal da historicidade.” A narrativa encena a percepção de que aquilo que conhecemos sobre o passado provém dos discursos sobre esse passado – Sexameron expõe as nossas representações culturais do passado, sobretudo o nosso discurso acerca da crise da cultura neste fin-de-siècle. Aponta também para os processos de exclusão e testemunha, por um lado, o movimento de dispersão desses sujeitos em busca da própria identidade e de seu espaço; e, por outro, se impõe como uma outra voz. Esta voz desenha uma geografia diferencial, com níveis diversos de existência e zonas concêntricas das quais emerge uma “fala” modulada pelos planos diversos da história. Em Sexameron os estratos culturais superpostos, a partir do emprego da “estória-moldura”, correspondem a momentos diferentes da sociedade ocidental e, especificamente, brasileira.. O assassinato de Neusa é particularmente exemplar não apenas para a compreensão do processo de aculturação, da violência dos encontros culturais e da diferenciação do Brasil, mas porque promove uma reflexão sobre o desdobramento de planos culturais híbridos decorrentes da dispersão humana e da pluralidade, além de ser uma resposta às tensões culturais resultantes da urbanização e modernização do país.
O BANQUETE FEMININO
Luiza Lobo, num irônico repensar pós-moderno sobre a tradição cultural do Ocidente, elege como texto/tema, a partir da voz de Margarida, o feminino, conceituando-o nas inúmeras referências parodísticas. As várias vozes femininas que se cruzam, ao longo de todas as novelas, com o discurso da tradição, revelam não apenas os seus lugares sociais, mas também que seus espaços são, conforme Chanady (1994, p. X), “Marked by cultural difference and the heterogeneous histories of contending peoples, antagonistic authorities, and tense cultural locations.”
A paródia do clássico canônico europeu é uma estratégia político-ideológica de apropriação da cultura dominante branca, masculina, classe média, eurocêntrica e heterossexual. A indicação de dependência com o uso do cânone revela, irônicamente, sua rebelião em relação ao abuso desse mesmo cânone. Assim, o descentramento realizado por Sexameron ultrapassa a técnica de paródia, praticada pelos modernistas, pelo menos, até a década de 1970. E isto devido a alguns motivos.
Em primeiro lugar, o programa modernista articulava a noção de identidade cultural, baseada no reconhecimento de estruturas nacionais que se opunham de forma radical a noção de transplante cultural. A atitude antropofágica, proclamada no “Manifesto” de 1928, já presentificava a tensão entre o coloquial e a voragem, entre a estética tradicional e o novo sentido da arte. Entretanto, o boom antropofágico oswaldiano, a partir das construções parodísticas, era ainda uma atitude redutora, à medida que a eficácia estética baseava-se na contestação imbuída de nacionalismo e utopia. As vanguardas modernistas, nessa perspectiva, assumem a estética do choque e de ruptura.
A consciência moderna do início do século partia de três pressupostos que hoje o mundo não pode subscrever, ou seja, a idéia de uma ruptura radical com o passado e com a história, e o começo de uma nova era; a concepção racionalista da história como triunfo sobre a razão; e a crença no progresso. Para os primeiros vanguardistas, a ruptura com o passado, a ordem racional da cultura e a idéia de progresso estavam relacionadas, conforme Eduardo Subirats (1991, p.13), à “liberdade e paz social: [mas] para a consciência da modernidade tardia estão relacionadas com a angústia, a insegurança e o sentimento de não-liberdade.”
Enquanto para as vanguardas o desejo de ruptura vem acompanhado de uma idéia essencialista e utópica, no pós-moderno o desvio é entendido como processo. Fredric Jameson (1997, p. 14), observa essa diferença:
Na cultura pós-moderna, a própria ‘cultura’ se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era ainda um esforço ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se auto transcender. O pós-moderno é o consumo da própria mercadoria como processo.
Para exemplificar a falta de profundidade que surgiu a partir do deslocamento do conceito de obra para o conceito de texto, prolongado tanto na teoria crítica contemporânea, como na cultura do simulacro, Jameson compara o procedimento técnico de dois pintores que se utilizam do mesmo tema para compor suas telas: o de Van Gogh, “Um par de botas” e o de Andy Warhol, “Diamond dust shoes”. O autor interpreta a tela de Van Gogh como a transformação violenta do mundo objeto opaco do camponês na mais gloriosa materialização de um gesto utópico. Cita ainda a análise metafísica de Heidegger, organizada em torno da idéia de que a obra de arte emerge na fratura entre Terra e o Mundo, ou entre a ausência de sentido na materialidade do corpo e da natureza e a doação de sentido na história e no social. A leitura hermenêutica de Heidegger mostra que o par de sapatos , em verdade, é, em outras palavras, a materialização do ser – é a própria terra em uma outra materialidade.
