Nas fronteiras do inteligível: O Ponto Cego Delineando um novo traço na ficção de Lya Luft


Nas fronteiras do inteligível: O Ponto Cego
Delineando um novo traço na ficção de Lya Luft

Simone Sampaio Silva

Num fino traço
faço o perfil de ninguém
Quem quer ser alguém
nessa vida sombria
parida com sangue e papel?
Mas no círculo que traço,
nariz, cinco dedos na ponta do braço,
donzela esguia ou boneco de engonço,
limito um novo ser: e me abraço
a mim, no poder de gerar um sinal
que instaure no nada o todo possível.
Quem faz de nós reis, deuses, réus
Da nossa eterna contradição?
No texto que faço
Separo o nada do nada:
abro o espaço da minha interrogação.
Lya Luft, Mulher no palco, 1984
Nessa interrogação configuram-se os primeiros instantes da leitura de O ponto cego. No gesto da criação de um traço, em seu mais recente romance, Lya Luft abre o espaço da inquietação fundamental para uma incursão pelo terreno íntimo e turvo da condição e dos vínculos humanos: a inquietação com as fronteiras da própria existência. Que traços são esses que nos desenham? Quais são os limites que separam o ser alguém do não ser? O momento mágico da leitura pode gerar pontos de luz sobre esse mundo de sombras, dores e perplexidades, e o olhar lançado para dentro desse universo é apenas uma efêmera centelha sobre alguns de seus contornos.
O universo ficcional de Lya Luft tem focalizado especialmente o percurso existencial de personagens femininas dentro de um processo de autodefinição permeado por memórias muitas vezes amargas, temores, fantasmas, solidão, jogos, fantasias e perdas, enredados em vínculos familiares. As relações de gênero configuram a matriz de seus textos, nos quais, a partir do contexto doméstico e cotidiano, ela se envolve na teia dos mistérios da vida e dos destinos humanos utilizando-se de elementos oníricos, grotescos, anímicos e lúdicos1 ; caem as máscaras, expõem-se as feridas, o não familiar e o estranho emergem de dentro do espaço doméstico2. O conjunto das obras de Lya Luft é marcado por imagens que constituem os pilares de sustentação de uma sociedade centrada na ordem patriarcal e nas relações hierarquizadas de gênero; as relações familiares são elementos cruciais nesse conjunto, gerando reflexões críticas sobre a construção das identidades de gênero por serem um dos elementos centrais na socialização do sujeito. Conflitos, situações e personagens de obras anteriores da autora também pairam em O ponto cego: rejeição, solidão, fantasias, dores, repressão e, sobretudo, o desvelamento de padrões normativos de gênero e de imposições ideológicas sufocantes são elementos estruturais em seu romances.
Como obras anteriores de Lya Luft, O ponto cego vagueia pelos territórios sombrios das relações humanas, mais uma vez a autora se lança para além das aparências, atravessando as fronteiras das regras e da ‘naturalidade’ dos vínculos sanguíneos. Em seus outros romances, a instância que emite o enunciado é geralmente uma personagem feminina redefinindo sua trajetória de existência e se configurando enquanto sujeito do discurso, ou debatendo-se em meio a uma realidade sufocante. Diferentemente, o agente condutor da narrativa de O ponto cego é um menino carregando consigo uma história que vai se desdobrando na singularidade de sua perspectiva ora infantil, ora clarividente.
Eu sempre estive lá: sei muito a respeito de todos eles, sei quase tudo. Menino, anão, duende ou gnomo: um ouvido, uma grande orelha, um olho enorme de pálpebra semicerrada como quem não quer nada, como quem nem quer ver. Mas pela visão o mundo entra e sai, e se armam todas as cenas, as narradas e as reprimidas: essas florescerão (p. 31).
A idéia do universo infantil é abordada nesta obra mas tem o potencial de apontar para o processo através do qual o ser humano, em geral, se insere em processos ideológicos altamente opressores submetendo-se aos seus desígnios. O foco central deste breve ensaio é a trajetória do menino-narrador diante dos padrões tradicionais de uma estrutura familiar patriarcal e dos moldes de identificação colocados à sua disposição para a construção da própria identidade.
Para Lya Luft, “a infância são as ilhas da magia e também as águas do terror: os mistérios adultos que não nos abrem lugar, os objetos cotidianos, tudo serve para atormentar uma fantasia não domesticada” 3.
Essa é a história de uma criança em contato com as engrenagens de funcionamento do mundo adulto que podem arrastá-la para fora do ‘abrigo de sua pequenez’ (P. 45). Sua convicção é a de permanecer um observador por entre as frestas da realidade, a partir de seu próprio viés: “Eu que invento e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu decidi parar de crescer” (P. 15).
