LEITURA LITERÁRIA E MEDIAÇÃO: DESAFIOS DOCENTES – Dinéa Maria Sobral Muniz, Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima


   LEITURA LITERÁRIA E MEDIAÇÃO: DESAFIOS DOCENTES


Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima

Universidade Estadual de Feira de Santana/

Universidade Federal da Bahia

Dinéa Maria Sobral Muniz

Universidade Federal da Bahia

RESUMO: Neste artigo, buscamos discutir se há efetiva contribuição por parte dos cursos de formação inicial (graduações) para a aproximação dos discentes com os objetos culturais de leitura e, especificamente, na formação de leitores e de mediadores de leitura. Hoje sabe-se que o aprendizado da leitura não se limita ao ato de aprender a ler, uma vez que ele se insere numa prática social e cultural. Nele relatam-se práticas de leitura por meio da metodologia dos Círculos de leitura e da prática de contação de histórias como estratégias de aproximação dos alunos à leitura literária. Apontam-se os desafios existentes e a forma de criar estratégias de mobilização, de incentivo, de oferta de vivências leitoras e de práticas culturais de leitura, visando a uma formação leitora plena e sólida, propiciando práticas atraentes, significativas e mobilizadoras de novas aprendizagens.

 
Palavras-chave: Leitura literária; práticas culturais de leitura; formação de leitores; círculo de leitura; mediação.
 
ABSTRACT: In this article we discuss if the undergraduate courses effectively contribute to prepare students to teach and make them aware of the importance of the cultural aims of reading, and most specifically to the formation of readers and reading teachers. We all know that reading goes beyond this simple act but that it is inserted in a social and cultural frame. This article presents practices of reading through the methodology of Reading Circles and that of story-telling as effective strategies to make students get used to literary reading. It also discusses the present challenges and proposes mobilization strategies to stimulate and offer new reading practices within a cultural frame, aiming at the preparation of students.
 
Key-worls: Literary reading ; cultural practices of reading; formation of readers; reading circle; mediation.
 
Currículos:
Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima é Mestre em Educação e Contemporaneidade pela  UNEB, Professora Assistente do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), membro do Núcleo de Leitura Multimeios da UEFS, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING/UFBA.
 
Dinéa Maria Sobral Muniz é Doutora em Educação e Professora Associada do Departamento de Educação II da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é membro do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING/UFBA.

 
   LEITURA LITERÁRIA E MEDIAÇÃO:
 
DESAFIOS DOCENTES
 
Rita de Cassia Brêda Mascarenhas Lima
Universidade Estadual de Feira de Santana/
Universidade Federal da Bahia
Dinéa Maria Sobral Muniz
Universidade Federal da Bahia
 
Introdução
 
“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver”.
Tzvetan Todorov
 
Para início de conversa queremos dialogar com Todorov, mais especificamente com sua obra A literatura em perigo, quando este nomina um de seus capítulos com o título “O que pode a Literatura?”. Esta questão tão instigante nos remete a pensar se esta tem sido mote de reflexão e análise nos espaços institucionais de formação de leitores. Para Todorov,
 
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. (…) ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro (TODOROV, 2012, p.76).
 