Em Andy Warhol, não há nenhum modo de completar o gesto hermenêutico e reintegrar, parafraseando Jameson, essa “miscelânea” ao contexto vivido mais amplo do mundo. Há nesse caso um tipo de achatamento ou falta de profundidade, de superficialidade no sentido. No plano do conteúdo o que se observa é o fetiche. Em Van Gogh verifica-se um mundo ferido e transformado, no caso de Warhol diz Jameson (1997, p. 37):
(…) é como se a superfície externa colorida das coisas – aviltada e previamente contaminada por sua assimilação ao falso brilho das imagens da propaganda – fosse retirada para revelar o substrato mortal branco e preto do negativo fotográfico, que as subtende. (…) penso que não se trata mais de conteúdo, mas de uma mutação mais fundamental, tanto no próprio mundo dos objetos – agora transformados em um conjunto de textos ou simulacros – quanto na disposição do sujeito.
No modernismo ainda reside alguma forma da natureza, do ser, do velho, do arcaico. O pós-moderno é um mundo no qual a natureza se foi para sempre e a “cultura se tornou uma segunda natureza” (Jameson, 1997, p. 13). Quando a personagem Margarida de Navarra questiona o futuro da cultura – “esta obra , que ontem nos punha diante do grande dilema: haverá uma cultura amanhã?, hoje não nos causa nenhuma perplexidade, pois a resposta, evidentemente, é: não” (Sexameron, p. 8) – refere-se, exatamente, a esse processo de desconstrução da identidade cultural. Se a antropofagia cultural, empreendida pelos modernistas, garantia de certa forma uma identidade nacional, hoje, o ato antropofágico, identificado em Sexameron, não tem mais esta intenção. A preocupação é com um dispositivo discursivo que represente a diferença como identidade, sobretudo, no que se refere às representações femininas.
Em “O banquete de Antinoos”, a primeira novela de Sexameron, a morte de Neusa, devorada por peixes vermelhos e dourados do lago japonês, que se transformam em piranhas, é uma resposta carnavalizada aos modelos patriarcais. Embora fosse uma mulher “bem sucedida profissionalmente” e independente financeiramente, Neusa assume a dicção cultural patriarcal. A ironia da narrativa consiste em expor a precariedade dos sistemas simbólicos que atuam para expressar e modelar o mundo, igualmente para expressar e modelar o comportamento. A dependência de Neusa em relação ao padrões culturais revela a sua crença na validade dos sistemas simbólicos de interpretação do mundo. Para dar conta de sua existência, ela precisava estar casada, mesmo que fosse com o homem errado. Por isso, Neusa é metaforicamente “servida” como prato principal, num grande banquete para homossexuais. O ato canibalístico dessacraliza os modelos e o contrato social do casamento.
Assim como o projeto modernista incitava uma atitude brasileira de devoração dos valores europeus, na intenção de superar a civilização falogocêntrica, as novelas sobre casamento, em Sexameron, buscam desintegrar os valores que normatizam e modelam a conduta da mulher em relação ao casamento, amor e sexo. O ato antropofágico, aqui, não significa apenas uma apropriação dos valores do outro, mas a desapropriação do poder do outro que nos subordina ao seus modelos. Em outras palavras, é a denúncia da estrutura do poder cultural eurocêntrico; ou seja, ironicamente falando, a exposição dos ossos do Barão”: “Há pessoas que acreditam que o amor é uma criação burguesa, e que se acabasse a propriedade privada, acabariam os tão propalados amor e casamento” (Sexameron, 77).
O processo intertextual/antropofágico, em Sexameron, realiza dois movimentos distintos. O primeiro, mais localizado e específico de um grupo (mulheres da classe média e homossexuais), faz estalar os códigos que agenciam a relação de gênero, reforçando ora o surgimento de novas identidades híbridas: Narciso, Diana, Efebo, ora ironizando os herdeiros da cultura patriarcal – Casanova, Maria da Pena, a professora primária sonhadora:
Cremilda e Alcione discordam. Acham-no o supra-sumo do Casanova de subúrbio, de modelo superado do malandro carioca, um dinossauro herdeiro da década de 50, um pária da industrialização (…) agora travestido de gigolô de madame” (Sexameron, 59).
