Ao começar a escrever as experiências mais importantes de minha vida, sei que toco em um tema que não recebe, há tempos, a consagração unânime dos que vivem neste país e nesta sociedade. Vou falar de três casamentos que tive em um espaço de tempo relativamente curto e que serviram para abrir uma cratera em minha existência, que dificilmente encontrará meios de se restabelecer dos choques a que foi submetido. Na verdade, poucos consideram, atualmente, que casamentos possam, ainda, se constituir em um importante assunto na vida de qualquer um. Talvez, estejam com a razão aqueles que afirmam que a instituição do casamento indique uma fase da vida da humanidade já inteiramente ultrapassada.
Acho um erro esta generalização. Tive nos casamentos a visão exata das atuais possibilidades humanas. Não realizo, porém, uma defesa desta instituição. Deixo o julgamento aos leitores.
Conseguiria eu tornar menos maçante do que foi na realidade o relato de meus primeiros trinta e dois anos de vida? Foi aos trinta e dois anos que reencontrei Júlia, minha amiga de infância, depois de vinte anos em que nada soubemos um do outro. Casamo-nos oito meses depois do encontro, que se deu no Bob’s do Avenida Central. Ela estava na fila, à minha frente e, diante do caixa, hesitou entre um sanduíche de pernil e o hamburgão. Soprei-lhe no ouvido a minha sugestão e daí a minutos estávamos, os dois, com os lábios lambuzados de molho. Que importa a sugestão que fiz? Muito menos importante para esclarecer a minha vida é saber a razão, provavelmente insondável, de ter eu dado uma sugestão. Nunca fizera antes e jamais o fiz depois. Não me intrometo nas refeições rápidas de quem quer que seja.
Nossa primeira troca de palavras, depois dos vinte anos, realmente não houve. Reconhecemo-nos simultaneamente e íamos dizer o nome um do outro, mas educadamente mantivemos a boca fechada, já que continham porções razoáveis do sanduíche escolhido. Fui o primeiro a engolir e gritei: Júlia. Ela tentou engolir rapidamente e quase se engasgou. Tomou um gole de coca-cola e, também, gritou: Mac Arthur.
Abraçamo-nos, admirados com os vinte anos que se interpunham entre nós.
Mac Arthur é, como se pode ver, o meu nome. Mac Arthur Oliviano. Doutor Oliviano, no meu trabalho, Mac ou Arthur para as mulheres e Macky para os mais íntimos. Meu nome foi dado em homenagem ao grande militar americano que se destacou nas lutas do Pacifico, na segunda guerra, e que quase conseguiu iniciar a terceira guerra mundial, na Coreia. Papai, que recebeu no batismo o nome de Julio César, sempre gostou dos militares, tendo passado grande parte de sua vida a lamentar-se por não ter entrado no exército. Aplaudiu a revolução de 64 e, apenas, começou a tornar-se um pouco crítico, quando meu irmão, Augusto César, que hoje se encontra internado em um hospício, foi preso e espancado.
Não fossem os três casamentos, cuja história irei relatar, seria uma pessoa bastante comum. Fui uma pessoa comum por trinta e dois anos. Talvez, um pouco incomum, por não ter casado antes dos trinta anos. Tive, porém, minhas razões e acho que qualquer um aprovaria meus motivos.
Meu irmão Augusto César foi internado aos vinte e três anos. Eu sou dois anos mais velho do que ele e a declaração definitiva de sua insanidade desequilibrou a confiança que eu sentia na vida. Os sete anos seguintes eu os passei suspeitando que a loucura, também, me poderia atingir e, assim, ia tomando os devidos cuidados. Fugia dos tormentos, dos amores complicados, dos desafios, das conversas mais profundas e de tudo o que poderia ser o primeiro degrau da loucura.
Pode a fuga da loucura tornar-se o sinal da própria? Apenas, o fato de que dela consegui livrar-me permite que seja feita por mim tal pergunta. Reconheço que, ao fugir, ao evitá-la, dela me aproximei perigosamente. Examinava, todas as manhãs, nestes anos todos, as ideias que ocupavam a minha mente, para verificar se entre elas não se intrometera alguma ideia pouco confiável e que em pouco tempo levaria todas as outras a situações e locais indevidos. Uma dessas ideias que me atormentou por muitos anos foi de largar o meu trabalho e a minha profissão. Sou, ou melhor, fui advogado.