Se a literatura pode tanto a ponto de nos alegrar, nos entristecer, nos mobilizar a viajar por entre tempos, culturas, linguagens, por que efetivamente ainda não possui um lugar assegurado, respeitado e valorizado nos processos formativos tanto dos alunos quanto dos professores?
Na história da leitura muitos são os exemplos de tentativa de restringir o acesso à leitura às mulheres, à grande massa, pois se reconhece que a leitura pode inspirar desejos, reflexões, análises, empoderar as pessoas e transportá-las para lugares e posições incontroláveis.  
Historicamente, tem sido reservada ao espaço escolar certa prioridade ou exigência de ensinar aos sujeitos o ato de ler. Entretanto, todos nós sabemos que a prática da leitura é uma prática social e cultural; logo, acontece de forma contínua e frequente nos mais variados espaços.
Portanto, formar leitores proficientes deve ser encarado como responsabilidade da escola, mas, considerando as múltiplas práticas de leitura que permeiam o contexto sociocultural, não cabe apenas à instituição formal assumir tal responsabilidade. Emilia Ferreiro, na década de 80 do século XX, já afirmava que nossas crianças não nos pedem licença para aprender a ler. Logo, é possível perceber que as vivências cotidianas, os encontros variados com os materiais impressos e com as várias linguagens impõem aos sujeitos, desde muito cedo, o exercício de seu poder criativo e curioso para desvelar os mistérios oferecidos diuturnamente.
Essa temática ainda nos mobiliza nos dias atuais. Mesmo com todos os avanços nos estudos e nas pesquisas que tematizam as práticas de leitura e a formação de leitores, percebemos a necessidade de focar o olhar para brechas oriundas do processo formativo nos espaços das universidades, locus privilegiado de formação docente. Tanto quanto à necessidade de sensibilização para a formação do professor leitor de textos de literatura quanto para a ampliação dos repertórios literários oferecidos aos graduandos dos cursos de licenciaturas no seu percurso formativo.  
Neste artigo, buscamos discutir até que ponto os cursos de formação inicial (graduações) vêm efetivamente contribuindo para a aproximação dos discentes com os objetos culturais de leitura e, especificamente, se tem contribuído na formação de leitores e, consequentemente, na formação de mediadores de leitura.
Muitos são os teóricos e as pesquisas que discutem na atualidade as práticas culturais de leitura, as histórias de leitura e as políticas públicas de leitura. Entretanto, pesquisar sobre o impacto e/ou contribuição dos cursos de formação inicial, especificamente os cursos de licenciaturas de Universidades Públicas na Bahia, na formação de leitores, constitui o foco deste trabalho, haja vista ser este o locus de nossa atuação como docentes.
 
O ambiente escolar como espaço privilegiado de encontro com a Literatura
 
“Ler é evitar que a alma enfarte”
Jorge de Souza Araujo
 
Os espaços de aprendizagens em uma sociedade globalizada como a nossa vêm se alargando a cada dia. Assim, cabe à universidade, como instituição formadora, trazer para o seio do debate as questões que envolvem e circundam os processos formativos dos seus discentes/professores. Algumas questões são pertinentes para nos ajudar a pensar sobre o lugar da Universidade na formação, e mais precisamente, analisar se os cursos de formação de professores têm oportunizado práticas de aproximação e sensibilização para a leitura literária? Que lugar a literatura vem assumindo no planejamento pedagógico dos professores? Sala de aula e literatura: é possível estabelecermos uma relação de complementaridade? A que literatura estamos nos referindo?
Sabemos que a década de 90 do século XX foi marcada pela busca por formação inicial oferecida nos espaços acadêmicos. Assim, visando atender aos pleitos legais, muitas parcerias foram instituídas entre as prefeituras municipais e as Universidades, com vistas a qualificar o quadro docente e atender as exigências expressas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Lei nº 9.394/96.  
Desse cenário, surge uma importante questão que é compreender até que ponto a universidade tem efetivamente contribuído na formação de professores mediadores de leitura? As práticas leitoras oferecidas/desenvolvidas nos cursos de licenciaturas têm sensibilizado os graduandos para o encontro com a literatura?
Se “o pleno exercício da democracia representativa impõe a completa inexistência de cidadãos de segunda classe, de excluídos sob qualquer natureza ou determinação. Logo, todos temos direito assegurado constitucionalmente à informação, à leitura, ao debate, à participação na vida coletiva”, como afirma Araújo (2006) então, o curso que tem como papel maior a formação de professores não pode prescindir dessa responsabilidade.
Aliado a essas reflexões não podemos desconsiderar o fato de que muitos currículos dos cursos de licenciaturas não oferecem disciplinas que tenham como foco a leitura literária e as práticas com a Literatura. A ausência de disciplinas com este propósito nos currículos vem sendo analisada como um equívoco teórico-epistemológico, pois, se nós desejamos formar discentes leitores e professores mediadores de leitura, precisamos em primeiro lugar garantir aos professores a oportunidade também dessa formação, pois só conseguiremos despertar e sensibilizar o gosto pela leitura, se nós também tivermos gosto, desejo e competência em ler. As consequências dessa formação lacunar podem ser referendadas quando Aguiar afirma:
 
Na verdade, a escola preocupa-se em transmitir ensinamentos sobre literatura e não em ensinar a ler. A educação formal tem por objetivo repassar dados sobre a história dos autores e das obras, cobrar exercícios de análise de textos para emissão de juízos, buscando fazer de todo leitor um conhecedor de literatura. O resultado, em nosso contexto, é o fracasso: o aluno não se torna um especialista nem se converte em leitor (AGUIAR, 2013, p. 76-77).
 
