Tereza Ventura
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
“Meu pensamento é nobre, aristocrata….
quer ver a idéia sã na forma pura,
a linha, o bom,o acorde, o estilo, a rima
onde a emoção, zainfe, irreal fulgura”.
Oiticica
“Quem vai a uma barricada precisa levar,
além de uma espingarda na mão,
uma idéia no cérebro”.
Oiticica
José Oiticica foi notável em sua época, um homem cujo trabalho foi significativo para a vida literária e intelectual das primeiras décadas deste século. A origem social de Oiticica remonta à história do patriarcalismo e da casa grande do estado de Alagoas. Nascido em 1882 no Engenho de Mundaú, neto, bisneto e filho de políticos do Império e da República, Oiticica tinha uma convivência estreita com os círculos intelectuais e políticos. Seu pai foi deputado e reconhecido intelectual de seu tempo, chegou a escrever um livro sobre as rendas no Nordeste, a pedido de Gilberto Freyre. Como seu pai, José Oiticica era poliglota: falava e escrevia fluentemente em várias línguas, inclusive o grego e latim. Sua educação espelha o mais alto padrão cultural de seu tempo: desde adolescente estudava filosofia e teatro. Viveu no Rio de Janeiro desde os seis anos de idade. Na juventude tornou-se um poeta parnasiano, crítico literário e militante anarquista. Foi professor de português no Colégio Pedro II e de teatro na Escola Nacional de Teatro. Bacharel em direito e estudante de medicina por 4 anos, Oiticica tinha como atividades principais o magistério, a literatura e a militância anarquista.
Entre suas principais publicações encontram-se livros de sonetos de estilo parnasiano, O manual de estilo, Manual de análise literária e Curso de literatura bem como artigos em jornais e revistas anarquistas, algumas dos quais fundados por ele. Sobre filosofia anarquista Oiticica publicou O catecismo anarquista e a Doutrina anarquista ao alcance de todos, com traduções para o espanhol e o francês. Duas peças de teatro: Pedras que rolam e Quem os salva. A obra de Oiticica parece convergir integralmente com as correntes intelectuais vigentes no Rio de Janeiro durante a primeira República: o utilitarismo, o liberalismo, o positivismo e o humanismo, correntes de pensamento que divulgavam modelos de sociedade e prescrições éticas que tiveram ampla difusão no período. Conceitos como pátria, nação, identidade, verdade, justiça e humanidade influenciavam a produção intelectual da época1. Todos os intelectuais cultivavam de formas variadas o projeto de integrar-se a vida cultural e política da cidade. Este projeto, porém, adquiriu um outro contorno a partir dos anos 10, momentos em que a despeito das idéias que a inspiravam, a República se estabilizou numa política oligárquica2. A descrença em relação à República e o isolamento social levaram alguns intelectuais a reverem sua atuação, de par com a expansão das idéias revolucionárias no Brasil. Socialistas, anarquistas e positivistas competiam pela hegemonia do pensamento político brasileiro. Atuando em campos ideológicos diversos, grupos de intelectuais discutiam os problemas nacionais e divulgavam suas idéias na imprensa ou através de panfletos e folhetins é o caso dos positivistas, dos anarquistas, dos socialistas e dos literatos em geral. No campo cultural eram famosos os duelos literários dos parnasianos conhecidos como “gramatiquice” e os salões literários, muitos dos quais promovidos por Coelho Neto e Olavo Bilac. Eram freqüentados por Oiticica, Alberto de Oliveira, Martins Fontes, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Emilio de Menezes, Humberto de Campos, Luis Murat, Luis Edmundo, Heitor Lima e Homero Prates. Era comum a execução repetida do Hino Nacional nestes salões.
Assim, a vida intelectual de Oiticica se dividia entre os círculos literários da cidade, a atividade de professor e a militância anarquista.