INTRODUÇÃO LINEAR: A generalizada carência de paradigmas uniformes e a triste desistência de um método único para tratar dos análogos que se distribuem pelas coisas e pelos seus saberes impõem um movimento corajoso que seja capaz de sintetizar a ciência mais hermética com os algoritmos mais intranquilos. Desta forma, aceitando um desafio contemporâneo, apresentamos uma série de indicações de método, que integram em um só movimento o sentido místico-poético com uma engenharia econômico-física e uma orientação para os fracassos.
SINTOMA PRINCIPAL: As manifestações do real que serviram de base para esta incursão estão à vista de todos, embora haja muita recusa em apreciá-los. Não condenamos esta recusa, porque hoje, sabemos muito bem, a cegueira é aceita como uma forma indevida de visão e a própria visão sabe-se infeliz e inferior, sorrindo quando não devia fazê-lo.
DETERMINAÇÕES E PERCURSO
I. O entorpecimento progressivo
Sua obtenção não deve ser mais condenada, pois reconhecemos torpezas no progresso. Diga se é possível manter-se sempre alerta, quando a vontade de despedir-se é um progresso frente à disposição de se fazer escravo de qualquer sedução ou qualquer encantamento.
Não há uma receita para o entorpecimento, embora sejam encontrados especialistas. Há, sem dúvida, um ponto que vai da alma ao corpo e vice-versa, onde reside a glândula do entorpecimento. Basta mergulhar em si mesmo e desligá-la que um brilho do pensamento começará a ofuscar tanto, que se tornará insuportável.
II. Os desvios da sonolência
Ir mais fundo é preferir o sono. Ir a fundo no sono é preferir a morte. Ir a fundo na morte é preferir piadas de mau gosto. Ir a fundo nas piadas de mau gosto é de um mau gosto ainda maior.
Sempre a analogia com o sono. Por que nunca a analogia com a insônia? Querer dormir e não poder senão à base de remédios é uma oportunidade que muitos perdem. Haverá perdão para a insônia?
III. A redundância do primor
Não mais se anseia tanto pelo primor. Não me arrependo, porque a partir de um dado momento o meu método não produzia mais primores.
Varie o prisma e verá o primor por ângulos nunca alcançados. Não há um primor que resista.
IV. Descrença nos martírios
O pagamento que fazemos faz sorrir os credores, que até então eram simples mártires. Manter as dívidas por tempos longos demais e pagar sem um aviso antecipado: há um espécie de remorso que hoje não se cultiva mais.
Queria aprender sobre certos suplícios, mas a informação escasseia. Queria aprender, melhor dizendo. O roteiro para construir qualquer fantasia, projeto ou plano de viagem dá a impressão de que precisamos de um pouco de dor.
Sem dúvida, os anestésicos mexeram com a nossa fé.
V. Perfurações assinaladas
Há lugares do corpo que já são bem conhecidos e que, centros de energia e pontos de passagem para o cósmico, têm merecido respeito, atenção e pesquisa.
1 Nota da editora: Comparar com Toliceia: O texto é quase o mesmo. Começa com uma espécie de aforismos e traz depois um enredo, deixado interrompido.
(2a versão) 1
Corre nestas veias um sangue que alterna a sua origem, que vê no passado diferentes ancestrais. Rei Davi, sabendo que você está no seu túmulo, que também estende a mão ao Salvador e procura nos legar o que foi a primeira luta que cobriu de glória a minha família. Rei Salomão, acorda a minha sabedoria, ressalta no meu rosto o sinal de que poderei herdar algum reino para não ser apenas um cidadão comum perdido na terra.