O segundo diz respeito à canibalização da tradição cultural Ocidental. Um discurso aberto que fala através de todas as máscaras estocadas no museu do imaginário de uma cultura que agora se tornou global. Uma série de intertextos faz referências à arte e à literatura mundial: Blake, Breton, Lewis Carroll, Virginia Woolf, Shakespeare, Fernando Pessoa, Aristófanes, Joyce e Pound, e outras que marcam a “voz do Brasil”: Entre Lucíola, de José de Alencar, e os poemas de Castro Alves, encontram-se o mito de Ogum, Iemanjá e Iansã.
Há, todavia, séries intertextuais dessacralizadoras do passado histórico literário que desviam o foco crítico do enredo e das personagens para criticar os períodos e estilos literário: “Aliás, faltarão muitas coisas para se completar o ciclo da felicidade, retratado por Camilo, Balzac, Scott, Manzoni, Dostoievisk, Georg Sand e toda a miserável caterva responsável pelo embelezamento literário do amor, no século XIX” (Sexameron, 30). A paródia aqui, entendida a partir de L. Hutcheon, é um análogo formal do diálogo entre passado e presente. É uma forma de incorporar textualmente a história da literatura e da arte. Pois, no dizer desta autora, “o pós-moderno é, autoconscientemente, uma arte ´dentro do arquivo´ (Foucault 1977, 92) (sic) e esse arquivo é tanto histórico como literário” (Hutcheon, 1991, p. 165).O resultado dessa contestação cria uma ruptura com qualquer contexto cultural estabelecido.
O atual trabalho intertextual, chamado por Jameson de pastiche, está aqui presente como eixo da nova forma cultural e como estética de mapeamento cognitivo (Jameson, 1997, p. 76) desse novo espaço global, para o qual as relações entre os sujeitos e suas condições reais de existência dentro de uma comunidade não passam de uma representação imaginária. Amaryll Chanady (1994, p. XI), estudando a constituição identitária na pós-modernidade, adverte:
Whereas nation building can be seen as a project of modernity in its desire for self-affirmation, self-understanding, and construction of a workable paradigm, the radical postmodern delegitimization of paradigms erodes the basis of the imagined community.
Para Huchteon (1991, p. 58), a prática da paródia oferece, em relação ao presente e passado, “uma perspectiva que permite ao artista falar para discurso a partir de dentro desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele.” Neste caso a paródia tornou-se, neste fin-de-siècle, categoria daquilo que a autora chamou de “ex-cêntrico”, isto é, a ferramenta principal do discurso daqueles que são marginalizados por uma ideologia dominante. A função social e política desse discurso consiste em dissipar as fronteiras geográficas de dominação e criar uma outra cartografia de identidade cultural menos rígida, interdiscursiva e multicultural.
Tratando do fenômeno para qual toda obra se constitui em função das obras anteriores, Harold Bloom faz uma interpretação bastante curiosa da história literária. Conforme o autor, as obras intertextuais incorreriam numa angústia de influência, da qual todo poeta sofreria, e isto o levaria a modificar os modelos anteriores. Entretanto, esta noção de influência designa, segundo Luiza Lobo (1997a, p. 15), “vassalagem, filiação ou dependência concreta de um autor, país ou obra por outro.” Bloom (1991) vê a evolução literária como uma seqüência de conflitos de geração.
Em Crítica e Cabala, o autor, embora não deixe de lado a sua teoria de que toda leitura é um ato de influência, faz uma observação bastante interessante sobre o ato de ler. Bloom (1991, p. 106-107) aproxima o ato da leitura ao canibalismo: “O que você é, é só aquilo que você pode comer” e “você é aquilo que lê.” Nesse sentido, a leitura seria uma desapropriação ou um ato de desleitura. Deixando à margem a tal angústia da influência e substituindo-a pela noção de intertextualidade, o conceito de leitura como uma desapropriação leva-nos a outra possível interpretação, ou seja, a leitura como um ato antopofágico e o intertexto como uma dinâmica antropofágica da cultura.
A intertextualidade, segundo Kristeva, Bakhtin, Hutcheon, desvia o enfoque crítico da noção do sujeito/autor para a idéia de produtividade textual, com suas várias vozes. O relacionamento entre autor/obra é substituído pela tensão dialógica entre leitor/obra, “que situa o locus do sentido textual dentro da história do próprio discurso” (Bloom, 1991, p.166). O autor também é um leitor que pratica o que H. Bloom chamou de desleitura. Nessa perspectiva, o ato de narrar, assim como o ato da leitura, deflagra o desejo antropofágico:
A sociedade democrática vulgarizou a estética do comer. Tudo hoje é tão banal e mesquinho, financista e interesseiro. (Sexameron, 57)
– É que, não me restando mais os prazeres do corpo, só ficam os do copo… – atalhou Margarida.