E assim, presenciamos, mais uma vez, um grande fosso entre os discursos e as intenções presentes na academia e as práticas cotidianas com a literatura no ambiente escolar. Para apimentar ainda mais essa análise, como dito em outro texto, “desconfiamos que, não raramente, a escola costuma ser muito medrosa quando se trata de arriscar, de experimentar novidades, ou melhor, de mudar” (MUNIZ, 2014, p. 111).
É importante salientar que muitos dos nossos discentes, dos cursos de licenciaturas, já são professores em efetivo exercício da docência, ou seja, já atuam na Educação Básica, seja na educação infantil ou nos anos iniciais do ensino fundamental. Portanto, atuam com o público que desejamos que se tornem leitores. Assim sendo, tratar da articulação universidade e Educação Básica é hoje uma discussão necessária e instigante.
Pensar o papel da leitura, e mais detidamente, o papel da leitura literária na formação/sensibilização/encantamento dos sujeitos que lidam ou lidarão na formação de outros tantos sujeitos, é uma questão emergente. Afinal,
 
O processo de leitura pressupõe, portanto, a participação ativa do leitor, que não é mero receptor de uma mensagem acabada, mas ao contrário, interfere na construção dos sentidos, preenchendo os vazios textuais de acordo com sua experiência de leitura e de vida. Isso se dá porque a obra fornece pistas a serem seguidas pelo leitor, mas deixa muitos espaços em branco, nos quais ele não encontra orientação e precisa mobilizar seu imaginário para continuar o contato (AGUIAR, 2013, p. 153).
 
Portanto, compreender a leitura como uma prática social, cultural, individual e coletiva, ou seja, tratá-la numa perspectiva formadora e formativa é reconhecer um novo momento e um desafio atual para a escola como agência de letramento.  Acerca deste desafio, salienta Cordeiro:
 
Recuperar a leitura literária no espaço escolar é uma tarefa de construção de novas formas de lidar com a literatura e de desconstrução de amarras e regras que a pedagogia teima em prescrever e rotular segundo a classificação das obras em escolas e gêneros literários, sem falar nas fichas de leitura, nos velhos exercícios de interpretação e nos breves comentários sobre o autor, a obra, seu tempo e a escola literária à qual pertence (CORDEIRO, 2006, p. 92).
 
Assim sendo, cabe a nós como professores formadores e como mediadores de leitura, responsáveis em muitos casos pelo encontro do discente com a leitura literária, oportunizar e criar situações que possam provocar neles o desejo, o gosto, a vontade de ouvir, de manusear livros, de continuar a leitura para além do espaço da sala de aula.
A recente pesquisa Retratos da leitura no Brasil revelou que há um decréscimo do nível de leitura quando os sujeitos concluem suas trajetórias estudantis, seja na educação básica ou nível superior. Estes dados revelam a forte relação do ato de ler às obrigatoriedades das tarefas escolares. É necessário, portanto, refletirmos sobre os objetivos das práticas de leitura e as vivências leitoras oportunizadas nos espaços escolares, posto que as pesquisas têm revelado que estas tem sido encaradas apenas como práticas escolares e, consequentemente, não tem sido agregadas à vida sociocultural dos estudantes quando estes finalizam seus processos formativos nas instituições formais de ensino.
Frente a essa constatação e ao nos darmos conta de que as experiências de leitura vivenciadas na academia têm sido majoritariamente voltadas para as exigências didático-pedagógicas, secundarizando as leituras literárias, leituras de fruição, de entretenimento, leituras consideradas “despretensiosas”, verificamos estar, pois, diante de um desafio, que não é pequeno. Repensar as práticas, as concepções de formação de leitor e, quiçá, contribuir para provocar as mudanças necessárias nos próprios currículos dos cursos de formação de professores. Pois, se na universidade, lugar privilegiado de formação desses professores, a leitura literária acaba sendo, muitas vezes, negligenciada, como então exigir desse profissional um trabalho diferenciado com a leitura literária nos seus espaços atuais ou futuros de atuação? Acaba sendo, no mínimo, uma exigência questionável.
É responsabilidade da escola, logo dos professores, garantir aos alunos o acesso ao livro, como afirma Paiva (2012, p. 19) ao defender que “… é na escola que a maioria das crianças e jovens brasileiros terá contato com o texto literário e, por conseguinte, cabe a essa instituição garantir o acesso a esse bem cultural: o livro”. Se assim entendermos, então, precisamos criar modos e práticas de encontros e aproximações do aluno com a literatura. E uma alternativa encontrada, por alguns docentes no ensino superior, tem sido a inclusão, em seus planejamentos, da prática dos círculos de leitura ou da contação/leitura de histórias, contos, crônicas como procedimentos para a aproximação desses discentes do mundo da literatura.
O Círculo de leitura se configura como uma metodologia de trabalho em que o leitor-guia lê em voz alta textos previamente selecionados, para o grupo, fazendo, geralmente, leituras literárias. A leitura é compartilhada e o diálogo, após a leitura, logo se estabelece. Segundo Yunes (2012, p. 120), a realização dos círculos de leitura “precisa de um leitor que seja o guia, uma espécie de líder do encontro. É esse leitor-guia que vai apresentar o texto para seus convidados, um texto de que ele goste (muito!) e que ache que vai interessar (muito!) aos participantes do círculo – seus convidados”. Yunes ainda defende (2012, p. 123) que “O diálogo sobre o texto lido ou contado é a alma de um círculo de leitura!”. Por isso é que do leitor-guia são requeridos cuidados no momento da preparação dos círculos.
A prática de contação/leitura de histórias vem sendo compreendida como um dos caminhos possíveis de aproximação das crianças, jovens e adultos com o texto literário. Segundo Gregório Filho (2002, p. 136),
 
