Resumo:
Estudo sobre a escritora paranaense Adélia Woellner e a a importancia da função da memória em sua escrita e para toda a literatura de autoria feminina. O sujeito masculino ou feminino podem ser autores de uma história, mas não se confundem com um homem e uma mulher. A memória é um exercício primordial de encontro da identidade feminina e da mulher, assim como as atividades da mulher da história do cotidiano.
Texto:
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira
“A intenção é de abrir o coração e a alma. Demonstrar que tudo é motivo de crescimento e nada é razão para abandonar a trilha da vida.”
Adélia Woellner
1 Introdução
Ao se analisar um fenômeno social dentro das práticas nas quais ele está inserido, faz-se necessária a determinação de suas características nas diversas etapas históricas do desenvolvimento da vida em sociedade, ressaltando as mudanças, conforme as relações que ocorrem com o progresso científico e tecnológico. Nesse sentido, a histórica trajetória feminina não pode ser entendida como uma sucessão de fatos no tempo, mas como o modo que a sociedade, em condições determinadas, cria os meios e as formas de existência social, política, econômica e cultural.
A reflexão sobre a escrita de autoria feminina remete ao processo histórico que a produz, como fenômeno cultural, bem como as relações de poder e ao confronto de interesses que ocorrem na sociedade e que irão influenciar em seu significado. Dessa forma, acredita-se que é preciso refletir sobre o passado para que se possa compreender o presente.
Na formação da sociedade paranaense, podem-se visualizar traços culturais variados e distintos que se mesclaram e deixaram marcas no comportamento provinciano e conservador de seu povo, especialmente, quanto se refere à conduta feminina. O comportamento da mulher paranaense, conforme o lugar que ocupa dentro dessa sociedade, é permeado de regras e traços de uma sociedade agrária, que exige um comportamento recatado e doméstico próprio dos costumes da vida nas fazendas, regras que estão enraizadas não só na classe dominante, mas que também orientam o comportamento das famílias de classe alta e média, as quais exigem que a mulher tenha uma “boa formação”: escolas religiosas e façam um casamento com bons partidos. Mas, na realidade, sob o manto da permissividade ou do respeito a todas as expressões individuais e coletivas, está um Paraná austero, conservador em suas práticas políticas e sociais, um estado vigilante de seu código patriarcal. Talvez, por toda essa atmosfera, recrudesçam e se perpetuem as regras patriarcais que regiam o comportamento da mulher no século passado.
Apesar das conquistas e de significarem mais de 44% do mercado de trabalho no Paraná, as mulheres continuam enfrentando obstáculos para a ascensão profissional. O rendimento das mulheres é 42% inferior ao dos homens. As trabalhadoras ainda recebem menos porque se inserem profissionalmente em ocupações de menor remuneração, produtividade e prestígio social. Os segmentos que mais absorvem força de trabalho feminina são os mais desvalorizados no mercado de trabalho e os que tendem a propiciar remunerações mínimas, como o setor de saúde, educação e serviços pessoais, principalmente o emprego doméstico. A entrada de qualquer bandeira feminista foi sempre dificultada por essa mentalidade hegemônica, misto de ideologia agrário-burguesa com a regência da Igreja.
A exclusão histórica da autoria feminina no campo institucional da literatura, em especial no Paraná, foi resultado de práticas culturais que privilegiaram a enunciação do sujeito dominante da cultura, o sujeito masculino. As causas do silêncio envolvendo a história literária da mulher encontram-se nos preconceitos que sempre cercearam a escrita feminina.Os críticos literários do passado, em sua maioria homens de letras, sempre tiveram uma atuação determinante na configuração dos cânones nacionais, através de trabalhos acadêmicos.