Pode parecer que a ascendência de reis tivesse concentrado em meu rosto as formas da soberania. Foi o contrário que aconteceu. Desde pequeno fui súdito. Primeiro dos desejos intensos e violentos da minha mãe, que me desejou menina e que ganiu de ódio ao me ver. Depois, ao longo da vida, pelos caminhos mais ou menos ásperos, por onde prossegui, jamais atingi qualquer trono, jamais sentei-me com majestade. Há em meu interior um sentido de nulidade difícil de ser encontrado, difícil de ser assimilado por quem quer que me conheça. Poucos na humanidade, de que se tem noticia, possuem dentro de si um nada tão avantajado, que me faz desaparecer onde todos se sentiriam plenos e realizados. É possível que o rei Davi e o rei Salomão tenham tido dentro de si alguma parcela deste nada, principalmente quando se curvaram diante do Criador.
Já busquei nos salmos de Davi algum consolo, e foi espantoso descobrir que nunca me aclamaram. Parece que seu poder demanda, para ser usado, um mínimo de crença no Criador. Mas é exatamente essa crença que esteve sempre ausente.
Já recebi convites para expor de modo solene tudo por que passei ao tentar entender o que tinha acontecido em minha vida. Seria o caso de considerar isto uma honra que alimentaria o meu orgulho e minha altivez? Ou apenas uma pequena homenagem a quem teve na vida apenas sofrimentos médios? Há tantos que sofreram dores ainda maiores e cujas existências foram mais ou menos uma tortura. O que torna a minha vida singular?
Talvez a minha capacidade de berrar e de pôr em frases mais ou menos bem feitas o que para os outros vive no silêncio ou em algumas reclamações que são repetidas sem brilho. Mas esta resposta também me martiriza. Por que esta escolha sem razão, por que esta espécie de graça no meio de tantas desditas?
Começou nos primeiros momentos, quando ainda soavam os meus primeiros choros e que me soube inteiramente só, tendo por mim mesmo como único autor. Nos meus recantos, onde urinava e defecava com grandeza, construí o meu palácio de glória e assentei no meu primeiro trono. Distantes de mim encontravam-se aqueles que me tinham em casa, amedrontados pela grandeza do ser que haviam gerado e temendo aproximar-se do meu berço, porque sentiam aí a força numinosa de um deus que nascia para o mundo. Mas acabei pagando caro por este afastamento. Em vez de virem me adorar e adornar-me como se faz com os deuses, apenas afastaram-se e lançaram-me na solidão profunda e perfeita. E eu, ainda mal consciente de minhas origens, vivi os horrores da solidão e da tristeza, que, hoje sei muito bem, foi resultado da vingança de um deus maior, que me lançou para nascer em um lar tão pequeno e descurado.
Não tenho dúvida de que alguma parte da sabedoria de Salomão transmite-se no meu sangue e em alguns momentos sinto que posso entender algo da condição humana e do que acontece em sociedade. Mas sempre me escapa um entendimento maior acerca de meu fado, dos acontecimentos terríveis que sempre me perseguiram e, a este respeito a minha sabedoria é inútil.
No entanto, ao poucos vim fazendo uma descoberta que a muitos assustará. Descobri que sou o rei do nada, o herdeiro de coisa nenhuma.
1 A segunda parte deste texto se intitula Distúrbios, outro título do autor. Nota da Editora.
LUCIANO ZAJDSZNAJDER
I
Embora eu pudesse perceber o que acontecia, ficara temporariamente incapacitado de falar a linguagem do coração das mulheres. Era uma espécie de afasia afetiva que de tempos em tempos me acudia.
No início tentei lutar contra estas dificuldades. Percebi, então, que quanto maior o esforço, menores os resultados e resolvi ficar recolhido. Tentei escrever alguma coisa para preencher o tempo livre. Saíram de início alguns poemas, mas logo a fonte secou. Na partilha de nossas coisas, quando da separação de Júlia, coube-me um sítio no Recreio dos Bandeirantes, que então comecei a frequentar mais assiduamente. Às vezes dormia lá, durante a semana e quase todo fim de semana deixei-me ali ficar. Lia alguma coisa – não em excesso, porque a leitura acabava sempre por me enjoar – e tentava mexer na terra, fazendo um canteiro ou plantando. Mas o caseiro era mais hábil que eu e as coisas que eu fazia ficavam tão desalinhadas e toscas, que logo desisti. Estava literalmente sem fazer nada. Usava meu tempo para ler distraidamente os jornais e, principalmente, para fumar, torcendo que um enfisema avassalador acabasse de uma vez comigo. Certamente, em algum outro lugar falarei sobre este fenômeno de secura afetiva, que muito me acode e que talvez tenha em comum com o que os místicos antigamente chamavam de assedia.