A questão operária era tema de grande atualidade, e vários intelectuais se diziam socialistas ou simpáticos aos ideais de esquerda. O movimento anarquista chegou a agregar nomes como Silvo Romero, José Veríssimo, Curvelho de Mendonça, Pedro do Couto, Silva Marques, Pereira da Silva e Rocha Pombo. A simpatia dos intelectuais pela revolução é notória no discurso proferido por Olavo Bilac na Academia Brasileira de Letras por ocasião da posse de Afonso Arinos, em que Bilac manifesta o seu “apoio as lutas em prol do socialismo” (Pontes: 1944: 12). No entanto, o fato de se pronunciarem a favor de idéias revolucionárias não significava, necessariamente, que estes intelectuais aderissem à militância no campo social político; sugere porém que estas idéias exerciam sobre eles forte atração.
Mesmo antes de se tornar anarquista, José Oiticica era naturalista e ateu, adepto da idéias cientificas e do espírito racional-crítico da época pós-romântica. O Colégio Pedro II, onde Oiticica passou a lecionar, a partir de 1916, era o lugar por excelência onde as idéias filosóficas e cientificas eram divulgadas. Silvio Romero, Capistrano de Abreu e professores europeus defensores do cientificismo eram convidados para dar cursos e conferências no colégio, e até mesmo para dirigir outras escolas no Brasil. Foi sobretudo o espírito antiespiritualista e anticristão introduzidos pela Escola de Recife que levou José Oiticica a propor a criação de um centro de estudos germânicos no Rio de Janeiro. Este espírito crítico influenciava a estética parnasiana. Para Oiticica a estética parnasiana o fascinava pela valorização da palavra, da forma objetiva e da perfeita metrificação gramatical. A opção estética pelo parnasianismo se demonstrava não só em sua obra literária, como também, nos ataques que fazia aos futuristas. Em seu livro Manual de estilo, Oiticica faz o elogio da perfeição gramatical, da expressão acabada, do aprendizado rigoroso das línguas, sobretudo o latim e o grego, para melhor compreensão do “valor dos termos e seus agrupamentos às formas gramaticais”. Segundo Oiticica
“Schopenhauer previu admiravelmente o pavoroso advento de futuristas dadaístas, livre metristas e mais Hunos literários, autores desregrados de mau gosto plebeu e mascarados de um carnaval felizmente passageiro. O estudo das letras clássica na fonte grega e latina é sobretudo escola de bom gosto, requinte, aristocracia mental e repouso estético, sem o qual a arte é fogo de vista, arlequinada e grotesca” (Oiticica, 1926:191).
Oiticica assume que todo verdadeiro pensador se esforça por exprimir suas idéias do modo mais puro, claro e breve possível; “Por isso que a simplicidade sempre foi o atributo, não somente da verdade, como do próprio gênio” (Oiticica, 1960:50).
O elogio da simplicidade é associado ao cultivo da técnica, do método apropriado. Segundo Oiticica, “os modernos devem se espelhar nos antigos, na tradição greco-latina” (Oiticica, ms:1913).
Segundo Afrânio Coutinho, “nos meios cultos era total o respeito pela estética parnasiana. Seus poetas eram tidos como padrões ideais que somente podiam ser imitados, quando muitos igualados, mas nunca superados”(Coutinho, 1959:8) A estética parnasiana era apreciada por um público elitizado que em sua maioria provinha de famílias aristocráticas e educadas nos padrões culturais europeus. Neste sentido, a obra literária de Oiticica atingia um público ao qual este autor estava ligado socialmente por origem e cultura. O fato de sua obra exercer atração sobre o público de elite não significava necessariamente uma afinidade de valores entre autor e público. A arte aqui é vista como um sistema simbólico de comunicação que interage com certo público por afinidade de gosto, formação, classe social e cultural, ou seja: os vínculos que se estabelecem entre o criador e seu público são múltiplos. O que nos interessa aqui são as relações e possíveis contradições entre as posturas estéticas e políticas de José Oiticica, do ponto de vista de sua biografia intelectual.
De um lado, sua produção puramente literária atingia as camadas mais altas da sociedade; de outro, a produção de fundo político cultural buscava elevar, a partir do anarquismo, às camadas populares a erudição e a consciência da revolução.
