MUTILAÇÃO/CONTRAPONTO:
O OUTRO EM LIA MONTEIRO
Universidade Federal do Rio de Janeiro
No Suplemento Idéias do Jornal do Brasil de 22/10/89, a propósito do desafio com que Lúcia Murat em Que bom te ver vivaenfrenta o dilema das vítimas da tortura, Eduardo Escorel distingue a descoberta de que para sobreviver é preciso não esquecer nunca. No eixo desse mesmo enfrentamento, cruzamos a vigília de uma outra memória da geração A I-5: De fogo e sangue, de Lia Monteiro, editado pela Codecri em 1981, com apresentação de Heloísa Buarque de Holanda.
Engendrando 68 fragmentos, De fogo e sangue requisita a granulação do romanesco numa narrativa fracionada, assumindo a experiência textual de um discurso estilhaçado, éclat de denúncia e urgência de lembrança. A dedicatória ao Pai sutiliza a intenção da Autora – cumprir o texto como projeto especular à tarefa paterna no combate à sina do próprio nome: “Hemetério” = Escravo”. Referência que não tributa qualquer moção de garantia à palavra “liberdade”, mas que reivindica a inserção do corpus de resistência consignado no porte do “aprendizado de ver na escuridão”, e afirmar o tecido de uma escrita onde a perseguição política tonaliza a construção do medo, da insônia, da violência física e psicológica, da irradiação autoritária do regime inquirindo/inquerindo todos os discursos, lacrando os dias, remanejando estranhamento as afetividades.
Não se mostra o que se pensa, se sente, se lê, se faz e se ama. Amar sentindo em todos os sentidos o medo, a desconfiança do que se aproxima (D.F.S., p. 49).
Uma transpiração rosiana redige os primeiros fragmentos. Neles, a luminosidade desliza o mundo culinário. Mundo de café quente com massapão e beiju de coco (p. 9). Culinário porque no sabor de cultivar o prazer das comidas de novidade e segredo (p. 12), fecundando o apetite dos jogos de infancia, cativando no inclassificável da linguagem a realidade de trepar em árvores, fazer balanços, comer manga verde com sal (p. 25).
O sol se levanta todos os dias com ele e não pensa em retorno. Quem se levanta com o sol brilha à sua luz, faz o seu giro (D.F.S., p. 10).
Em dias assim tudo era festa. (D.F.S., p. 11).
Mundo culinário porque nele comparece a tutela familiar, a reserva da domesticação, não domesticação, domínio de clara cumplicidade, lugar do anúncio do Pai, conduzindo à transparência dos gestos o mistério do “acontecimento das coisas”. A claridade desse mundo – no brinde de sua ingenuidade – alçará o marcador de contraponto do exercício seguinte: o escuro.
Esse tempo de escuro.
Fala baixo, paredes têm ouvidos. (…)
Quanto medo por dentro. Quanto escuro por fora. (D.F.S., p. 49)
Foi então que começou o aprendizado da escuridão, naquele início de vida, que então, naquele exato momento, não pareceu ser o começo de uma instituição do medo – as paredes têm ouvidos, as telhas têm olhos, as mesas têm bocas, os dedos não indicam nem acariciam, seguram. (D.F.S., p. 27)
É a densidade desse exercício que deflagra o enterro da letra suspeita. Operação noturna, onde os apetrechos da cozinha (o mundo culinário) – improvisados ferramentas – cavam o quintal para a queima de livros, jornais, revistas, papéis, cartas, endereços… Tarefa da mulher e da criança, num ritual que vaza a terra e revolve os textos queimados entre as raízes do milharal.
É noite. Uma mulher e quatro filhos no mato. Carregam montes de livros, jornais, revistas, papéis. Saíram dos fundos de uma casa pequena e atravessam o quintal agreste. Passam primeiro por um pátio de cimento, por amontoados de copos-de-leite, por um pomar incultivado (…). Chegam a uma pequena lavoura (…). Fazem um buraco bem grande, colocam uma parte do material que trouxeram. O candeeiro que iluminou o caminho cede um pouco de querosene para começar o fogo.
Depois de tudo consumido, recobrem as cinzas com terra, replantam os pés de milho (D.F.S., p. 17).
Estranha semeadura, que enreda – nas cinzas – a escrita e o milho, a letra passada e o pão futuro. Escatologia e germinação. Por seu curso, o quintal passa a enquadrar o cemitério doméstico, confrontando a brutalidade com que a prisão do Pai desfaz a família em torno da mesa, em torno de um único prato – o medo feito realidade. Furtada, a presença paterna ressoará no “rádio negro” – índice emitindo a cor das notícias.