Para evitar um total isolamento, para o qual tendia e que poderia ter resultados até funestos, continuei a ver alguns amigos e a gente de minha família. Quando chegava à sua casa, ou quando saía com eles, ficava macambúzio e caladão. O esforço sincero que eles faziam para descobrir o que ia comigo, para me entreter ou alegrar-me não surtia efeito e acabavam por me amofinar. Reduzi as minhas saídas e resolvi esperar que o tempo se encarregasse de me fazer voltar à alegria natural. Uma tia chegou a insistir que eu procurasse um psicoterapeuta. Fiz-lhe ver que não adiantaria, porque eu já havia passado quase um quanto da minha existência frequentando os divãs e se algum resultado obtive, não havia mais por conseguir.
Nestes momentos de grande escuridão, às vezes aparecem algumas luzes, que se tomadas como um alívio momentâneo, são positivas, mas, se consideradas como a solução, apenas servem para nos fazer mergulhar mais fundo. Foram dois estes sinais, que até pareciam clarões. Não fizeram outra coisa, entretanto, senão me lançar em um abismo mais escuro.
O recado estava na minha mesa de trabalho e eu o vi logo depois do almoço. Dizia para eu ligar para Carlos Antonio, com quem eu não tinha estado há mais de cinco anos. Ele tinha sido meu colega de ginásio e, depois, embora tivéssemos seguido vias diferentes, sempre que, por acaso, nos encontrávamos, a conversa se estendia e víamos uma vez ou outra, a seguir, para depois, por um acaso pouco explicável, começarmos de novo a nos distanciar, até um novo encontro.
Ainda sem ter tempo, faço um primeiro esforço, uma primeira tentativa de ser justo com todos os que esperavam de mim uma fuga primorosa.
Aprendi algumas lições de como lidar com a esperança, alimentando-a com pequenos dissabores.
Na outra margem da baía, onde o sol, indiscutivelmente nasce, estão buscando os erros mais disfarçáveis.
Um pouco antes de desmaiar, credores de todos os tipos me acossavam. O mais violento foi o pai de minha mulher, que queria de volta os gastos com o casamento.
Devia fugir das aflições, mas é muito difícil delas escapar. Sei que poderia levar uma vida de alegrias se abrisse mão de uma parte de minha dignidade. Precisaria pedir perdão a todos a quem justamente ofendi. Precisaria dizer a todos a quem revelei a sua dura verdade que estava mesmo enganado.
Os desvios da sonolência
Um senhor que é capaz de matar e perdoar com o mesmo gesto delicado e indiferente. Um senhor que reside no fundo do mar e que nunca viu sequer os reflexos do sol. Entre as águas muito geladas, ensina como errar entre rochedos e crateras e prende em seus braços peixes de grande volume.
Fugir das armadilhas e dos arpões, fugir das redes e dos barcos de pesca, das bombas e de uma isca imaginária. O senhor do fundo do mar ensina a fugir e, com uma certa coragem, não evita imprudências.
Entre este senhor e seus aliados arma-se um conflito que demora a se irromper, e depois a concluir-se. A guerra submarina promete estremecer as ondas e devolver, ao final, um tipo de mar sereno.
A redundância do primor
Sei que o meu amado patrão não está mais por aqui nem, provavelmente, voltará. Está preso na Argentina, onde matou sua mulher e seus filhos. Quem o conheceu não pode imaginá-lo com um martelo na mão, a matar os seus entes queridos. Não sei dos detalhes e parece uma história que, de vez em quando, nos desperta para uma realidade impossível.
Este patrão foi o primeiro homem a me comandar, a quem obedeci com alegria e vontade. Tinha uma forma de comandar, não sei bem de onde vinha, e que era capaz de despertar em todos nós – éramos trinta empregados – uma vontade de servir, de fazer qualquer uma de suas vontades. Sei que, em casa, era a mesma coisa. Sua mulher adorava atendê-lo e os filhos brigavam para ver quem iria lhe trazer as coisas, o chinelo, os jornais, o copo de uísque.
