Autor: Menotti Del Picchia
Título: SALOM
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 18/05/2005
Parte II
Salom? saiu para o terreiro quando o sol j? doirava toda a fazenda. Eram nove horas da manh?.
-Seu Roque, chegue aqui!
O preto vinha do paiol fronteiro e trazia sob o bra?o um punhado de espigas de milho. Ia para a cocheira lev?-las ao cavalo de Salom?.
-Que ?, sinhazinha?
-Voc? ainda se lembra de mim?
O preto fixou nela os olhinhos turvos. Desembainhou duas presas de marfim velho, ?ltimos dentes que lhe restavam nas gengivas roxas. Riu. Parecia, com o cr?nio redondo, uma velha foca de ?bano.
-Se lembro, sinhazinha… Mec? era uma coisinha deste tamanhico ? e exagerou a exiguidade da estatura da crian?a que ele conhecera desde os cueiros, fazendo com a m?o livre um gesto de quem calcula um tamanho.? Era uma bichinha levada do Capeta… Cruz, credo!
Salom? riu. E apareceram, com esse riso, os dentes mais lindos do mundo.
-Que ? que eu fazia, Roque?
-Mec? deixava todos n?is maluco! Chi… Um dia mec? desapareceu… Toca campi?, campi?… Fiquemo todos zonzo… Percuremo por toda a parte. S? na boca da noite demo com mec? numa moita com um cabritinho que tinha quebrado uma perna querendo consert? ela com um peda?o de graveto amarrado com a fita do seu cabelo… Qu?… Qu?… Qu?!…? e desembainhou suas presas de foca que quando ria n?o eram agressivas, apenas grotescas. -Outra vez, amarr? uma lata no rabo do Foguete e tocou formicida nele… Nossa Senhora! O bicho dava cada pinote!
Olhava para Salom? com os olhinhos sang??neos.? Ela escutava retomando vaga posse desse passado divertida e encantada. ? Outra v?is foi pio… Mec? tac? fogo na palho?a do Lot?rio. Foi uma bruta trabalhera pr? apag? o fogo e arrast? mec? pra casa… Batia o p?! ?N?o v?, n?o v?! Quero v? as labareda!? E quase que a fogueira pega fogo na sua saia… O pobre do Lot?rio saiu de l? chamuscado…
Salom? fechou o cenho. Gritou para o preto:
-Isso ? mentira!
O preto assustou-se.
-Mentira? Pregunte pr? iai?… Pregunte…
Salom? virou-lhe as costas. J? n?o pensava no preto, nem na inf?ncia. A paisagem entrava em golfadas de luz e de cor nos seus olhos orientais, grandes, que devoravam o ouro fosforescente que palpitava na superf?cie das coisas. Suas narinas dilatavam-se ao aspirar o ar fresco, como se o farejassem e tentassem distinguir todas as nuan?as do aroma que vinha do vale. Correu para a ponta do terreiro. O horizonte, dali, era mais largo. Voltou-se ent?o para Roque, j? distante, que rumava para a cocheira:
-Encilhe o Corisco. Ponha o selim ingl?s. Depressa!
Roque nem ouviu. Era quase surdo. Salom? dava com o chicote pranchadas firmes nas botas altas. A culote de casimira azul estava grudada ?s suas formas. Seu cabelo negro e solto vibrava ao vento.
Chegara ? noite com Antunes. A m?e n?o fora esper?-la a bordo. D. Santa recebera-a prevenida e policial. A filha percebeu que a teria aos seus calcanhares. E antegozava suas f?rias. ?Vai ficar uma fera…? ? e sorriu.? ?A mim ? que n?o me p?e freio.?
Gozava agora o contraste: o bucolismo do mato ap?s a velocidade da metr?pole. Sentia-se bem. Tudo era im?vel, horizontal, como um cen?rio para o seu movimento. Atravessou o terreiro, desceu aos saltos a escada de pedra e entrou no piquete. Roque segurava o Corisco pelo freio. O animal olhava Salom? de esguelha. Olhava-a com olhos faiscantes como olharia para um advers?rio ou para um perigo.
-Cuidado, sinhazinha, ? passarinheiro…
Salom? mirava deslumbrada o animal: parecia um enorme galgo branco.
-? brabo?
-Tem mania…
Quando Salom? quis segurar a barbela o cavalo deu uma brusca guinada com o queixo. Os ferros do freio tiniram: ?Quieto!? O cavalo nitriu. Um fr?mito correu-lhe a espinha. Parecia ter recebido a carga de uma corrente el?trica. Salom? tamb?m vibrava. O nervosismo do animal circulava nela. ?Quieto!? P?s o p? no estribo e saltou. Corisco tentou tirar o corpo, mas a mo?a j? estava engarfada no seu lombo, r?deas firmes na m?o.