O feminismo no Paraná tem como principal figura a escritora Mariana Coelho que na obra Paraná mental traçou a história literária de seu estado de adoção. No entanto, mais do que na literatura, é no ensaio polêmico que sempre se distinguiu Mariana Coelho, gênero em que as mulheres deixaram poucas páginas no século XIX. Mariana foi uma defensora aguerrida do feminismo e, segundo Zahidé Muzart (2002), expôs entusiasticamente seu ponto de vista em várias obras, entre as quais se encaixa perfeitamente o livro A evolução do feminismo. Nele, a autora se propôs a fazer, e fez, uma coletânea de informações sobre fatos, dados científicos e pessoas que, de alguma forma, seja com suas ações, produções literárias, projetos de lei e atitudes, puderam subsidiar a defesa da tese feminista, da igualdade intelectual e de direitos entre homens e mulheres. A evolução do feminismo, embora com o mérito de compilar uma quantidade respeitável de informações sobre o tema, não é um clássico. Mariana, obviamente, é um produto de seu tempo e como tal deve ser lida. Trata-se, portanto, de obra, pelo menos em certos aspectos, datada, e a autora, em sua ânsia por subsídios científicos que contribuíssem para a implantação das idéias feministas, recorreu a teorias diversas, algumas próprias de seu tempo mas, atualmente, descartadas e outras, como a eugenia, por exemplo, que se mantém perigosamente circulante.
Nesse inventário, ela registrou a presença e as ações das mulheres nas mais variadas épocas, locais e circunstâncias. Em sua intenção de contribuir para a emancipação feminina, Mariana descreve, em tom apaixonado, feitos gloriosos, corajosos, íntegros ou generosos perpetrados por mulheres, demonstrando assim a freqüente “superioridade” feminina em várias instâncias. Ela investigou a presença das mulheres na religião, na guerra, na política, na administração, nas ciências, nas artes, nas letras, na imprensa e no amor, em diferentes épocas e regiões do globo. Talvez possamos ainda recorrer a uma outra questão: a de que a colonização do interior do Paraná – com a produção de riquezas, através da cafeicultura deu-se muito recentemente e que, numa sociedade agrária, a educação da mulher sempre foi colocada em segundo plano.
A literatura feita por mulheres, juntamente com a discussão sobre a negritude e a literatura homoerótica, é fenômeno significativo dos últimos anos do século XX e se insere na discussão do multiculturalismo. A produção de autoria de mulheres sempre foi excluída, por várias razões, dentre elas o puro preconceito de uma sociedade atrelada a valores patriarcais que reservava à mulher o papel de esposa e mãe. Assim, sua produção sempre foi avaliada como deficitária em relação à norma de realização estética vista sob o ponto de vista masculino. Para Peggy Sharpe (1997), é comum nas Literaturas Coloniais omitir ou sub-representar relatos advindos da voz feminina, só em iniciativas mais atuais é que ocorrem discussões em torno da identidade nacional advinda de várias vozes, inclusive a feminina.
Nas décadas de setenta e oitenta do século XX, o pensamento feminista desenvolveu a teoria dos gêneros como modelo de interpretação das relações sociais e de sua história. Elaine Showalter (1994) propõe uma direção da escritura feminina que se enquadra na estrutura da sociedade. Ela divide a escrita da mulher em: feminina, a que se adapta à tradição e aceita o papel da mulher como definem os homens e feminista, que se declara em rebeldia e polemiza, questionando o papel da mulher; de mulher, que se concentra no auto-descobrimento.
A classificação de Showalter pode ser observada na literatura brasileira e também na paranaense, assim pode afirmar que a escrita de mulheres paranaenses é ao mesmo tempo feminina, feminista e de mulher, pois segundo Nadia Gotlib, isso é possível encontrar na obra de uma mesma escritora.
A escritora selecionada para a pesquisa é Adélia Woellner que questiona o modelo patriarcal em suas obras. Em geral, essa temática se concentra em contos que questionam as relações de gênero, buscando sem encontrar, soluções para impasses criados. O tom impresso nas narrativas concentra-se no íntimo, possibilitando a revelação dos segredos da identidade feminina que reside no cotidiano da mulher.