Olha firme para o rádio negro, parece estar tentando voltar a imagem diária do velho, a carapinha branca e a cabeça baixa com atenção para as notícias (D.F.S., p. 25).
Em De fogo e sangue, Deus é um lugar vago, vazio, ou melhor, esvaziado. Sua referência avulta o olho-triangulo, dimensão que rememora a estampagem das capas de catecismos freqüentes na região que espacializa o texto (interior baiano). Contudo, essa designação anota um contorno irônico, uma estratégia de deslocamento. O olho divino da onisciência e da onipresença – conduzido nas lições da catequista e contemplado no canto esquerdo do quarto – desloca-se para o olho-do-poder, onipresente, pan-óptico no policiamento de todas as práticas. Essa apropriação e transmigração ressaltam o paradigma a partir do qual o texto exibe um sujeito sem Deus. Lacuna apontando o desapontamento frente aos administradores da fé.
– “E que deus é esse que tudo vê, olho-triangulo no canto esquerdo do meu quarto? O bispo, o pastor? Meu Deus, e eu? O que é que eu faço diante desse arremedo de juízo final, e qual é esse deus que nos tira o melhor de nós, o mais justo, o que tem em si os princípios da vida, da caridade, da compreensão, onde está o meu Deus que sempre foi bondade, de alegria, de conforto a quem precisa, de oferta daquilo que se tem de bom ao outro? (…)” (D.F.S., p. 26).
Mostrando que o tempo do corpo torturado é o tempo da mutilação, dos discursos, o fluxo da narrativa não circula o zelo do silêncio enquanto competência que urde a serenidade, mas o emudecimento como condição imposta. Pela travessia da escritura, a exigência solitária do silêncio frutifica uma expressão solidária, que empresta o corpus à ressonancia de muitos corpus. Assim, os fragmentos – oscilando o regime narrativo de 1a. e 3a. pessoas – transitam um elenco polifônico, através do qual ressoa – da geração reduzida à sombra – não apenas a fala da militancia poliítica, mas da mesma forma a fala tropeçada na droga, na loucura, a fala usurpada na esperança, a fatigada na véspera da morte.
Essa menina pirou. Todo mundo numa boa, entrou numa bad. Saiu cedo, o pai levou pro sanatório (D.F.S., p. 53).
(…) bela juventude sob um jogo de morte (D.F.S., p. 58).
É toda essa franja fúnebre que lexografa igualmente a expressão da sexualidade e do amor. Se, na energia do desejo, o corpo carece de outro corpo, requer – não necesáriamente anatomia outra – mas a anatomia do outro, cumpindo o desafio de coreografá-la com o medo. Assim, ainda que redigindo a paixão sob um signo de morte, o texto dá lugar a uma erotografia ousada.
(…) e me deixou no carnaval, tão cheia de sêmen e oca de amor – muito louco a cada esquina – Pierrot da minha fantasia de menina boba, nem ao menos Colombina de papel (D.F.S., p. 58).
Esse aspecto faz parte de um compromisso que coloca com relação à fala da mulher uma questão mais espessa. Se a voz feminina experimentou a tradição segregada, como avaliar – num tempo de mutilação das falas – a mulher assumindo as ramagens que fermentam a denúncia? Como considerar – na paisagem do patrulhamento dos sentidos – a percepção feminina constituída literariamente como prática problemática de produção?
De fogo e sangue faz-se acompanhar de Notas e Anexos. A escritura adere uma escrita documental: depoimentos, entrevistas, transcrições de reportagens etc.. Que legalidade tais enunciados pretendem dar ao texto? A de fazê-lo ingressar num código de referência produzido pela realidade? Articular um campo intertextual, credenciando-o como “gênero fronteiriço”? Os simples sinais dessas perguntas entremostram que o livro de Lia Monteiro ultrapassa a atitude puramente episódica, comum a muitas páginas de sua geração, caídas na cilada do panfleto, devoradas pelo acento do estereótipo. De fogo e sangue alinha à energia de testemunho a explícita afirmação do texto literário como projeto dramatizador da cultura e indisfarçada disseminação da memória em sua vigília contra o Esquecimento, ele que é – como nos adverte Eduardo Escorel – “o caminho mais curto para que a história se repita como farsa ou como tragédia”.