Essa é a história do inadequado, ilegítimo, ofuscado, um ser que não cabe em si, um estrangeiro no contexto da convivência humana. A família de classe média é mais uma vez o cenário do trabalho de Lya Luft, onde personagens de uma rede familiar alicerçada em valores patriarcais circulam pelo campo de visão desse menino-narrador: pai autoritário, mãe submissa, avó louca, obcecada por um ideal de beleza que só comporta a juventude, irmã preferida pelo pai, tias, tio e um menino atormentado diante da cruel configuração que se apresenta ao seu olhar sagaz, não adestrado e inconformado com a realidade limitadora que presencia: “Minha mãe não parece ter uma vida sua: vive a dos filhos e a de meu pai. Que dívida terá com ele, que a faz girar nessa perpétua dança das mulheres em torno dos homens a quem precisam servir?” ( P. 37).
Como manter-se seguro após ter observado as máscaras que cobrem cada face e a camada subterrânea de cada relação humana? Haveria saída para quem vê o mundo pelas frestas, pelas beiradas, negando-se a ser mais uma peça em um jogo de máscaras? O narrador-menino projeta o seu olhar para o espaço das relações familiares expondo os fios que compõem essa teia e rejeitando sua própria posição nesse “jogo muito perigoso”. Julgando-se seguro e forte em um espaço imaginário, de onde observa os personagens e histórias que compõem sua vida, o menino vai captando evidências do mundo e elaborando suas representações a partir de uma perspectiva bastante peculiar: “Aqui onde estou, nesta altura e deste àngulo, mexo com o tempo e o lugar, enfio personagens aqui e ali, vou povoando as entrelinhas e alinhavo histórias paralelas”.
A própria possibilidade de inscrição no mundo simbólico é o eixo que conduz aos percursos e percalç”os do pequeno narrador. A entrada para seu universo é o portal das possibilidades, o espaço da grande interrogação, a partir da qual vários caminhos podem ser traçados. Não há bússolas nessa jornada, cujo rumo é sempre questionável, pois o empenho do narrador reside justamente na tentativa de escapar de referenciais que podem enquadrá-lo. Ele se emaranha pela própria história escorregando por entre as linhas, inquietantemente indecifrável.
Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos corredores, chorando. Sou o riso no andar de cima muito depois que uma criança morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem detrás das portas, das entrelinhas, do desvão (p. 30).
Embora enredado nas teias de um cotidiano de menino, o narrador se revela como um ser difuso que, de uma posição imaginária privilegiada enxerga os mecanismos que regulam as fronteiras da inteligibilidade dos seres. Ele se recusa a pertencer à matriz normativa que define suas posições e os torna homens e mulheres representantes de uma sociedade calcada no referencial androcêntrico. O menino subverte tempo e espaço criando um mundo dentro do qual inventa e invoca cenários e personagens, abrindo, assim, espaço de possibilidades que vão para além do normativo. Dentro desse universo de fantasias, ele elabora seus enredos a partir de uma autoconsciência do processo narrativo. “Qual é a história que aqui quero contar? De gente que é muito esquisita, de criança que é muito solitária, de um Menino que sabe muita coisa, e de que saber é muito perigoso” (p. 85).
Recusando-se a crescer, o menino tenta fugir de ‘perigosas possibilidades’ que o aguardam: “O que eu invento e esconjuro se torna real (…). Não suporto ser privado disso que desejo tanto, e que me torna especial: Ter o que os outros nem enxergam. Poder me alegrar sem medo de que acabe” (p. 86).
O narrador posiciona-se de forma contra-ideológica. Seu àngulo de visão o permite enxergar e questionar aspectos das relações humanas que desnudam as regras do poder, pois sua percepção desfocada expõe os sistemas regulatórios da família. Sua observação focaliza a matriz da construção das relações hierarquizadas entre os sexos, o universo da loucura, os mecanismos de poder paterno, o mundo proibido e censurado das vivências humanas, o sentimento de solidão e a perplexidade diante de tudo isso.
Focalizando o interdito, o que é silenciado, o avesso e as criaturas que lá habitam, o menino põe em evidência a rigidez de noções que constróem homens e mulheres e que assim os tornam legítimos membros da sociedade com seus códigos e práticas regulatórias. Lya Luft coloca em xeque valores e padrões tradicionais na medida em que cria uma criança em uma posição de estranhamento e aversão a esses valores. Aqui, mais uma vez, é no sujeito da enunciação que reside o aspecto questionador da obra.