A escolha da escritora foi feita porque apresenta narrativas vividas e escrita por mulher. Além disso, buscou-se, por meio dessa pesquisa, aumentar o campo de visão que se tem sobre a literatura paranaense, porque ao se falar nesta literatura pensa-se na Curitiba de Paulo Leminski e a de Dalton Trevisan. Há a Curitiba de Paulo Leminski e a de Dalton Trevisan, dois de seus filhotes mais célebres, que revolucionaram a poesia e a prosa. Mas há, também, a Curitiba menos conhecida, porém tão revolucionária quanto, de Adélia Woellner.
2 Adélia Woellner e as Fagulhas da Memória
Adélia Maria Woellner nasceu em Curitiba. É Formada em Direito pela Universidade Federal do Paraná.. Foi professora da PUC-PR. Pertence à Academia Paranaense de Letras. Sua obra é constituída pelos seguintes títulos:Balada do amor que se foi (1963), Nhanduti (1964), Poesia trilógica (1972),Encontro maior (1982), Avesso meu… (1990), Poemas soltos (1992), Poemas para amar, Infinito em mim (1997), Luzes no espelho (2004), Sons do silêncio(2004). Em suas obras, focaliza a temática voltada à memória, à experiência, ao cotidiano familiar. Em sua relação com o público leitor, Woellner constrói um diálogo interativo, como avaliação crítica da construção da identidade feminina, que problematiza a estabilidade em todos os níveis do interagir coletivo. Na raiz de sua escrita, ela revela que as experiências que as mulheres têm de si mesmas e dos outros são formadas por meio de desequilíbrio do poder inerente à ideologia patriarcal. Parte do relacionamento consigo mesma, com seu parceiro, famílias e empregadores, Adélia desafia e incentiva todos a desafiarem as polarizações características dos regimes de gênero.
A obra selecionada para análise intitula-se Luzes no espelho. A presença do espelho, que atravessa a literatura mundial, torna-se motivo recorrente em vários títulos da literatura brasileira atual, sempre associado à busca da identidade. Nas miragens do espelho, ocorre o desvelamento das máscaras que a mulher usa para esconder o que sente e o que finge sentir. Por meio do espelho, encontra-se a identidade. Nessa obra, a escrita de Woellner assume um caráter confessional. O sentido etimológico de confissão é desvelar, manifestar, dar a conhecer, o que já nos insere no universo de desvelamento do eu que a literatura confessional vem suscitar.
É possível perceber em Luzes no espelho, a auto-escrita de um eu personagem, que é, via de regra, (con)fundido com a própria autora. Rica em conflitos íntimos, expectativas violentadas e esperanças desfeitas, essa é uma obra envolvente sobre a mulher e a aventura de viver. A memória na escrita adeliniana comparece fornecendo elementos para compor novas práticas, referenciadas a formas de vida, infelizes e dolorosas vivenciadas, no passado. Insinua-se uma escrita marcada por um tom intimista, confessional, uma estreita relação entre a literatura e a intimidade da vida.
A escrita de Adélia Woellner é marcada por uma grande afinidade entre leitor e obra, fruto da suposta impressão de proximidade que o texto se apresenta. Pela recepção das venturas e desventuras narradas por quem vive suas alegrias e angústias, propicia-se ao leitor um momento para lembrar, refletir e reviver suas próprias experiências. Além disso, tem-se a ilusão de que o escritora se desmascara, desnuda-se por meio de seu texto, dando a impressão de uma proximidade, de uma intimidade entre aquele ser, pessoa física que compôs a obra, e aquele que a lê.
No livro analisado, há a apresentação de um ponto-de-vista particular que individualiza a existência do eu que se inscreve. Como em qualquer literatura, nada pode ser tomado como representação fiel da realidade, mas como possibilidade mimética de construção artística. Adélia, em sua construção literária, remete à volta do eu ao passado para construir o presente. Esse presente que se constrói e que, logo depois de configurado como passado, desfigura as concepções do passado que certamente será alterado com as vivências desse presente. É importante salientar que as memórias, que são formadas a partir de fatos esquecidos, portanto, só se configuram como tal porque se conformaram como esquecidas em determinado momento.