-Abra a porteira, Roque.
Roque abriu. O cavalo dera para saltitar numa dan?a mi?da que n?o sa?a do lugar. A m?o de Salom?, na camur?a da luva, afagava o pesco?o do animal assustado.? Ent?o, que ? isso? ? O primeiro ?mpeto de Corisco, nessa manh? caprichoso e nervoso, foi cuspir da sela Salom?. Deu um pinote inofensivo mas a dor aguda que sentiu na boca com a implac?vel press?o do freio e a chicotada que lhe riscou a anca, aquietaram-no. Ent?o ele, de um arranco, lan?ou-se a galope. Roque tremeu de susto. Era uma corrida doida na manh? toda de ouro.
-? maluca…? murmurou o preto.
Fechou o port?o do piquete. Outros cavalos relinchavam nas baias. Uma galinha andava por ali ciscando. Da cerca rompeu um bando de pipilantes pintos, beliscando o ch?o, vivos, amarelinhos, m?veis, como se fossem brinquedos caricatos. Roque olhou a v?rzea. N?o viu mais Salom?.
-Maluca… Maluca mesmo…
No terreiro encontrou d. Santa. Parecia procurar algu?m. Viu Roque:
-E Salom??
-Saiu neste instante no Corisco…
-No Corisco? Por que voc? deixou?
-Ela quis, iai?…
D. Santa entrou na casa. Nesse instante Salom? alcan?ava a estrada da vila. Corisco esgotara-se na violenta galopada. Seguia agora a passo, suado, frouxo, dominado e passivo. Salom? olhava para as orelhas do animal. Sentia uma alegria toda f?sica, a alegria da carne catando ru?dos. ?Ent?o? Onde est? sua f?ria? Vai murcho e com um ar de sonso…? Afagava o pesco?o do animal. Pelo atrito do vento a pele se lhe afogueava e o sangue escorria-lhe f?cil, bem oxigenado. ?Viver… Basta viver… A vida por si mesma ? uma finalidade…? E pensou: ?O que falta ao homem ? dar import?ncia ? vida, compreender que ele n?o passa de uma vida entre outras vidas circundantes…? Pensou em Berta. ?O erro de Berta ? procurar sua vida nos outros quando toda a sabedoria est? em descobrir a vida que est? em n?s…? Atingira a estrada e cercava-a a floresta, uma floresta decorativa e muito verde. Para Salom? esse verde era sedativo. Trazia-lhe alguma coisa que ficara nela como abortada, uma esp?cie de inf?ncia inconclu?da e que agora se refazia numa plenitude de inoc?ncia. Mais que por aquelas copas, o sol que as tornava de um verde doirado, resplandecia nela mesma. Parecia-lhe ter peda?os de alma esquecidos e afundados na terra que agora subiam pelas ra?zes rebentando festivamente nas folhas. Dilu?a-se assim por tudo tirando de tudo um inef?vel bem-estar. Nesse instante sentia-se vasta, boa, feliz.
L? adiante, num barranco, viu uma pequena mancha preta. ? medida que Corisco avan?ava a mancha tomava forma. Era um padre. Salom? teve vontade de rir. Que faria ali no barranco esse padre sem chap?u? Quando chegou perto, estacou o cavalo. Somente nesse instante deu com a presen?a de Salom?.
-Bom dia, reverendo.
-Bom dia, senhorita ? disse o padre com simplicidade como se fosse a coisa mais natural do mundo estar ele sentado num barranco no meio de uma estrada deserta e encontrar-se com uma linda mo?a montada num espl?ndido cavalo. Salom? examinava-o curiosa e divertida.
-Desculpe minha indiscri??o ? disse ela mordendo o l?bio, pois a figura do reverendo parecia-lhe grotesca. ? Est? fazendo versos? O lugar, de fato, ? bonito…
O padre n?o deu pelo ar trocista da mo?a. Replicou candidamente:
-Qual verso, qual nada, senhorita… O que estou ? esfalfado e com os p?s em fogo… Sentei-me aqui porque n?o ag?ento mais. Acho que os calcanhares est?o com bolhas.
E olhava para as sapatorras cambadas e cheias de poeira:
-Meus p?s parecem duas frigideiras… Imagine que eu n?o calculei bem a dist?ncia da vila ? fazenda. Os caboclos costumam dizer: ?? ali…? Botei na cabe?a fazer o caminho a p? para pagar uma visita ao sr. Tot?nio e o sr. Eduardo.
Salom? simpatizou com o padre. Tinha os olhos bons e era pitoresco.
-Tot?nio? O administrador l? de casa?
-A senhorita ?…
-Salom?. A filha de d. Santa.
-Ah…
O padre levantou-se. Julgou seu dever fazer uma apresenta??o em regra:
-Eu sou o padre Nazareno, o novo vig?rio da vila.