No entanto, apesar desse aspecto questionador, mais especificamente denunciador da obra, o narrador encontra-se impossibilitado de ir além de sua própria fantasia, seus traços enquanto sujeito não são bem delineados a ponto de defini-lo dentro da ordem de um discurso inteligível. Para ele não existem parâmetros de identificação que possam inseri-lo na ordem hegemônica do discurso. Seus conflitos levam à constatação de que os referenciais disponíveis ao seu processo de identificação são todos falidos, e o seu não crescimento representa a sua negação a inserir-se na ordem familiar pré- estabelecida. Sendo assim, ele se encontra em um movimento contrário à construção de uma identidade e, por isso, ele se desconstrói, ocupando um local de resistência que não possui nenhuma inscrição ou registro na estrutura familiar patriarcal.
A condução do discurso feita por um ser etéreo que vaga por tantos caminhos e que se define ao mesmo tempo em que se desmancha aos poucos revela um espaço onde contornos e fronteiras, esboçadas nos traços que limitam o ser, evidenciam-se no clima turvo da narrativa. Os traços que esboçam o narrador de O ponto cego são pouco nítidos e se apagam à medida em que ele se afasta dos esquemas que ordenam a família; recusando-se radicalmente a compactuar com a lógica do ser humano adulto, ele se torna um ser inominável. Sua performance não tem eco devido à posição totalmente fora dos referenciais simbólicos que regulam a estrutura familiar da qual faz parte. Ele não possui registro no sistema que socializa o sujeito.
O não caber em si traduz o desejo de alargar fronteiras para além dos jogos familiares com suas posições fixas de gênero. No entanto, o seu processo de apagamento desencadeia-se pelo fato de estar impossibilitado de ir além da mera apresentação ou denúncia de uma realidade familiar opressora. Sua narrativa é um apelo sem voz, sem força, uma vez que sua alienação torna as artimanhas que tece inócuas e silenciadas diante de códigos mais poderosos. E do seu reino, ou palco imaginário, ele manipula os seres que cria, constrói um texto particular que não tem poder transformador, e se torna cada vez mais indefinível.
Eu sou o narrador e personagem, eu escrevo o roteiro, sou eu quem salta entre os cenários e observo dos bastidores.
Mas às minhas costas sopra essa voz mais forte do que eu: o anjo que fia, tece e borda, e me prende nesse enredo. Não calculei bem os seus poderes, nisso me perdi (p. 85).
Ele se emaranha na teia de seu mundo interior, pois seu esforço não tem poder de criar novos espaços de discurso, ou de redefinir os termos de uma nova perspectiva. O menino-narrador não tem meios para reescrever sua história como resposta aos esquemas opressores que visualiza. Esse é o drama de uma criança especial desalinhada com o tempo. Sua angústia assemelha-se aos conflitos das personagens femininas de Lya Luft buscando abrir caminhos entre os espaços que lhes foram reservados na ideologia de gênero. No entanto, cada uma dessas mulheres narradoras busca articular suas vivências e alargar as fronteiras de sua existência a partir do referencial androcêntrico, que não pode ser negado em detrimento de uma nova ordem menos sufocante, pois não existe registro totalmente fora do simbólico traçado historicamente dentro de leis patriarcais.
A ordem patriarcal tende a se reproduzir constantemente em diversos tipos de discurso, e a família é ainda um espaço privilegiado de consolidação dessa ordem, “a não ser que se resista constantemente, suspeitando-se dessa tendência”, conforme coloca Lauretis (1992, p. 236). Ela continua seu argumento com a idéia de que a resistência à reprodução dessa estrutura “é a razão pela qual a crítica de todos os discursos a respeito do gênero, inclusive aqueles produzidos ou promovidos como feministas, continua a ser uma parte tão vital do feminismo quanto o atual esforço para criar novos espaços de discurso, reescrever narrativas culturais e definir os termos de outra perspectiva – uma visão de ‘outro lugar’.”
Portanto, o espaço da resistência só vai ter força se ocupado de forma crítica, e a postura feminista é um dos discursos críticos que se ocupa em explorar novos espaços de resistência, uma nova visão. Para Lauretis, “se esta visão não é encontrada em lugar algum, não é dada em um único texto, não é reconhecível como representação, não é que nós – feministas, mulheres- não tenhamos conseguido reproduzi-la. É , isto sim, que o que produzimos não é conhecido, exatamente, como representação. Pois esse “outro lugar’ (…) é o outro lugar do aqui e agora, os pontos cegos, ou o space off de suas representações. Eu o imagino como espaços nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-conhecimento” (Lauretis, 1992, p. 237).