Na obra Luzes no espelho, a escritora passeia pelas descobertas do cotidiano, pelas questões femininas, pela paixão. A escritora afirma que ao escrever “A intenção é de abrir o coração e a alma. Demonstrar que tudo é motivo de crescimento e nada é razão para abandonar a trilha da vida”. As realidades do dia-a-dia e as representações simbólicas são registradas em narrativas que registram com fidelidade as etapas da vida da mulher, tais quais são vistas no mundo, numa linguagem racional e empírica. O universo de sua escrita é o espaço em que pode se libertar dos padrões e transcender o lugar comum em busca dos verdadeiros significados. “O assunto aflora, as palavras surgem aos borbotões. Planto imagens no papel. Quantas vezes, tudo pronto, me surpreendo. Essa sou eu?”
Luzes no espelho é resultado de experiências individuais, da vida privada e da vida pública. A autora delega à memória a função de re-elaborar sua própria experiência de vida; o resgate simbólico das fases de sua vida (casamento, maternidade, separação, recomeço, concursos e diploma) impressiona pela intensidade. A memória é o locus privilegiado do imaginário, berço de toda ficção.
Era domingo. Meu pai e eu termináramos o serviço de entrega de pães em torno do meio-dia. Chegada a hora de a caminhonete Ford-41, descansar, pois, afinal, estava funcionando desde as três e meia da madrugada…. Enquanto o motor esfriava, a comida fumegante era servida na mesa simples, retangular, que ficava na cozinha, ao lado do fogão a lenha. Não havia novidade. O almoço de domingo mantinha a tradição: macarrão, posta ensopada, às vezes recheada com toucinho, salada de batata com molho [de] maionese caseiro. Minha mãe misturava as gemas de ovo (uma, cozida, bem amassada, com gema crua) e ia acrescentando o azeite aos pouquinhos, mexendo bem com o garfo, para não talhar. O colorido do molho acentuava e dava brilho à suave cor das batatas cortadas em rodelas. Depois, normalmente, a sobremesa: pudim Medeiros… Em dias especiais e muito raramente, uma gasosa Cini era o acompanhamento festejado. (WOELLNER, 2004, p. 76).
Essa memória, quanto mais enterrada no âmbito do privado, mais frutifica no plano simbólico, atesta Nélida Piñon1 (2002), ao confessar que ao narrar, empreende a viagem ao seu centro, cujas margens ela desconhece. A memória individual é o território do secreto. Espaço de absoluta privacidade. Na narrativa de Woellner, recordações e reminiscências, lembranças e esquecimentos manifestam, ora explicitados ora de forma escamoteada, sob diferentes ardis estratégicos, a permanente intervenção de material memorialístico na matéria narrada. Pela intervenção da memória, constrói-se a narrativa secreta da vida, que se separa da narrativa oficial (quando não se opõe a ela), construção que tentamos legalizar, não só em relação ao mundo exterior, mas também em relação ao nosso próprio mundo. E a narrativa secreta é sempre inquietante, subversiva e, no sentido possível deste termo, verdadeira (AGULLOL, 2002, p. 22).
Olhando da rua principal, ali no Alto da Caixa d’Água (hoje av. Castelo Branco, junto à praça das Nações), é difícil supor que, naquela casa grande e bonita, revestida de pedras, existia moderna panificadora: a Marumby, cuidada diretamente pelos dois Osvaldos: o Matte, que a criou e instalou, e o Woellner (Passarinho), seu sócio.
Três e meia da madrugada… Estrelas piscando no céu transparente de Curitiba. O frio intenso indicava que, ao amanhecer o dia, com certeza a geada ainda estaria branqueando a grama e o telhado das casas… e até, a madeira úmida dos dormentes da estrada de ferro e das pontes e pontilhões, tão comuns naquele tempo…
1949… 1950… 1955… os anos passavam e, de terça a domingo, o pão era distribuído, religiosamente, aos “negociantes” e para algumas residências particulares. Segunda-feira era o dia de folga, porque, aos domingos, a folga era dos padeiros.