Somos aquilo que vamos adquirindo ao longo da vida. Os primeiros jogos, as brincadeiras, as cantigas, os contos vão imprimindo em nós um pouco daquilo que vamos ser quando adultos. Não somos passivos às experiências e, a cada uma aprendida, incorporamos informações, transformamos, acrescentamos parte de nossa própria experiência e vamos construindo nosso jeito de olhar a nós mesmos e ao mundo.
 
E, foi acreditando nessa possibilidade, que começamos a trazer para o espaço da academia, a prática de contar/narrar histórias. Como afirma Gregório Filho (1998, p. 83), “a contação de história não vem substituir as leituras dos livros. Ao contrário, está comprovado que funciona como estimuladora, incentivadora para que as pessoas busquem conhecer aquelas histórias que ouviram e muitas outras (…)”. Assim, passamos a garantir a presença do texto literário no espaço da sala de aula. E o que é melhor, de forma leve, sedutora, envolvente.
 
Narrando histórias, formando leitores… relato de uma prática
 
“A literatura faz viver as experiências singulares”
Tzvetan Todorov
A experiência dos Círculos de Leitura e da contação/leitura de histórias nos cursos de formação de professores na UEFS e na UFBA tem rendido bons frutos, contrariando, felizmente, as expectativas de Benjamin (2012, p. 213) quando este afirma que “a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. Na tentativa de aproximação dos licenciados com a literatura, foram organizados muitos banquetes literários com objetivo de atrair e seduzir os discentes para o encontro com os livros. Cada dia um livro, um autor, uma história a ser contada. Assim, muitos já povoaram o espaço/lugar nas aulas dos licenciandos: Eduardo Galeano, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Câmara Cascudo, Bartolomeu Campos Queirós, Francisco Gregório Filho, Marina Colassanti, Cora Coralina, Clarice Lispector, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Conceil Corrêa da Silva, Daniel Munduruku, Rubem Alves, Mem Fox, e muitos outros.
Segundo a discente Tânia (aluna do curso de Pedagogia, da UEFS) “eu fazia de tudo para não me atrasar, pois sabia que a história que seria lida com certeza me emocionaria”. Em outras oportunidades de conversas informais com a turma, muitas discentes relatavam que o texto lido em sala ganhava outro tom. Essa sensação pode ser expressa com a fala da discente Diana (professora já em exercício) que revelou sua surpresa após a escuta do texto Felicidade clandestina de Clarice Lispector “eu fiquei encantada, primeiro porque eu já conhecia o conto, mas parece que estava ouvindo pela primeira vez. Acho que eu lia sem dar sentido e entonação correta”. Outros sentidos, outras marcas e entrecruzamentos de vida e ficção ocorreram após a leitura do livro “A moça tecelã” de Marina Colasanti. Em uma das turmas, formada majoritariamente por mulheres, ao escutar esse conto, as discentes teceram inúmeras análises, comparações, analogias e revelações. A discente Ana Cláudia desabafou “A personagem da história fez o que eu sempre quis fazer: destecer as coisas que me machucam, me fazem sofrer, mas ainda não tenho coragem. A vida é assim pró – não é fácil, é preciso ter coragem e estrutura para mudar”. A discente dialoga com o conto de Colasanti, a partir de sua própria experiência e se sente motivada a expressar desejos de mudanças na sua história. Percebemos como a literatura empodera, faz pensar e arriscar mudanças de comportamentos, mudanças de rota e tomadas decisões.  
Essa declaração nos ajuda a arriscar que ao oportunizarmos e envolvermos os discentes no mundo da leitura literária estamos contribuindo não apenas para a ampliação do repertório literário, mas sem dúvida, provocando-os a sentir e viver emoções, ou como afirma Todorov (2012, p. 77) “viver as experiências singulares”.