Segundo Lauretis, os termos de uma nova construção de gênero devem ser elaborados tanto em nível de subjetividade e auto-representação, como em nível de resistência que coloque em xeque as engrenagens de poder. Isso só pode ser alcançado se o sujeito possuir referenciais fora e também dentro da ideologia. Como não existe uma realidade externa ao espaço simbólico do sistema sexo-gênero, Lauretis sugere que qualquer atuação crítica e transformadora deve surgir não em um espaço imaginário totalmente fora das leis sociais, mas a partir do espaço de uma dada representação, de um determinado discurso, de uma matriz de gênero, em direção ao espaço não representado, não reconhecido, não revelado. Esse é o desafio crítico que pode alargar fronteiras, gerar novos arranjos e novas configurações de gênero (Lauretis, 1992, p. 237).
Não há como propor modelos totalmente ausentes dos símbolos e da linguagem minimamente institucionalizada. Em O ponto cego há um menino seduzido pela ambiguidade, pelo viés, pelo avesso, por representações diferentes das que são previamente estabelecidas e colocadas à disposição dos indivíduos para serem por eles incorporadas. Ele se interessa por esse “outro lugar”. No entanto, a sua falta de legitimação enqu anto sujeito torna seus posicionamentos ininteligíveis dentro da ordem familiar e ineficazes no questionamento da ideologia dominante.
O menino-narrador, tendo se posicionado radicalmente no lugar que configurou para si, onde se “represa o tempo” (p. 33) e também se represam possibilidades de resistência crítica, não se viabiliza enquanto sujeito e, portanto, não se materializa. O ‘outro lugar’ que vislumbra não tem o contraponto de uma inserção mínima na ordem simbólica dominante que lhe dê mobilidade suficiente para pensar e agir de acordo com seus pontos de vista, diferentemente do ‘outro lugar’ ou ‘pontos cegos’ apontados por Lauretis como forma de visualização e atuação crítica no sistema. O livro de Lya Luft, por sua vez, materializa-se exatamente à medida em que o menino se desfaz e expõe os mecanismos opressores que o tornam inviável como parte da sociedade.
O fato de a autora ter posicionado o narrador no universo infantil aponta um novo traçado no conjunto de suas obras, abrindo espaço para a visualização dos mecanismos de poder pela ótica de uma criança. Ela mostra como uma criança inserida na rede familiar tradicional tem sua posição ideologicamente marcada por uma inferioridade hierárquica em relação aos demais membros da família, sendo suas inquietações emudecidas, negligenciadas ou desqualificadas, apesar de “sua perspectiva nem sempre cega” (p. 45): “Mulheres aqui, homens ali. Mulheres assim, homens assado. Crianças, nada” (p. 45).
Negando-se a seguir o curso da socialização e do crescimento, ele assume uma posição em um lugar sem lei rumo a sua total dissolução. O menino que não cabe em si prefere a ilusão de poder manipular tempo e espaço e permanecer ileso em seu universo imaginário, mesmo descobrindo que será pouco a pouco apagado, ofuscado, reprimido como uma impossibilidade dentro da lógica patriarcal.
Notas
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1 O percurso pelo caráter lúdico e grotesco da obra de Lya Luft foi traçado por Maria Osana de Medeiros, posto à luz do suporte teórico da psicanálise no livro A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft.
2 As questões discutidas por Freud no texto “O Estranho”, escrito em 1919, configuram interessante espaço para um diálogo tanto com o narrador de O ponto cego, como com outros personagens criados por Lya Luft, cujos textos são um convite permanente para incursões pelo terreno da psicanálise.
3 LUFT, Lya, (1996), O rio do meio, p. 28.
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity. New York, Routledge. 1990.
FREUD, Sigmund.. “O estranho”. Trad. de Jayme Salomão. In: Obras completas de Sigmund Freud,vol. XVII, pp 275-314. Rio de Janeiro, Imago, 1919.
LUFT, Lya. O ponto cego. São Paulo, Mandarim, 1999.
__________ O rio do meio. 7. Ed. São Paulo. Mandarim, 1996.
__________Mulher no palco. Rio de Janeiro, Salamandra, 1984.
LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. Trad. de Suzana Bornéo Funck. In: Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1992. p. 206-242.
 
(*) Comunicação apresentada por SIMONE SAMPAIO SILVA, mestranda em Teoria Literária no Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – Universidade Federal da Bahia (UFBA) – no VIII Seminário Nacional Mulher e Literatura, em Salvador, de 27 de Setembro a 29 de Setembro de 1999.