O fim mais alto do anarquismo é a elevação da plebe, dos verdadeiros produtores, a sentimentos e gostos aristocráticos, substituindo assim a democracia atual, calcada na ignorância e na pobreza, por uma aristocracia geral, humana (Oiticica, 1919:249).
Oiticica dava conferências nos sindicatos sobre a importância da tradição grego-latina e de uma vida voltada para apreender a natureza. Ele ensinava ao operário que o fumo, o álcool, os remédios químicos e os vícios em geral são contrários à natureza, que o indivíduo deve estar atento à sensibilidade do seu corpo, fonte primordial de energia para o trabalho e para o prazer. Através de um contato direto com o corpo e com a mente pelos exercícios físicos e pela meditação, os homens se tornariam seres autodeterminados, menos susceptíveis ao mando.
O projeto de Oiticica era fazer com que o operariado alcançasse o mesmo nível de erudição que as elites. Grande parte da intelectualidade acolhia a ideologia do branqueamento e da miscigenação porque considerava o povo étnica e culturalmente inferior aos povos do ocidente. O pensamento anarquista confrontava a ideologia do branqueamento, não considerava o homem brasileiro inferior do ponto de vista da natureza e sim da cultura. O anarquismo, na medida em que rejeitava as idéias de pátria, estado e nação também confrontava o nacionalismo cultural emergente e a expansão das idéias comunistas. Para Oiticica, a cultura e a estética não deve ser reduzida à politização da classe operária e a representação de uma cultura “nacional”. A elevação da plebe a sentimentos e gostos aristocráticos, era em sua visão, fator fundamental na construção da nova sociedade. Trata-se para Oiticica de um processo pedagógico e não estético e político.
O anarquismo de José Oiticica vincula-se aos ideais iluministas de redenção da humanidade a partir da razão e da moral considerando elementos construtivos da natureza do homem constrangidos pelo desenvolvimento civilizatório. Oiticica quer resgatar o ideal grego da boa vida, como se o mundo clássico pudesse regressar na cultura limpa e pura dos trópicos. Contudo, a aspiração romântica ao esplendor estético da vida grega não oculta o seu desencanto com a modernização em marcha.
Que formidável diferença entre a vida grega e a vida moderna!…Debalde, vejo os destroços das muralhas, os alicerces das sete Tróias mortas, debalde! Não vejo mais as almas, não revivo Ulisses, nem Diomedes, nem Agamêmnon, nem Andrômaca, nem Térsito, nem Helena (Oiticica,ms:1918):
“Essa invisível causa, que eu procuro
nos meus tormentos de meditação,
inda é o mesmo problema ingrato e obscuro
Que atormenta homens bons desde Platão
Esse maldito sonho de ser puro
– Apurado na dor – é sonho vão:
E ira semeando dores no futuro…
Pobres sonhadores que virão!”
(Oiticica: 1914: RJ:Revista Americana)
Neste soneto, o autor afirma estar em busca de uma causa; como que disposto a submeter sua vida a uma missão impossível que lhe causa angústia mas lhe revela o sonho de ser puro. Em outro soneto, Oiticica define-se como um pensador aristocrata.
“Meu pensamento é nobre e aristocrata…
Sonha palácios, torres, milesandres,
Ama o plinto, um minueto, uma balata.
E D.Quixote e aplaude os efeitos grandes.
Preza a arte extrema, onde algo se delata
do homem, do fim, do amor de Orion, dos Andes.
detesta o plebiscito, a bombachata
De cubismo, foxtrotes e jazbandes.
que ver a idéia sã na forma pura,
a linha, o bom, o acorde, o estilo a rima
onde a emoção, zainfe, irreal, fulgura.