– E os da boca! Viva a comida! Viva a bebida! Viva a palavra! – exclamou Cremilda
(…)
– Sejamos rebeldes enquanto formos vivos! Pelo menos através da boca, que ainda impoluta, nos pertence! – invectivou Cremilda. (Sexameron, 50).
– Sim, é um spa de recuperação retórica – voltou Margarida, de voz alegre.
– Um brinde ao discurso! Vamos à história de hoje, Margarida – estimulou-a Efebo. (Sexameron, 96).
Ao final do sacrifício da mesa, ela exibira todos os seus dotes retóricos (…) (Sexamero, 75).
A representação, o discurso, e as figuras como instância de sentido revelam o espaço estratégico, onde discurso e história confluem e onde se realiza o sujeito operante da significação. É através desse sujeito, que se manifesta no processo de enunciação, que podemos rastrear as tendências e desejos de um determinado grupo social. Entretanto, somente a análise crítica do discurso não nos permite perscrutar a experiência estética como testemunho cultural, pois, para além do discurso existem as “figuras” que o compõem e que resistem ao tempo e à maleabilidade do discurso que esconde em seus “não-ditos” as “vertigens do moderno”, tais como a figura antropofágica.
A GEOGRAFIA MANEIRISTA: O “ETERNO FEMININO”
“…o mundo estava de qualquer modo fadado ao insucesso, à entropia. Por isso, clamam pela feminilização de todas as ações humanas, seja na vida privada, seja na esfera pública” (Sexameron, 60).
Um texto esfíngico, wildeano, cheio de volúpia e fatalidade que fala através das máscaras de Efebo, Diana, Narciso, quase dândis, habitantes do “Palácio das des-ilusões e do des-prazer,” e que revela um enorme desgosto com a civilização em vertigem, vítima da flor do mal – a AIDS. Se a trama, em Decameron, se desenvolve ora num ambiente “signorile e idillico” (Momigliano, 1980, p. 84), marcado pela nobreza e beleza, às vezes assumindo um aspeto malicioso e de ridicularização dos costumes sociais, e nesse momento a cena pintada por Boccaccio é mais uma ornamentação do que uma pintura, onde predominam a superficialidade e a pobreza, em Sexameron, o isolamento, a indiferença, o blasé, a obsessão pelos paraísos artificiais emergem do caudaloso rio da estética decadentista, marcando o esboroamento das utopias racionalistas e redefinindo uma geografia maneirista. O ornamento e a estilização do ambiente à Wilde e à Huysmans revelam-se no intricado tecido dos intertextos em que comparecem, como caligrafia estética, a confraria pré-rafaelita de Dante Gabriel Rossetti, as referências a Christina Rossetti, W. Blake e uma descrição do quadro “Ofélia”, pintado por Sir John Evertt Millais, em 1851:
Tapetes fofos, castiçais de prata para as velas, dama com roupas de veludo cheias de babados tocando piano fin-de-siècle, o gato angorá, o vaso de flores secas, cortinados, paredes forradas de tecido. Tudo que uma pessoa precisa [em tom irônico] para viver afogada em alergias, no clima tropical. (…) E quando viu o quadro da Ofélia, de um inglês de nome impronunciável, Millais – acho – , flutuante no rio, a roupa branca, os cabelos boiando entre pedras e musgos verdes, os olhos abertos dentro d’água, sentiu-se a própria (Sexameron, 53).
A história da arte e da literatura, assim como todas as formas de cultura, passa a ser um texto, um constructo discursivo com qual a ficção trabalha. Por isso, toda referência constitui um texto, “um sistema de signos que são unidades textuais pré-fabricadas,” adverte L. Hutcheon (1991, p. 185).
A personagem/narradora Margarida, ou Diana, é também filha de Herodias – Salomé – signo da atração e do perigo, do amor e da morte. É ela quem conduz a história, a guardiã da memória da arte e da literatura, e, como símbolo da estética decadentista, exibe suas “jóias” – o preciosismo intelectual – seus ornamentos, e suas máscaras. Narcisos, efebos e lesbos, todos filhos da estética maneirista, é um dos intertextos estéticos e literários que norteiam a dicção e a cena finissecular de Sexameron. Eles representam a androginia, uma sexualidade invertida, pagã e mística, mas também perversa. São o que Gustav R. Hocke (1974, p. 296) chamou de “emblemas metafísicos do Maneirismo.”