-Muito prazer, reverendo.
Como sempre, levada por um ?mpeto e sem a m?nima reflex?o, Salom? imaginou uma solu??o para o caso. De fato: era absurdo largar o pobre vig?rio ali.
-Pois eu posso lev?-lo ? fazenda. Suba na garupa.
O padre hesitou. N?o que lhe parecesse inconveniente montar na garupa. O dif?cil era subir. Corisco era alto. Nazareno estava derreado. Mas Salom? fez o cavalo recuar e aproximou-se do barranco.
-Espere um pouco. Trepe no barranco…
Padre Nazareno subiu. ?Upa!? Com um suspiro, caiu com todo o peso do corpo no lombo do animal.
-Eu n?o ag?entava o resto da caminhada. A senhorita ? um anjo!
-Pode segurar na minha cintura se tiver medo…
-N?o h? perigo, senhorita… Iremos devagar. Como bom crist?o me agarro no Santo Ant?nio…
Salom? tocou o cavalo.
Tomaram o caminho da fazenda. As ?rvores que ficavam atr?s pareciam chegar at? os bordos do barranco para espiar do alto os estranhos viajantes. Quando atravessaram o pasto os camaradas que carpiam largaram as enxadas para ver o grupo. Isso tudo deixava Salom? radiante. Nazareno, aliviado da canseira, retomava o bom humor. Estava pilh?rico e fazia a mo?a rir. Pouco depois alcan?aram a casa do administrador. Marciana, do alpendre, correu assustada a avisar o marido. Tot?nio e Eduardo apareceram na porta. U?? Que era aquilo? Mas j? os dois saltavam do cavalo alegres como duas crian?as. Riam e faziam grandes gestos.
-Encontrei uma Nossa Senhora de culote que me trouxe para o Egito ? gritou Nazareno apontando para Salom?.? Juro que se n?o fosse ela ter-me-ia deitado na estrada… Santa Virgem! N?o ag?entava mais…
E avan?ou para Tot?nio com a m?o enorme em riste, manquejando ainda, pois, nos calcanhares devia de fato ter bolhas.
*
Salom? subiu aos pulos a escada que dava acesso ao terreiro. Largara Corisco no piquete. Sentia uma fome tremenda.
-Nego v?io, venha c?…
Roque regressava do pomar com uma cesta cheia de frutas.
-Que ? isso?
O preto aproximou-se.
-Deixe ver.
Roque apresentou a cesta. Salom? pegou num caqui. Mordeu-o. O sumo escorreu-lhe pelos l?bios. ?Esplendido!? Pegou noutro. ?Verde?. Escolheu outro. ?Otim?ssimo!? Comia com voracidade besuntando as m?os no caldo da fruta. O preto estendia a cesta como se fosse bandeja e, como era muito velho, suas pernas em arco tremiam.
-Segure bem! Aten??o! Um, dois e…
Pl?! com um pontap? certeiro atirou a cesta para o ar. O preto ficou estatelado: ? Sinhazinha… ? Aos seus p?s os caquis se esborracharam. Salom? ria. Roque, atarantado, pisava nas frutas, olhava para a mo?a. Nesse instante, por?m, da porta da casa-grande, a voz ?spera de d. Santa bradou:
-Salom?!
Salom? voltou-se. Sua alegria morreu. A m?e olhava-a tempestuosa e fremente.
-Bonitas maneiras… Sim senhora.
-Estava brincando com o Roque, mam?e…
-? uma criancinha… Aprendeu isso em Paris? Venha c?.
Salom? entrou na casa com passo firme. Atirou as luvas de montaria com o chicote em cima de uma cadeira. Previa o serm?o. Dentro do seu culote azul colado ao corpo, o cabelo ca?do em ondas sobre as costas, curto, luzidio, parecia um rapaz, mas um rapaz de beleza resplandecente. Procurava permanecer s?ria. Fazia para isso um evidente esfor?o. Sentou-se numa cadeira com ar de resigna??o, evidentemente falso, mas calculadamente defensivo. D. Santa n?o se sentou. Deu uns passos pela sala. Salom? provocou:
-Que h??
A m?e n?o respondeu.
-Vamos, mam?e… Comece o serm?o. Que h??
D. Santa voltou-se. Sua voz era calma e grave. Passava por ela um tremor:
-Creio que voc? deve estar persuadida de que isto n?o ? Paris… Os costumes aqui s?o outros.
-Mas o que ? que eu fiz, mam?e?
-N?o me refiro ao que fez. Previno-a pelo que far?.