(Oiticica: 1914: RJ:Revista Americana, p. 18)
Oiticica era um erudito, um defensor radical do classicismo. Para ele, a verdadeira arte não poderia ter outras fontes além da clássica. Seus escritos políticos seguem o mesmo rigor literário, sua compreensão da cultura revela a convergência entre o cultivo da erudição e o elogio da filosofia libertária. A filosofia libertária supõe que os homens assumam seus desejos primitivos, expressem-se com liberdade através de sua natureza humanitária sem qualquer ímpeto disciplinador externo ao indivíduo. Como conciliar seu projeto estético com seu projeto político revolucionário?
Durante a conferência sobre o programa comunista em 1919, Oiticica declarou: “Não aspiro a democratização dos aristocratas. Aspiro sim, à aristocratização dos democratas. O meu desejo é dar a estes a inteligência , a cultura, o amor da beleza eterna e da arte imperecível” (Dulles: 1980:320).
O literato não se separava tão radicalmente do militante. A pregação libertária era encarada acima de tudo como missão de regenerar a sociedade. A educação das massas era o ponto fundamental de sua teoria anarquista, era preciso esclarecer a consciência proletária de seu papel histórico revolucionário. Para isto, Oiticica criou o teatro social libertário e realizou várias conferências em festas, sindicatos e agremiações culturais. Boa parte se sua vida foi dedicada à doutrinação do proletariado. Na estética como na política, Oiticica revelava uma preocupação fundamental com o método, com as prescrições éticas de cada uma destas atividades. Em Oiticica, a estética se encontra separada da vida, mas em ambas as esferas predomina o rigor, a disciplina informados pelo método.
Como professor do Colégio Pedro II, segundo seus contemporâneos, jamais induziu seus alunos à adesão do anarquismo. Como intelectual e literato, atraia a admiração da esfera de intelectuais mais reacionários de sua sociedade, como é o caso de Jackson de Figueiredo e o Padre Leonel Franca, que chega a publicar um livro de polêmicas com Oiticica.
Embora tenha sido um dos intelectuais que mais combateu a reação espiritualista, Oiticica não deixa de receber os maiores elogios do amigo Jackson de Figueiredo: “O meu amigo é um dos melhores caracteres, uma as mais vivas inteligências da geração de intelectuais a que pertenço” (Martins: 1976: 78).
No alvorecer dos anos 1920 começa a se desencadear no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, o movimento de restauração católica. À frente deste movimento estão Jackson de Figueiredo e Leonel Franca. O movimento se propunha a promover a reaproximação entre a literatura, a cultura e a Igreja Católica, através da valorização dos princípios espirituais inspirados no catolicismo; a reação espiritualista propagava a doutrina da Ordem e da contra revolução.
Começava a delinear-se um pensamento conservador católico e nacionalista que viria a se organizar em torno de Alberto Torres, Farias de Brito e Tristão de Athaíde, e de onde emergiriam os primeiros vagidos do integralismo.
Oiticica não se isola da ambiência intelectual deste debate, como prova a sucessão de artigos publicados por Leonel Franca no livro de polêmicas com Oiticica. O padre era considerado um dos intelectuais mais cultos do Brasil, publicou extensa obra sobre a história das idéias católicas no país, lutou contra a laicização do ensino e foi reitor e fundador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC. Em seu livro de polêmicas com Oiticica, discute o modernismo católico, as relações entre fé e ciência e a presença da Igreja nos movimentos sociais e políticos. Um crítico desconhecido escreveu acerca do livro:“Trata-se da única obra em português a propósito do modernismo católico” (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/06/1928).
Estes fatos revelam a integração de Oiticica aos meios intelectuais de sua época; dos quadros mais autoritários e elitistas aos mais populares, suas idéias produziam ecos de significação.
A participação de Oiticica nos diversos meios intelectuais de seu tempo nos mostra que o contraste entre suas atividades de literato e revolucionário se deve antes a seu trânsito em esferas muito diversas da sociedade, não se constituindo necessariamente num aspecto contraditório de sua biografia intelectual.
Wilson Martins, em a História da inteligência brasileira, observa que:
É fato conhecido e banal que os revolucionários em política são puritanos no que se refere aos costumes, não raro ascéticos em sua vida particular, jogo instintivo de compensação que lhes restabelece o equilíbrio interior. No Brasil o exemplo mais característico pode ser o de José Oiticica cuja Doutrina anarquista (que julgava ao alcance de todos) conciliava-se perfeitamente com a estética mais esclerosada” (Martins, 1976:72).