A maioria dos entregadores de pães utilizava carrinho tracionado a cavalo. Nós, porém, já tínhamos mais conforto: meu pai possuía uma caminhonete Ford-41, carroçaria de madeira, pintada de marrom e amarelo-creme. Bonitona mesmo… Três quilômetros, mais ou menos. E a lama faz escorregar. Acho que não sinto nada. Tenho apenas que entregar o pão dos alunos, que o esperam para o café da manhã.
Sinto-me forte, importante. Nenhuma criança é como eu. Tenho orgulho, porque os amigos do meu pai elogiam meu trabalho.
Já passei da metade do caminho. Agora, o difícil é a descida, sem escorregar no capim molhado. Pela rua, não dá. É muito barro… atola o pé. (WOELLNER, 2004, p.21).
A escrita de Adélia é sobre o eu é, antes de mais, um ato de consciência, um exercício espiritual. O exercício praticado por ela ocupa lugares mentais por excelência, e pelo recurso à lembrança e à memória, a autora recapitula o espaço e o tempo, contribuindo para a elaboração de uma história individual e coletiva. Numa complexa narrativa, o protagonista/personagem torna-se interlocutor de sua própria experiência e de sua inserção no mundo como cultura e como natureza. A narrativa da própria vida lhe dá constituição e se insinua como forma de construção da consciência do estar no mundo. Ela se traduz numa relação da própria literatura com os aspectos íntimos da vida, um espaço edificado sob a égide da intimidade. Busca recuperar a espessura existencial da vida cotidiana, tentando surpreender, na experiência de cada dia, aqueles momentos de resistência do vivido, de insurgência da beleza e da verdade, capazes de dissolver os vínculos da rotina.
Há dois dias estou casada. É noite e estou sozinha no pequeno e simples quarto do hotel de Matinhos. Esse quarto é estranho. Sinto tristeza e solidão. Tenho vontade de sair, ir lá embaixo, assistir, pelo menos; gosto de ver pessoas dançando, soltas, livres. Mas estou presa pelo medo. Choro. Encolho-me na cama, como criança cumprindo castigo. (…) O dia chega e termina. Tento agir como se nada tivesse acontecido. (WOELLNER, 2004, p.30).
O nutriente de toda obra literária é a imaginação. O que chamamos de invenção, no campo literário, resulta das operações de linguagem que selecionam e combinam, promovendo articulações sintagmáticas que tecem um enredo, configuram um personagem, armam uma cena, dando outra cara àquilo que um dia foi vivido no corpo, reinventando a existência, trazendo à tona tudo o que devia permanecer oculto no território secreto da memória. Na obra de Adélia, autora e narradora se irmanam igualmente na mesma reminiscência da experiência compartilhada por toda uma geração de mulheres: a contemplação narcísea da imagem refletida no espelho em uma perspectiva em abismo, multiplicando ao infinito a face daquela que ali se procurava.
Adélia Woellner, ao escrever, constroi um conhecimento sobre si mesma e sobre os outros. A memória é seu referencial, um espaço próprio para suas reflexões, para reelaborar suas experiências de vida, reviver lembranças, recordar e transmitir sua sabedoria. A própria autora revela a importância da memória para a sua existência: “Em algum lugar deste infinito mistério que é meu ser a emoção, a emoção primitiva, brilha e reflete, a memória de todas as eras” (Woellner, 2000, p. 63). Ela propõe um caminho para o encontro com seu eu interior. Sua escrita é existencial, voltando-se mais intensamente para a confissão do que para a ficção. Mostra a vida como um ir e vir, um nascer, um renascer e um retorno:
As lembranças se embolam, confusamente: o casamento com o vestido que fora do casamento da prima Leoni, reformado e ajustado pela tia Josefa. (…) modelo lembrança do filme “Cinderela” e nunca esquecido; a viagem de ônibus sem olhar para os lados; a praia, o mar infinito, porém fora do meu alcance. Meu espaço se aperta aqui dentro. Ouço vozes e música. É janeiro (…) Amanhece e chove. (…) Assim é a volta (2004, p. 29).