As experiências possibilitadas pelo encontro do leitor com o texto são singulares. Cada leitor estabelece relações e conjecturas a partir das suas próprias vivências. Para Cosson (2012, p. 27). “O bom leitor, portanto, é aquele que agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca um monólogo. Por isso, o ato físico de ler pode até ser solitário, mas nunca deixa de ser solidário”.  Assim, cabe ao professor mediador de leituras oportunizar situações significativas de aproximações entre os alunos e as leituras. Segundo Yunes (2003, p. 10) “quem lê o faz com toda a sua carga pessoal de vida e experiência, consciente ou não dela, e atribui ao lido às marcas pessoais de memória, intelectual e emocional”.
Reconhecendo que a formação docente requer não apenas os saberes didático-pedagógico, saberes humanos e saberes da competência técnica, a autora Graça Paulino (2004) defende a inclusão dos saberes literários como saberes necessários à docência, posto que
 
(…) se entendemos a formação de professores de modo mais amplo, em sua produção histórica e social que envolve, além de competências cognitivas stricto sensu, também sensibilidade, emoções, ligações afetivas, interações, transformações pessoais, temos de pensar na possibilidade de que um desses saberes seja de natureza literária (PAULINO, 2004, p. 57).
 
Desse modo, se defendemos a formação de docentes numa perspectiva de mediadores de leitura não podemos prescindir na formação dos professores da inclusão dos saberes literários como saberes próprios à docência. Com esta inclusão amplia-se ainda mais o espectro de saberes necessários à docência, pois para o escritor canadense Tardif (2003) os saberes dos professores emanam de variadas fontes sociais, ou seja, da família, da escola primária, dos vários espaços/estabelecimentos de formação dos professores, da prática do ofício, entre outros, ou seja, o professor constrói o corpus da profissão quando articula as suas várias experiências e saberes elaborados e acumulados nas suas multirreferencialidades.
Sendo a leitura uma prática individual e também coletiva faz-se necessário a diversificação dos materiais de leitura na perspectiva de ampliação dos acervos pessoais e coletivos. No compartilhamento de leituras cada sujeito mobiliza e faz “emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e de dados culturais” como afirma Goulemot (2001, p. 113). Desse modo, no espaço da sala de aula as múltiplas formas e modo de ler precisam ser acolhidos, pois na intimidade com o texto coletivo, no prazer de ouvir outras pessoas lendo, imprimindo uma entonação peculiar, percebemos o poder do encantamento e da sedução que o livro provoca. O importante é que a escola assuma, para si, a responsabilidade na formação de leitores, ou seja, que a escola traga para dentro de seus muros, para dentro das suas salas de aula a prática da leitura e o prazer de ler.
A contação de história pode ser um dos caminhos possíveis para entrecruzar universidade e literatura na perspectiva de formação de leitores. Segundo Pennac (1993, p. 84) “aquilo que lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma pessoa querida”. Portanto, não há dúvida do papel primordial que a família e a escola (como instituições de formação) podem desempenhar no processo de aproximação, formação do gosto e encantamento das crianças/jovens/adultos com os livros. Principalmente, se admitirmos que muitas crianças, hoje em dia, não têm mais no ambiente familiar as ricas experiências de ouvir histórias, da presença de um adulto lendo em voz alta, ou seja, de experiências que os aproximem do mundo letrado.
A condição sine qua non para o contador de histórias é gostar de histórias, gostar de ler, é participar do pacto ficcional que toda história exige, ou melhor, precisamos educar, ensinar, sensibilizar e encantar nossos alunos e convidados para a leitura.  
Afinal, a aprendizagem da leitura, do gosto e do sabor de ler um livro pode resultar de práticas que precisam ser ensinadas. Pois, assim como os livros, as histórias precisam do leitor para ter vida, ganhar sentido, as crianças, os jovens/adultos precisam dos contatos prazerosos, das vivências sedutoras e da intimidade cotidiana com a leitura. E esse papel também é nosso!
 