Oiticica é visto como um intelectual contraditório, conservador na literatura e revolucionário na política. É o que entende também Osório Borba nas páginas doCorreio da Manhã:
Personalidade antitética. O anarquista era, em filologia, um servidor devoto da disciplina gramática; em poesia ficou fiel aos registros cânones do parnasianismo. Na prisão como anarquista entregou-se à composição de um livro sobre o pronome ‘se’ (Borba, 1957:23).
Importa aqui ressaltar que tais afirmações foram inspiradas no ponto de vista de quem considera e reconhece o modernismo como um movimento revolucionário. Para essa visão, figuras como Olavo Bilac, Coelho Neto e Oiticica eram consideradas anacrônicas e alienadas dos círculos literários que começavam então a adotar a estética paulista. Oiticica era parnasiano, intelectual ilustrado, bacharel da República pré-modernista. E não era o único a equacionar uma estética parnasiana a ideais revolucionários. Edgar Leuenroth, por exemplo, em sua antologia A Poesia Social na Literatura Brasileira assimilava o parnasianismo à mudança social, intitulando seu capítulo sobre aquela corrente literária de “Umbral do Parnaso – da Rebeldia e da Esperança”.3
A trajetória de Oiticica não apresenta vínculos objetivos com a nova marcação da atividade intelectual naquele contexto. As fronteiras entre o homem de letras e o homem de ação se fazem notar pela ausência de qualquer menção ao anarquismo ou à causa operária em sua obra literária ou a atividade de professor. De fato, a militância estava separada da profissionalização do artista; a política e a arte são esferas de valores e de ações diferenciadas, contudo a entrada do modernismo nos meios literários brasileiros aguçou as convicções estéticas de Oiticica, despertando-lhe profundo desprezo pela estética modernista. A obsessão pelo português correto e metrificado e o academicismo desses poetas era considerada uma erudição inútil pelos modernistas. Deixados à margem da história, esses poetas beletristas amantes da forma e da tradição clássica foram quase esquecidos:
Há quem estranhe que, sendo eu anarquista, combata os futuristas. Ora, eu sou inimigo desses movimentos PSEUDO-ARTÍSTICOS que falsamente se designam por ‘modernismo’ e ‘futurismo’, justamente porque sou anarquista, isto é, partidário de uma sociedade baseada na ordem, no belo, na estética. Não combato, antes desejo e favoreço uma permanente renovação dos padrões artísticos. Mas isso que por aí se designa por ‘modernismo’ e ‘futurismo’ é o contrário de uma verdadeira renovação, pois nada mais é senão o regresso à mais primitiva e rudimentar das manifestações artísticas, caracterizando-se pela confusão mental e pela vacuidade de conceitos (Oiticica, 1926:10).
Para Oiticica, os literatos modernistas
(…) não são nem poetas, nem modernistas, nem futuristas! Escondem, detrás máscaras literárias, a sua frustração, a sua ignorância dos cânones artísticos, a sua ausência de inspiração e a carência de cultura e do sentido estético! (Oiticica, 1926:11).
Esse debate vai encontrar ressonância na obra do então crítico literário Alceu Amoroso Lima que assinava Tristão de Athaíde. Ele defendia, entre outros pontos, a necessidade de se voltar ao classicismo como meio de expressão. Afirma o crítico que “o problema da civilização brasileira é um problema de assimilação” (Amoroso Lima, A de: apud Cardoso 1980:22) A argumentação de Tristão de Athaíde busca denunciar o “modernismo” como uma forma de suicídio literário, na medida em que este movimento passa a importar da Europa uma literatura “deteriorada”, representada pelos movimentos vanguardistas vistos como grandes males culturais, “essa “moléstia” alemã e esse “cadáver” francês que o Sr. Oswaldo pretende impingir-nos como novidade, como panacéia saneadora da poesia nacional” (Amoroso Lima, 1945:919). O verdadeiro problema, para o crítico, não é a importação cultural, mas “a qualidade do que se importa”, já que, a seu ver, ainda não deveríamos “prescindir de uma imitação”. Para Tristão de Athaíde, “imitar para inspirar-se não é submeter-se cegamente ao exemplo estranho. Imitar o espírito é um reconhecimento dos limites, maior prova de independência do espírito. É sua humanização” (Amoroso Lima de, 1966:923).
