LIÇÃO DE BOTANICA


Autor: Machado de Assis
Título: LIÇÃO  DE BOTANICA
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 09/02/2006

De LIÇÃO  DE BOT?NICA

 
 

Machado de Assis

 
 
PESSOAS
D. HELENA
D. LEONOR
D. CEC?LIA
BAR?O SEGISMUNDO DE KERNOBERG
Lugar da cena: Andara?
 

ATO ?NICO

Sala em casa de D. LEONOR. Portas ao fundo, uma ? direita do espectador.
 

CENA PRIMEIRA

D. LEONOR, D. HELENA, D. CEC?LIA
 
(D LEONOR entra, lendo uma carta, D. HELENA e D. CEC?LIA entram do fundo.)
D. HEL. J? de volta!
D. CEC. (a D. HELENA, depois de um sil?ncio). Ser? alguma carta de namoro?
D. HEL. (baixo). Crian?a!
D. LEO. N?o me explicar?o isto?
D. HEL. Que ??
D. LEO. Recebi ao descer do carro este bilhete: ?Minha senhora. Permita que o mais respeitoso vizinho lhe pe?a dez minutos de aten??o. Vai nisto um grande interesse da ci?ncia?. Que tenho eu com a ci?ncia?
D. HEL. Mas de quem ? a carta?
D. LEO. Do Bar?o Segismundo de Kernoberg.
D. CEC. Ah! o tio de Henrique!
D. LEO. De Henrique! Que familiaridade ? essa?
D. CEC. Titia, eu…
D. LEO. Eu qu??… Henrique!
D. HEL. Foi uma maneira de falar na aus?ncia. Com que ent?o o Sr. Bar?o Segismundo de Kernoberg pede-lhe dez minutos de aten??o, em nome e por amor da ci?ncia. Da parte de um bot?nico ? por for?a alguma ?gloga.
D. LEO. Seja o que for, n?o sei se deva receber um senhor a quem nunca vimos. J? o viram alguma vez?
D. CEC. Eu nunca.
D. HEL. Nem eu.
D. LEO. Bot?nico e sueco: duas raz?es para ser gravemente aborrecido. Nada, n?o estou em casa.
D. CEC. Mas quem sabe, titia, se ele quer pedir-lhe… sim… um exame no nosso jardim?
D. LEO. H? por todo esse Andara? muito jardim para examinar.
D. HEL. N?o, senhora, h? de receb?-lo.
D. LEO. Por qu??
D. HEL. Porque ? nosso vizinho, porque tem necessidade de falar-lhe, e, enfim, porque, a julgar pelo sobrinho, deve ser um homem distinto.
D. LEO. N?o me lembrava do sobrinho. V? l?; aturemos o bot?nico. (Sai pela porta do fundo, ? esquerda).
 

CENA II

D. HELENA, D. CEC?LIA
 
D. HEL. N?o me agradeces?
D. CEC. O qu??
D. HEL. Sonsa! Pois n?o adivinhas o que vem c? fazer o bar?o?
D. CEC. N?o.
D. HEL. Vem pedir a tua m?o para o sobrinho.
D. CEC. Helena!
D. HEL. (imitando-a). Helena!
D. CEC. Juro…
D. HEL. Que o n?o amas.
D. CEC. N?o ? isso.
D. HEL. Que o amas?
D. CEC. Tamb?m n?o.
D. HEL. Mau! Alguma cousa h? de ser. Il faut qu’une porte soit ouverte ou ferm?e. Porta neste caso ? cora??o. O teu cora??o h? de estar fechado ou aberto…
D CEC. Perdi a chave.
D HEL. (rindo). E n?o o podes fechar outra vez. S?o assim todos os cora??es ao p? de todos os Henriques. O teu Henrique viu a porta aberta, e tomou posse do lugar. N?o escolheste mal, n?o; ? um bonito rapaz.
D. CEC. Oh! uns olhos!
D. HEL. Azuis.
D. CEC. Como o c?u.
D. HEL. Louro…
D. CEC. Elegante…
D. HEL. Espirituoso…
D. CEC. E bom.
D. HEL. Uma p?rola… (Suspira) Ah!
D. CEC. Suspiras?
D HEL. Que h? de fazer uma vi?va, falando… de uma p?rola?
D CEC. Oh! tens naturalmente em vista algum diamante de primeira grandeza.
D. HEL. N?o tenho, n?o; meu cora??o j? n?o quer j?ias.
D. CEC. Mas as j?ias querem o teu cora??o.
D. HEL. Tanto pior para elas: h?o de ficar em casa do joalheiro.
D. CEC. Veremos isso. (Sobe) Ah!
D. HEL. Que ??
D. CEC. (olhando para a direita). Um homem desconhecido que l? vem; h? de ser o bar?o.
D. HEL. Vou avisar titia. (Sai pelo fundo, esquerda).