Contam que na Argentina – nem sei se é verdade – ele encontrou alguns seres humanos que não estavam dispostos a obedecê-lo a seu primeiro chamado. Mas, afinal, por que resolveu mudar-se para lá? O que lhe traria de ganho vender seus doze açougues no Rio e mudar-se para Buenos Aires? Ninguém entendeu.
Dizem, também, que ele foi endoidando com uma amante portenha. Era uma jovem de dezoito anos – isto é, menos trinta e dois do que ele – que, às vezes lhe fazia as vontades, mas nem sempre. E ele ficava profundamente perturbado ao não saber se, neste ou naquele dia seria atendido. Dizem mais, que ela fez com que ele aceitasse, que participasse de tudo, com um antigo namorado. Mas será possível – pergunto eu – que estão falando da mesma pessoa que conheci?
Tenho ouvido muitas explicações. Nenhuma delas me convenceu. Uns dizem que foi o clima diferente que lhe afetou o cérebro. Outros – não sei onde acharam esta ideia – que ele tinha sangue argentino: o seu verdadeiro pai era de Buenos Aires, um amante de sua mãe.
1 Este texto é uma variante ou continuação de Medições (Toliceia), ambos livros de aforismos. Nota da Editora.
Depois de ter escapado dos arroubos da juventude, todo homem que não foi acometido pelo ceticismo total em relação aos negócios do coração, percebe que certas mulheres por sua maneira de ser, pelos pequenos gestos e movimentos durante o coito, por algumas ideias que têm e também por uma razão bem inescrutável, passam a constituir o seu tipo. Que explicação se dá para isto? A verdade é que, quando encontramos uma mulher assim, nossa cabeça se transforma, temos ereções em qualquer lugar e o corpo fica sujeito a variações térmicas inesperadas e algo cruéis. Júlia não tinha sido isto para mim e depois de nossa separação, conheci muitas mulheres e de vez em quando a minha cama. Cheguei até a exagerar, encontrando-me no mesmo dia com vários grupos de duas ou três mulheres. Mas ninguém apareceu que coincidisse exatamente com o meu tipo. No entanto, ao contrário do que acontece com muita gente que fica desesperada de solidão, esta falta não me afetava realmente e eu seguia em meu trabalho e na minha vida, tendo em geral sentimentos médios e emoções suportáveis. Um dia, porém, o tipo apareceu.
Talvez se eu contasse isto há anos atrás, causaria algum escândalo. Hoje com esta alteração de costumes – as transformações culturais que deviam ser sempre o centro de nossas atenções – o que me ocorreu não causaria senão uma surpresa ligeira, incapaz de afetar o rosto do leitor a não ser por um ligeiro afastamento dos lábios. Pois bem, o fato é que as características do meu tipo de mulher fui encontrar em um rapaz que servia cafezinho em um bar perto de meu trabalho. Levei muito tempo para percebe-lo, mas, quando o notei senti por ele uma imensa simpatia e logo, inexplicavelmente, largava tudo para dar um pulo no bar duas ou três vezes por dia. Vi que ele também ficava muito emocionado quando me via. No começo nem trocávamos palavras. Apenas uns olhares tímidos e eu notava a sua mão tremer quando ele colocava café na minha xícara.
Preciso dizer que eu levei algum tempo para entender o que estava sentindo por Alberto, era este o nome do rapaz. Todo mundo sabe que os nossos desejos amorosos, apesar de provirem do nosso fundo mais selvagem, sofrem uma transformação quando vem à superfície e os meus estavam muito condicionados pela aparência feminina. No dia, porém, em que tudo irrompeu eu já tinha aceito a ideia de que o amor deve ser respeitado, independente do seu objeto. E ao pensar assim vi que não estava, senão, ficando em dia com a vanguarda sexual do momento. Mais do que isso, eu andava até meio atrasado, pois em certos círculos a coisa já era corriqueira.