O universo de Adélia retrata a constante busca pela identidade pessoal, o inefável sentido de existir, encontrados nos pequenos detalhes da vida. Os gestos, as declarações e os lugares comuns provocam uma materialização da memória e, assim, ativam um momento súbito de revelação. Unificar passado e presente para conferir um sentido à própria vida atual. Ou seja, construir a própria identidade. Adélia entende bem este processo, seus contos revelam uma mensagem, uma experiência, uma idéia que fica latente:
Olho-me no espelho, atentamente. Hoje consigo mergulhar no fundo dos olhos e ver ali toda a vida refletida em cada marca dor rosto. As personagens que vivi desfilam em minha frente. O tempo está suspenso. Eu sou uma e sou todas. (…) Nesse espelho falante, máscaras que simbolizam risos e choros, raivas, mágoas, perdas, desafios, decepções, realizações, fracassos, rodopiam como ponteiros descontrolados de um relógio alucinado (2004, p. 117).
A escritora registra, por meio de seus contos, suas grandes descobertas, principalmente, a descoberta do seu eu interior, livre, leve que se reconstrói depois de destruir as barreiras do preconceito e da opressão. A escrita de Adélia demonstra que ser mulher não é fácil, sobretudo, ser mulher, profissional, mãe, filha e ainda escritora.
Luzes no espelho apresenta-se como cenário de um verdadeiro encontro com o eu, um registro de sua vitória existencial, sobre caminhos jamais sonhados. A obra revela sua luta interior, para vencer as angústias, imposições, bloqueios, para seguir em frente, libertar-se de tudo o que impede seu crescimento, enfim usufruir sua vitória. Por meio de sua escrita, de um lado corre a recuperação da auto-estima, há libertação de todo e qualquer patriarcalismo e, de outro, confere ênfase à vida, na medida em que compõe a sua própria visão das coisas meritórias do mundo. Apreciar o valor das suas atividades é um caminho para a essência da existência humana.
É no tempo-espaço de suas narrativas que Adélia se revela, vivencia dificuldades, perdas, desamparo. Além disso, desvenda novas possibilidades, cria novos espaços, para libertar-se dos padrões impostos à mulher em toda a sua trajetória.
A análise da história de escritoras é, portanto, uma tendência, uma linha de pesquisa e de estudo possível para quem se indaga sobre a presença ou ausência das autoras no cânone literário. Durante muitos séculos, as mulheres foram representadas em páginas literárias, enclausuradas em visões daqueles que detinham o poder de determinar o cânone. À medida que as mulheres vão saindo desse encarceramento e assumindo sua atividade de sujeitos, a interferência no cânone literário também se realiza. O reconhecimento de que outras mulheres enfrentaram dificuldades para poder criar e escrever, e que seus textos se assemelham, nos temas e nas formas, aos textos contemporâneos, principalmente no que se refere à indagação crucial sobre uma identidade própria e autônoma, cria um entendimento de que o resgate e a releitura das autoras e seus pares estabelece uma interlocução, uma verdadeira conexão entre elas.
Não se pode dizer que esse cenário mudou ou que se apresenta hoje como mais feminino ou como mais acolhedor. As diferenças nos sugerem que ainda há muito a se debater sobre o tema e que, apesar de termos vozes femininas distintas ecoando no cenário literário brasileiro, “o espaço reservado às mulheres no mercado editorial do Brasil é circunscrito a temas que, ao invés de as libertarem de seus papéis opressivos, as colam neles”.2 Talvez não caiba à literatura propriamente dita a resolução desse problema, já que ela, como espaço social, repete o que a realidade cansa de mostrar.
A narrativa contemporânea deve contemplar as vozes que foram excluídas e que não detinham poder político nem ideológico na modernidade. A atual postura implica desenhar uma narrativa não-linear que dê conta dessas simultaneidades, descontinuidades, rupturas, descompassos históricos, bem como possa deixar explícitos as condições externas de produção, o locus de enunciação e para qual receptor se dirige o texto.