CENA III

D. CEC?LIA, BAR?O
 
D. CEC. Ser? deveras ele? Estou tr?mula… Henrique n?o me avisou de nada…
Vir? pedir-me?… Mas n?o, n?o, n?o pode ser ele… T?o mo?o!… (O BAR?O
aparece).
BAR?O (? porta, depois de profunda cortesia). Creio que a Excelent?ssima Senhora D. Leonor Gouveia recebeu uma carta. . . Vim sem esperar a resposta.
D. CEC. ? o Sr. Bar?o Segismundo de Kernoberg? (O BAR?O faz um gesto afirrnativo) Recebeu. Queira entrar e sentar-se. (? parte) Devo estar vermelha…
BAR?O (? parte, olhando para CEC?LIA). H? de ser esta.
D. CEC. (? parte). E titia n?o vem… Que demora!… N?o sei que lhe diga…
estou t?o vexada… (O BAR?O tira um livro da algibeira e folheia-o). Se eu pudesse deix?-lo… ? o que vou fazer. (Sobe).
BAR?O (fechando o livro e erguendo-se). V. Ex.? h? de desculpar-me. Recebi hoje mesmo este livro da Europa; ? obra que vai fazer revolu??o na ci?ncia; nada menos que uma monografia das gram?neas, premiada pela Academia de Estocolmo.
D. CEC. Sim? (? parte) Aturemo-lo, pode vir a ser meu tio.
BAR?O. As gram?neas t?m ou n?o t?m perianto? A princ?pio adotou-se a negativa, posteriormente… V. Ex.? talvez n?o conhe?a o que ? o perianto…
D. CEC. N?o, senhor.
BAR?O. Perianto comp?e-se de duas palavras gregas: peri, em volta, e anthos, flor.
D. CEC. O inv?lucro da flor.
BAR?O. Acertou. ? o que vulgarmente se chama c?lice. Pois as gram?neas eram tidas… (Aparece D. LEONOR ao fundo) Ah!
 

CENA IV

OS MESMOS, D. LEONOR
 
D. LEO. Desejava falar-me?
BAR?O. Se me d? essa honra. Vim sem esperar resposta ? minha carta. Dez minutos apenas.
D. LEO. Estou ?s suas ordens.
D. CEC. Com licen?a. (? parte, olhando para o c?u). Ah! minha Nossa Senhora!
(Retira-se pelo fundo).
CENA V
D. LEONOR, BAR?O
(D. LEONOR senta-se, fazendo um gesto ao BAR?O, que a imita).
BAR?O. Sou o Bar?o Segismundo de Kernoberg, seu vizinho, bot?nico de voca??o, profiss?o e tradi??o, membro da Academia de Estocolmo, e comissionado pelo governo da Su?cia para estudar a flora da Am?rica do Sul. V. Ex?. dispensa a minha biografia? (D. LEONOR faz um gesto afirmativo) Direi somente que o tio de meu tio foi bot?nico, meu tio bot?nico, eu bot?nico, e meu sobrinho h? de ser bot?nico. Todos somos bot?nicos de tios a sobrinhos. Isto de algum modo explica minha vinda a esta casa.
D. LEO. Oh! o meu jardim ? composto de plantas vulgares.
BAR?O (gracioso). ? porque as melhores flores da casa est?o dentro de casa. Mas V. Ex?. engana-se; n?o venho pedir nada do seu jardim.
D. LEO. Ah!
BAR?O. Venho pedir-lhe uma cousa que lhe h? de parecer singular.
D. LEO. Fale.
BARRO. O padre desposa a igreja; eu desposei a ci?ncia. Saber ? o meu estado conjugal; os livros s?o a minha fam?lia. Numa palavra, fiz voto de celibato.
D. LEO. N?o se case.
BAR?O. Justamente. Mas, V. Ex?. compreende que, sendo para mim ponto de f? que a ci?ncia n?o se d? bem com o matrim?nio, nem eu devo casar, nem… V. Ex?. j? percebeu.
D. LEO. Cousa nenhuma.
BAR?O. Meu sobrinho Henrique anda estudando comigo os elementos da bot?nica. Tem
talento, h? de vir a ser um luminar da ci?ncia. Se o casamos, est? perdido.
D. LEO. Mas…
BAR?O (? parte). N?o entendeu. (Alto) Sou obrigado a ser mais franco. Henrique anda apaixonado por uma de suas sobrinhas, creio que esta que saiu daqui, h? pouco. Impus-lhe que n?o voltasse a esta casa; ele resistiu-me. S? me resta um meio: ? que V. Ex.? lhe feche a porta.
D. LEO. Senhor Bar?o!
BAR?O. Admira-se do pedido? Creio que n?o ? polido nem conveniente. Mas ? necess?rio, minha senhora, ? indispens?vel. A ci?ncia precisa de mais um obreiro: n?o o encadeemos no matrim?nio.
D. LEO. N?o sei se devo sorrir do pedido…
BAR?O. Deve sorrir, sorrir e fechar-nos a porta. Ter? os meus agradecimentos e as b?n??os da posteridade.
D. LEONOR (sorrindo). N?o ? preciso tanto; posso fech?-la de gra?a.
BAR?O. Justo. O verdadeiro benef?cio ? gratuito.
D. LEO. Antes, por?m, de nos despedirmos, desejava dizer uma cousa e perguntar outra. (O BAR?O curva-se) Direi primeiramente que ignoro se h? tal paix?o da parte de seu sobrinho; em segundo lugar, perguntarei se na Su?cia estes pedidos s?o usuais.
BAR?O. Na geografia intelectual n?o h? Su?cia nem Brasil; os pa?ses s?o outros: astronomia, geologia, matem?ticas; na bot?nica s?o obrigat?rios.
D. LEO. Todavia, ? for?a de andar com flores… deviam os bot?nicos traz?-las consigo.
BAR?O. Ficam no gabinete.
D. LEO. Trazem os espinhos somente.
BAR?O. V. Ex?. tem esp?rito. Compreendo a afei??o de Henrique a esta casa.
(Levanta-se) Promete-me ent?o…
D. LEO. (levantando-se). Que faria no meu caso?
BAR?O. Recusava.
D. LEO. Com preju?zo da ci?ncia?
BAR?O. N?o, porque nesse caso a ci?ncia mudaria de acampamento, isto ?, o vizinho prejudicado escolheria outro bairro para seus estudos.
D. LEO. N?o lhe parece que era melhor ter feito isso mesmo, antes de arriscar um pedido ineficaz?
BAR?O. Quis primeiro tentar fortuna.
 