Quando começamos a namorar (houve namoro, noivado e casamento) eu estava plenamente convencido de que tinha de seguir as ordens de meu coração. No entanto, este segundo casamento também não deu certo. Não posso atribuir isso a Alberto que é uma pessoa realmente maravilhosa. Afável, sincero, educado. E quando nos tornamos íntimos, vi que esta forma de ser acentuava-se cada vez mais e eu tinha ao meu lado exatamente a mulher que sempre quis. Mesmo na cama a coisa era perfeita. Não vou entrar em detalhes a respeito, porque em parte são bastante óbvios para pessoas temperadas pela vida, que deverão constituir a maioria dos meus leitores. Quem quiser saber mais compre no jornaleiro as revistas fotográficas especializadas.
Onde vou colocar a falha? Aonde não deu certo? Não posso atribuir a culpa a nenhum de nós. Eu me dediquei à relação como a coisa mais importante da vida e o mesmo posso dizer de Alberto. O nosso namoro esteve próximo da perfeição. Nada de escândalos, ciumeiras bestas, nem aquela coisa idiota de fugir do mundo para viver intensamente o encanto mútuo.
Afinal, consigo aprender o que interrogo – o valor carnal de todo discurso preso às formas. Nenhum – porque está distante das vegetações e dos sobressaltos. Nenhum valor para o conhecimento que possa substituir as pulsações que já vivi em sonho. Então preciso possuir a evidência, e logo a perco.
Meu passado é tão curto e, no entanto, eu sinto como que uma vida cujo desejo único é beirar o fim. Não creio em suicídios jovens, mas em ressurreições. Eu, que ainda não vivi, preciso morrer com urgência. Morrer na selva, no sonho amazônico ou africano. Padecer de febres e torturas, nas mais ingratas estradas. Mas nunca em expedições, viagens – com seus álibis. Faz-se o percurso por seus fins, mas o que se ama de fato são os meios. Quero muito: que o acaso realize todos os meus sonhos. Quero simplesmente profetizar minha morte.
No entanto, minha vida seguiu apenas o curso das aparências. E dela tenho sido o cúmplice muito útil. O primário, o ginásio, as dúvidas adolescentes. Os meus sonhos nasceram para ser maiores que minha vida – pelo menos até esse tempo. Portanto, minhas memórias devem contê-los mais que todo o resto. Recordar os sonhos é bem mais que tentar esquecer as ficções possíveis. É aliviar a vida para o futuro.
O segundo semestre de 1950 foi talvez tão cinzento que nenhum de ano para frente e para trás lhe possa superar. Para mim uma virada. Não pelos detalhes de um curso primário que se inicia. Mas senti – acreditem! – que o Brasil mudava. A década dos quarenta eu a senti tão velha no que me restou: bolorenta e espessa como seu último governante. Talvez para seus moradores tenha o sabor deste nosso tempo imóvel mas sem seus artifícios, riscos e conflagrações. 1950 foi uma mudança; nem sei se os mais velhos o sentiram de fato; eu próprio só me dei conta doze anos depois; foi quando me contaram que o Partido Comunista havia convocado o povo e os surdos-mudos para as armas e a revolução. Naquele semestre em que as coisas tomavam outro aspecto eu sentia a cidade no interior de um ônibus escolar, e nem podia imaginar o fracasso de uma sonhada guerra civil espanhola.
Como importam pouco os anos de garoto. Se alguma vez fui menino de fato, isso se deu depois dos vinte anos; a queda de Jango infantilizou tanta gente que pensava estar fazendo mais que brincar. A realidade se tornou tão hostil que o lúdico pôde imperar com todos seus cortejos. Isto não é uma análise sutil; apenas a descrição distanciada de uma vivência comum. Os que “nasceram” depois de 1964 são outra gente – é o que me dizem. E já ouvi até – e com fascínio – que eles nasceram sem o eu. É uma vida por que sempre ansiei e que um dia pretendo provar.
Não há mais o anacrônico costume de relatar as lembranças infantis, talvez caráter persistente das origens agrárias e que sucumbe na padronização das cidades. É possível também que apenas os velhos – os efetivamente velhos – se recordem de seus primeiros anos. Ou os que os valorizam como jamais eu poderia fazer. Quero cortar minha infância, para ver se deslumbro algum valor. Mas é seco e sem nenhum clarão. As comuns pederastias, os roubos, tombos e choros. E a perseguição atroz que começou a me acompanhar. Dela, que jamais entendi, seria o caso de falar, não fossem tantas as sombras.