Mediar leituras, formar leitores: desafios docentes
 
“De tudo o que conto aqui daquela época, minha única mentira, se existe, é ter erigido meus sonhos em realidade, não ter confessado logo que fui, pela força das coisas, desde a primeira infância, um sonhador acordado e impenitente”.
Jean Marie Goulemot
 
Atuar no cenário educacional nos dias atuais vem exigindo dos docentes muitas habilidades e saberes múltiplos. Ao docente não basta apenas ter conhecimentos dos conteúdos previamente selecionados para ministrar suas aulas. É preciso dominar sim os conteúdos escolares, mas é preciso também se apropriar cada vez mais dos saberes literários, das tecnologias da informação e da comunicação, das informações veiculadas nos meios de comunicação, dos conteúdos e interesses próprios às faixas etárias, que cada vez é mais precoce.
Segundo Márcia Abreu (2006, p. 59),
 
A avaliação estética e o gosto literário variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que diferentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias, as peças teatrais, os filmes. Muitos, entretanto, tomam algumas produções e algumas formas de lidar com elas como as únicas válidas. E aí reclamam porque o brasileiro não lê e não tem interesse pela cultura (…).
 
É justamente neste cenário que reside um dos nossos desafios, ou seja, ao presenciamos avolumar nas prateleiras das livrarias, supermercados e bancas de revistas muitos best seller estrangeiros, novas séries de autores que seduzem cada vez mais nossos adolescentes, nós, professores, precisamos nos equipar teoricamente e  nos desvencilhar de certos preconceitos e ou concepções limitadas do que é ser leitor.
Afinal, se a leitura é prática sociocultural, é interação e construção conjunta de texto/sentido, então, cada texto fomenta e mobiliza reações, desejos, conhecimentos, saberes e sabores muito singulares. Dessa forma, o que precisamos não é coibir, cercear, discriminar e estabelecer o que é dito como certo ou como errado. Nosso desafio é possibilitar aos nossos alunos/leitores que a cada leitura construam/produzam sentidos, ou seja, novos textos e que se tornem autônomos para buscar outros livros que atendem as suas variadas expectativas, pois como afirma Chartier (1999, p. 19) “Cada leitor, cada espectador, cada ouvinte produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que recebe”.
Mas, cabe à escola investir em situações didáticas que primem pelo trabalho com a leitura numa perspectiva da competência leitora crítica. Para Silva (2009, p.28) “as competências de leitura crítica não aparecem automaticamente: precisam ser ensinadas, incentivadas e dinamizadas pelas escolas para que os estudantes, desde as séries iniciais, desenvolvam atitudes de questionamento perante os materiais escritos”. Sem dúvida, esse é o grande desafio docente.
É desafio docente também criar diferentes estratégias de mobilização, de incentivo, de oferta de vivências leitoras e de práticas culturais de leitura, posto que se queremos colaborar para uma formação plena e sólida dos nossos alunos, então faz-se necessário propiciar práticas atraentes, significativas e mobilizadoras de novas aprendizagens. Pois como afirma Todorov:
 
É por isso que devemos encorajar a leitura por todos os meios – inclusive a dos livros que o crítico profissional considera como condescendência, se não com desprezo, desde Os três mosqueteiros até Harry Potter: não apenas esses romances populares levaram ao hábito da leitura milhões de adolescentes, mas, sobretudo, lhes possibilizam a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas (TODOROV, 2012, p. 82).
 
E para arrematar os fios tecidos ao longo do texto na tentativa de articular leitura literária e mediação docente, reafirmamos a ideia de que o maior importante é tornar nosso aluno leitor, independentemente das suas escolhas, dos seus gostos ou preferencias. O desafio está lançado e aceitá-lo cabe a todos nós professores.
 
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