CENA VI

D. LEONOR, BAR?O, D. HELENA
 
D. HEL. (entra e p?ra). Ah!
D. LEO. Entra, n?o ? assunto reservado. O Sr. Bar?o de Kernoberg…. (Ao BAR?O)
? minha sobrinha Helena. (A HELENA) Aqui o Sr. Bar?o vem pedir que o n?o perturbemos no estudo da bot?nica. Diz que seu sobrinho Henrique est? destinado a um lugar honroso na ci?ncia, e… conclua, Sr. Bar?o.
BAR?O. N?o conv?m que se case, a ci?ncia exige o celibato.
D. LEO. Ouviste?
D. HEL. N?o compreendo…
BAR?O. Uma paix?o louca de meu sobrinho pode impedir que… Minhas senhoras, n?o desejo roubar-lhes mais tempo …. Confio em V. Ex?., minha senhora…
Ser-lhe-ei eternamente grato. Minhas senhoras. (Faz uma grande cortesia e sai).
 

CENA VII

D. HELENA, D. LEONOR
 
D. LEO. (rindo). Que urso!
D. HEL. Realmente.
D. LEO. Perd?o-lhe em nome da ci?ncia. Fique com as suas ervas, e n?o nos aborre?a mais, nem ele nem o sobrinho.
D. HEL. Nem o sobrinho?
D. LEO. Nem o sobrinho, nem o criado, nem o c?o, se o houver, nem cousa nenhuma que tenha rela??o com a ci?ncia. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cec?lia h? tal ou qual namoro?
D. HEL. Se promete segredo… h?.
D. LEO. Pois acabe-se o namoro.
D. HEL. N?o ? f?cil. O Henrique ? um perfeito cavalheiro; ambos s?o dignos um do outro. Por que raz?o impediremos que dous cora??es…
D. LEO. N?o sei de cora??es, n?o h?o de faltar casamentos a Cec?lia.
D. HEL. Certamente que n?o, mas os casamentos n?o se improvisam nem se projetam na cabe?a; s?o atos do cora??o, que a Igreja santifica. Tentemos uma cousa.
D. LEO. Que ??
D HEL Reconciliemo-nos com o Bar?o.
D LEO. Nada, nada.
D. HEL. Pobre Cec?lia!
D. LEO. ? ter paci?ncia, sujeite-se ?s circunstancias… (A D. CEC?LIA que entra). Ouviste?
D. CEC. O que, titia?
D. LEO. Helena te explicar? tudo. (A D. HELENA, baixo) Tira-lhe todas as esperan?as. (Indo-se) Que urso! que urso!
 
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Fonte: Machado de Assis, Joaquim Maria. De ?Li??o de Bot?nica?. In: Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994. v. 2.