1 Texto original datilografado.
1º FEVEREIROVoltar aos dez minutos por dia, depois de alguns meses, que parecem vazios. O que ocorreu foi em geral muita dor, muito infortúnio e uma visão negra das coisas. De fato, esta visão permanece e repousa em mim uma dor: de que não há mais nada nesta vida em que eu possa crer. Vivo no interior de uma desesperança que é finalmente completa: nada mais posso esperar. É a velha desesperança que já se encontrava instalada e que não perde a oportunidade para se apresentar.
E isto tudo ocorre mesmo quando estou em pleno trabalho-oração em relação a Shiva. Neste trabalho-oração, pretendo estar mexendo com minhas energias fundamentais, minha Kundalini. No entanto, apesar disto, eu tive um dia tomado de dor e de sentimentos de desvalor – tão antigos e tão conhecidos.
Mas não estou para estas descrições e sim para alguma atividade criativa que se manifeste nestas linhas e neste trabalho de escrever cotidiano ao qual pretendo voltar.
Sei que estou às voltas com a tese e com a pesquisa sobre a ética, mas tenho tempo para outras coisas. É certo que sinto a barreira da publicação – sinto que sou ignorado pelo jornal do Brasil. Mas isto não parece razão e o que pretendo fazer é continuar produzindo e realizar, nos próximos anos, uma obra.
Hoje, eu senti estar abandonando a ideia de escrever em inglês e ir para os USA. Mas isto pode realmente ser mudado, porque daqui a alguns anos posso conseguir a aposentadoria e achar melhor ir para lá e tentar escrever. Isto depois de ter realizado uma obra por aqui.
Mas que obra? Há os trabalhos a serem feitos no âmbito da filosofia, na continuidade dos estudos de ética. Há as obras de ficção, sejam contos, sejam romances. Há as peças teatrais. Há muitas coisas por fazer. E hoje estou trabalhando na tradução das poesias de Rumi e de Kabir.
2 FEVEREIRO
Antes de passar aos pensamentos, entrego-me a uma inspeção, mais ou menos criteriosa, das formas como a morte está esperando. Sei que são muito variadas, especialmente neste fim de século. Mas sei que tenho driblado suas garras há bastante tempo. Ao contrário de muitos, que nem têm consciência dela, eu ouço diariamente a sua voz e muito sei dela.
Mas tenho, também, do meu lado, a palavra da vida, que sabe muito bem que tenho por inteiro um compromisso. Sabe disto você que está ao meu lado, sem querer ir embora, porque teme me abandonar. A velha história de Freud do fort-da, repetida à exaustão pelos que escrevem sobre a psicanálise.
Ontem, quando estava com Jorge Coelho, houve três momentos difíceis. O primeiro é recordar o vazio de minhas relações com os que estavam envolvidos com filosofia ou teoria. É que eu precisava me sentir inteiro para estar com eles. Naquela época havia o grupo que participava do Tempo Brasileiro, mas eu não sabia nada disso. Sempre só, tentando me preparar para a vida.
Lembro-me de Eginardo Pires, que lia tudo e tinha uma grande capacidade de ler, e que depois eu encontrei bem althusseriano, quando eu já me encontrava leitor de Wittgenstein. Não vi tantos efeitos de tanta leitura. Embora tudo o que fez por escrito esteja registrado e ele tenha mostrado grande capacidade teórica, havia uma espécie de dívida que tinha de pagar. Que dívida era esta, eu nunca entendi.
Mas em relação ao Jorge Coelho, houve também a referência a Gerd Bornheim, e aí apareceu alguém grande e eu fiquei pequeno. Será que não posso ser grande em relação a absolutamente nada? Vi que não falei teoricamente muito a respeito de Marcuse, mas é que não me lembro muito bem de seus livros. São ecos longínquos.
Não me lembro da terceira coisa. Mas sei que escrever desta maneira como o fiz não é exatamente o que estou pretendendo nestes dez minutos. Deveria tentar de novo.