As experiências do homem e da mulher são diferentes, mas a língua é comum, então o que as escritoras pretendem é criar espaços onde a voz feminina possa ser ouvida com a mesma intensidade que a voz masculina.
Nos textos analisados, pode-se encontrar uma perspectiva feminina do mundo, em termos de construção da narrativa, na estrutura, na sintaxe, na semântica e no ritmo. Adélia Woellner registra personagens que, tal como a maioria das personagens criadas por escritoras do século XX, não vivem, de certa forma, a angústia provocada pelo tempo cronológico, mas a manipulam de tal forma que os universos do real e da fantasia se confundem em um ato puramente reflexivo ou rememorativo.
É possível visualizar nas narrativas analisadas uma confusão entre planos enunciativos, a ponto de o leitor ter, por vezes, dificuldade em identificar a entidade narradora. Há um constante questionamento das fronteiras tradicionais dos gêneros literários. O vocabulário utilizado reflete, porém, freqüentemente, as atividades cotidianas da mulher, o que favorece a legibilidade da ficção, sem impedir que esta esteja aberta a uma diferenciada gama de leituras.
Nas narrativas de Adélia Woellner, a transgressão torna-se o meio pelo qual o sujeito feminino empreende a sua luta e consegue pela alteridade vencer a desigualdade. A escrita é somente o meio pelo qual essas mulheres acedem aos seus direitos e constrói/reconstrói a sua identidade. Assim, depois de conquistada a identidade da mulher, o masculino e o feminino, em Literatura, ficam em plano de igualdade, pelo que as diferenças sexuais não distinguem o tipo de escrita, apenas o sujeito da escrita. O que dizem ser a escrita feminina poderá ser apenas uma tomada da palavra por parte da mulher, uma rejeição da opressão a que o homem a submeteu e uma temática centrada na sua condição. Poderá existir uma escrita da mulher, pela mão da mulher ou do homem, mas não propriamente uma escrita feminina. É perfeitamente possível que um homem possa tomar o ponto de vista da mulher e escrever sobre ela, o que significa que tanto o homem quanto a mulher podem escrever no feminino.
Os textos não podem ter um sexo, mas podem, isso sim, ser escritos por um sujeito masculino ou feminino, que neles manifeste o seu ponto de vista ou o ponto de vista do outro sexo. A conquista da identidade e da escrita pela mulher não significa forçosamente que exista uma escrita, declaradamente, feminina. A escrita, apesar de não ter sexo, será sempre diferente de escritor para escritor, quer este seja do sexo feminino ou masculino, porque terá o seu cunho pessoal.
AGULLOL, Roberto. O Eros da memória: horizontes da memória. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, set. de 2002, p. 22-42
COELHO, Mariana. A evolução do feminismo, subsídios para a sua história.2a ed. Org. Zahidé L. Muzart. Curitiba, Imprensa Oficial do Paraná, 2002.
OLIVEIRA, Márcia Maria Nóbrega de. “Sexualidade e corpo: uma abordagem a partir da autorepresentação das mulheres nos romances brasileiros contemporâneos”, disponível na Internet.
PIÑON, Nélida. A memória feminina. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil, Rio de Janeiro , set. de 2002.
Schmidt, Rita Terezinha. “Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria eminina”. In: NAVARRO, Márcia Hoppe (org). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre. Editora da UFRGS, 1995.
SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.).Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. p. 23-57.
SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificar-se. Florianópolis: Editora UFG, 1997.
1 Para Nélida Piñon, graças à memória ingressa-se no domínio da invenção. A arte de narrar certamente tem como função inventariar a memória. Para nascer, diz ela, o texto atravessa inexorável terra, camadas incessantes, que o escritor leva dentro de si.
2 OLIVEIRA, Márcia Maria Nóbrega de. “Sexualidade e corpo: uma abordagem a partir da autorepresentação das mulheres nos romances brasileiros contemporâneos”, disponível na seção “Palavras” do site http://www.corpuscrisis.cjb.net Acesso em junho de 2006.