O intertexto com a estética maneirista não é por acaso. Segundo Hocke (1974, p. 294), o “mundo das imagens e representações eróticas se confundem com o narcisismo. (…) Vontade e representação unem-se numa monstruosa discordia concors. Num processo como este, “o mundo só pode aparecer como algo deformado.” O mundo maneirista, conforme esse autor, é “eternamente feminino”, produz quadros e mais quadros, enquanto o Classismo (não o Classicismo) é “eternamente masculino.” Isto porque, continua Hocke (1974, p. 295), “o Clássico cria estruturas e conquista o “centro” do mundo. Aquele não permite que este apareça em seu “mistério”, mas sim, por seu logos.”
Como já dissemos o uso do mito e da caligrafia maneirista, como intertexto, não têm nada de aleatório. Significa, antes, uma atitude consciente de redefinição da experiência cultural e estética, buscando afirmar a diferença e não a identidade homogênea. O que parece estar implícito na recuperação da androginia é uma reflexão acerca das políticas de gênero e identidades, dos anos 1990. A experiência feminina do casamento, que sempre foi excluída do espaço da cultura e da literatura, é, em Sexameron, discutida sob novas perspectivas sócio-culturais. São experiências de mulheres que conseguiram a independência econômica, um certo nível cultural, algum poder, mas não conseguiram reconceituar amor, sexo e casamento. Como muito bem analisou Maria Rita Kehl (1996, p. 23-5):
(…)as insígnias da feminilidade se modificaram, se confundiram, as diferenças entre os sexos foram sendo borradas até o ponto em que a revista Time americana publica em 1992, como artigo de capa, a seguinte pesquisa: “Homens e Mulheres: Nascem diferentes?” Na dinâmica de encontro e desencontro entre sexos, a intensa movimentação das tropas femininas nos últimos trinta anos parece ter deslocado os significantes do masculino e do feminino a tal ponto que vemos caber aos homens o papel de narcisos frígidos e às mulheres o de desejantes sempre insatisfeitas. (…) O destino de Nora, de Ibsen, nos parece mais promissor, porque a peça termina quando tudo ainda está por começar. Ela abandona a “casa de bonecas” ao descobrir que a sua alienação era condição de felicidade conjugal (…). Nora recusou o retorno à condição feminina-infantil de seu tempo e sai em busca de… mas aqui cai o pano e agora, mais de um século depois, fazemos um balanço do que ela encontrou. Independência econômica, algum poder, cultura e possibilidade de sublimação impensáveis para a mulher restrita ao espaço doméstico. Também a possibilidade de escolha sexual, e uma segunda (e a terceira e a quarta…) chance de um casamento feliz [será?]. (…) Mas teria Nora (…) conquistado alguma garantia de corresponder às paixões masculinas sem “se desgraçar”?
O que nos espera quando a própria geografia do discurso sobre identidades culturais vai se diluindo e se transformando num emaranhado de dispositivos discursivos?
QUEM VIRÁ PARA O JANTAR AMANHÃ?
Haverá uma cultura amanhã? É o mote que nos leva à reflexão sobre as questões de gênero, raça, classe e identidade. Se gênero é uma categoria da diferença que estrutura nosso universo cultural, nossas leituras e os nossos valores, deslê-los implica praticar uma espécie de antropofagia que transgrida o sistema canônico de nossa cultura e traga à superfície os subtextos de dominação e os mecanismos de exclusão que geriram o nosso processo cultural.
A rigor, a antropofagia cultural, em Sexameron, é uma crítica, uma teoria e uma ficção. Entre a história e o texto, entre o político e o estético, entre a crítica e a atividade as fronteiras são tensas. Há sempre uma cumplicidade entre a crítica e a atividade Nessa perspectiva, a geografia intertextual não confere limites às possibilidades do discurso, da imaginação e da realidade. Qual a verdade do discurso híbrido, fronteiriço? Margarida de Navarra expressa isso da seguinte maneira: “E quem poderá julgar meus contos/ com o produto de língua venenosa e má,/ só por eu escrever, num ou noutro lugar, / A verdade a respeito deles?/ E haverá verdade em algum lugar?” (Sexameron, 112). O ato antropofágico de alguma forma expressa essa interseção entre os vários discursos, as várias culturas, e dissipa as fronteiras de identidade.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. O problema da poética de Dostoieviski. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1981.
BLOOM, Harold. Cabala e crítica. Trad. Monique Balbuena. Rio de Janeiro, Imago, 1991
CHANADY, Amaryll. A Latin American Identity x Constructions of difference. Miniapolis, Univ. Mines