Ficou silenciosa. Percebia na atitude falsamente passiva da filha uma displicente petul?ncia, uma forma despreziva de renunciar a qualquer combate. Sabia que tudo o que lhe dissesse n?o a atingiria. Fingiria ouvir com uma aten??o compungida mas no fundo Salom? se riria dela. ?Duas mentalidades diferentes… Dois mundos em choque…? Conhecia essa cantiga. Salom? era o pai: um ser estranho cujo esp?rito lhe parecera esquivo porque ela nunca tornara sua alma propicia ? compreens?o. D. Santa era autorit?ria. Habituara-se a impor sua vontade. Salom?, com sua aguda intui??o, sabia de tudo isso. Violenta e passional vigiara e defendera sua personalidade. Defendia-se com sua b?rbara e orgulhosa independ?ncia. Alguma coisa nela tentara vingar a ang?stia calada do pai sacrificado. Ela n?o procurava tomar consci?ncia dessa ?ntima vingan?a. Era a for?a do sangue.
-Vamos falar claro, mam?ezinha. Que ? que farei?
A voz de d. Santa n?o escondeu o rancor:
-Voc?? N?o sei, mas alguma coisa me diz que voc? ? capaz de tudo.
Salom? deu um salto. Vibrava de c?lera. Dominou-se.
-Est? terminada a audi?ncia…
Com passo nervoso partiu rumo do quarto. Durante esse trajeto percebeu que perdera toda a alegria que trouxera consigo do passeio t?o divertido com o padre na garupa. Inda teve vontade de rir ? id?ia daquele grotesco vig?rio engarfado no Corisco balan?ando as pernas enormes. ?Um p?ndego ou um santo?. Atirou a blusa de camur?a sobre a cama. Seus seios hirtos pareciam furar a camiseta de cambraia. Apertou o bot?o da campainha. Isaura apareceu.
-Prepare meu banho. Depressa!
Estirou-se na cama. ?Tudo aquilo seria t?o bom se n?o a amolassem…? Paris… Fora divertido o ?ltimo ano que passara com Berta. Tudo r?pido, tudo imprevisto, tudo novo. Homens estranhos, c?rebros man?acos, artistas ex?ticos, um mundo agitado e heter?clito, enervado e enfarado, preso a uma inquieta??o sem objetivo. Parecia percorrer por tudo aquilo uma pressa in?til, pressa dirigida para nenhum lugar destinada a criar uma ilus?o de a??o e de movimento tentando assim aumentar a extens?o da vida por uma intensidade interior. Isso ou o esbanjamento da vida pelo terror do t?dio… Pobre gente. Realizavam uma exist?ncia vertical, mas a verticalidade est?ril de formiga que sobe at? a ponta de um graveto para regressar ? sua base, ao ponto inicial da partida sem ter obtido outra coisa al?m da canseira da escalada. ?Aqui no mato a vida ? diferente. Parece horizontal. O homem p?ra e a vida ? que passa sobre ele. Poupa-se ao menos o esfor?o de ir ao encontro da sua inutilidade e do seu vazio…? Por que n?o se entregar a essa nova experi?ncia? Isso para Salom? teria o gosto de uma descoberta. Tot?nio lhe parecia curioso na sua humanidade franca e rude. Eduardo, um pouco m?rbido. D. Marciana, boa. O padre Nazareno, ?um n?mero?. N?o sabia defini-lo de outra forma: um n?mero.
Isaura bateu na porta.
-Que ??
-O banho est? pronto, senhorita…
?E esta? Chama-me de senhorita… N?o sou mais sinhazinha. A preta tamb?m est? contaminada pelo dem?nio do progresso.? Certas palavras violentam um ritmo. Penetram toda uma ordem moral, transmudam um cl?ssico sistema de id?ias. ?Mam?e deve ficar por conta quando esta pretinha pronuncia certos termos. Certas aud?cias s?o uma provoca??o ao seu mundo…? Pensou nisso com vontade de rir. Na aus?ncia da m?e, sua hostilidade era ironia.
-J? vou. V? me esperar no banheiro.
Saltou da cama. Tirou a camiseta, as cal?as de montar, a combina??o.
Nua, fez r?pidos movimentos gin?sticos, depois envolveu o corpo num peignoir cor de ouro. Quando saiu, parecia que seus m?sculos se haviam tornado luminosos. Sugeriam, marcado o corpo pela seda, uma nudez estilizada e excitante. No corredor encontrou Antunes.
-Bom dia, Salom?.
-Bom dia, coronel. J? fiz minha cavalgada e agora vou para o banho.
O coronel ficou parado. Seus olhos fixaram-se nesse corpo. A seda n?o o escondia porque parecia denunciar com mais vigor seu juvenil equil?brio e a incompar?vel beleza das suas formas.
(…).
_________________
Fonte: DEL PICCHIA, Menotti. Salom?: romance. 6?ed. Rio de Janeiro: Jos? Olympio, 1991. p. 148 ? 155.