PRIMEIRO
Agora estamos realmente juntos e podemos começar esta tarefa, esta viagem, esta forma de autotransformação que nada transforma. Anota o que está acontecendo nesta viagem. Quem me diz para anotar? Realmente, alguém que está tão junto de mim que mal posso ver, tão íntimo. Quem sabe, um irmão que nasceu comigo e esteve sempre junto, que eu mal podia ver. Qual é o seu nome, meu filho, meu amigo? Está um pouco envergonhado e se escondeu nas dobras de mim mesmo. Será que não tem um pouco de educação e vem responder ao meu chamado?
Não é nada demais pegar o telefone e ligar para você mesmo. E encontrar o sinal de ocupado. Não há um jeito de falar. Peço auxilio à telefonista. Sua voz se parece, incrivelmente, com a de uma professora do primário, com quem aprendi o pouco que sei a respeito da reprodução das abelhas. Ela, também, me ensinou um – muito pouco mesmo – acerca do sexo dos seres humanos, assunto que não me tem interessado mais. Afinal, telefonista, será que o telefone está ocupado mesmo ou se quebrou? Mais e mais perguntas: será que ele tirou o aparelho do gancho de propósito? Uma bela metáfora esta do telefone. O pior de tudo é que esta pessoa que me diz as coisas não é uma metáfora e, ao contrário do que pensam por aí, não é um eu meu. Não. Realmente é uma figura mais ou menos conhecida minha que me tem acompanhado e muitas vezes até me sugere alguma coisa muito interessante.
Muito tímido, muito tímido. Afinal, uma convivência com alguém tímido tem de acabar em algum tipo de desentendimento. Até brigas e não apenas xingamentos. Íntimas batalhas corporais. Sei que isto de batalha corporal não é muito comum. Talvez seja preciso explicar. Morder de verdade… as próprias mãos, os próprios lábios, chutar os próprios testículos etc…etc.
Todo mundo gosta de estar em paz com a própria consciência. Isto se chama: viver bem, muito bem. Talvez melhor do que ir comer nos melhores restaurantes ou sentar-se nas cadeiras dos poderosos. Mesmo o colo dos poderosos tem um saborzinho que poucos conseguem desprezar, especialmente se é um colozinho quente – talvez úmido – onde a gente pode se sentir seguro e certo de que vai comer ao menos um pouquinho do que está no prato dessa gente. Mesmo os poderosos gostam de estar em paz com sua consciência e talvez sejam os mais capazes de fazê-lo, possuindo para tanto uma habilidade ímpar. Meu tio – um homem que viveu seus últimos vinte anos entre um certo tipo de poderosos – sempre me dizia que eu devia juntar-me a eles se quisesse aprender realmente como lidar com a voz da consciência. Este meu tio era um grande imoralista, e se hoje me visse e soubesse como estou, ficaria muito triste e preocupado. Afinal, quem é este sujeito que tem o meu nome e minhas preocupações e os problemas de consciência que me afligem? Posso dizer a verdade: o que realmente me aflige é a certeza de que fracassei na vida.
O estudo do fracasso humano não vem recebendo ultimamente a consideração que merece. Eu próprio tentei evitar essa matéria por muitos anos, até que se tornou evidente que eu seria, também, um bom exemplo de livro-texto. Distingo os grandes fracassos do fracasso que está presente em qualquer vida. Obtendo menos atenção que merece, é sem dúvida um assunto bastante tabu.
Estas observações merecem ser mais metódicas. Não posso garantir se os maiores fracassados foram os suicidas – e não aqueles que apenas tentaram. Às vezes, estou certo de que os maiores fracassados viveram longamente. E, talvez, possa até dizer que houve fracassados bem sucedidos. Neste caso, o sucesso e o fracasso caminham tão juntos que é sempre muito difícil entender do que estou falando. Precisarei explicar isto melhor.
Não será possível fazê-lo agora. Afinal, tenho de destinar estas primeiras palavras a bem distinguir entre o que é verdade na minha vida e em que consistem as minhas preocupações atuais, e outras coisas de muito menor importância.
1 Escrito aos 33 anos (ver final do texto). Mas também menciona quatro décadas de vida. Nota da Editora.