Na visão de Tristão de Athaíde, não havia, naquele contexto, qualquer pertinência na importação das escolas expressionista e dadaístas para o nosso meio. Era preciso importar formas culturais disciplinadoras, portanto “clássicas”, vistas como “forças de sanidade a que a Europa está lançando um apelo para reagir contra a decadência. Ir ao clássico é sobretudo buscar a verdade. É renunciar a desordem (Amoroso Lima, 1945:924). Se, para o contexto da Europa mostrava-se necessário a recusa do saber erudito, para o Brasil isto não fazia sentido, pois, “onde não há forma busca-se a forma”:
Estamos nós, brasileiros, no caos. Tudo é informe. Tudo é transitório. Aceitamos as correntes mais contrárias, a raça não está coldeada. A saúde do povo corrompida. A riqueza está nas mãos de estrangeiros ou no fundo da terra. A unidade nacional abalada. A sorte do individuo abandonada. O poder, arbitrário, periclitante ou acometido de armas nas mãos. A arte, a filosofia, a literatura imitando o passado ou comprazendo-se na diluição, no sarcasmo cínico, na morte. A terra ignorada. O futuro incerto. Tudo transitório. Tudo por fazer. Tudo vago, indeciso, amorfo. É nesse mundo de larvas que se pretende injetar o gosto da dissolução! Nesse mundo sem formas que se pretende introduzir o horror à forma! (Amoroso Lima, 1945:926).
“Uma literatura amorfa não pode ser uma literatura viva!” Pois ela admite, segundo o autor, o improviso, o provisório, o superficial, o esquecível e a falsa retórica. Por forma, Tristão entende uma obra que não seja apenas o livre reflexo da subjetividade do autor. Uma obra que tenha vida própria é aquela que se submete à princípios éticos e estéticos que dêem contorno à fusão vida/obra tão destruidora. Segundo Tristão, os modernistas recusam a lógica, o esforço disciplinado da beleza em função da importação mimética de uma poesia deteriorada. Fazem o elogio do bárbaro e instintivo na tentativa suicida de pensar o Brasil. O contexto apontava para uma renovação da produção artística no Brasil. Tratava-se de apresentar o moderno como nacional assentado na inspiração nativa. A crítica de Tristão chama atenção para os impasses e limites desse esforço criador das nacionalidades. Para quem, “ser nacional é criar uma nacionalidade e não submeter-se a ela” (Amoroso Lima, 1942:79).
Os anos 1920 foram férteis para o processo de redefinição dos vínculos culturais entre Europa e América. Várias correntes de pensamento entravam no debate de renovação da produção artística do Brasil. Havia a tendência representada pelos parnasianos, articulada a matriz cientificista, a tendência representada pela reação espiritual, que buscava uma leitura crítica do conhecimento racional e a corrente das vanguardas que rompiam com a linguagem clássica e lógica e apelavam para os impulsos inconscientes e instintivos como fontes básicas de inspiração artística. Essa última corrente teve forte repercussão entre intelectuais brasileiros e influenciou decisivamente o movimento paulista que se autodenominou modernista.
Em torno dessas correntes de idéias serão retomadas as discussões acerca da modernidade sob diversos pontos de vista que escapam a intenção deste texto. Nosso propósito é chamar a atenção para a presença de outras orientações modernistas no cenário cultural carioca bem como no pensamento anarquista. A crítica dos cariocas ao movimento paulista não se dava no plano da recusa da modernidade. Conforme já se tentou mostrar, a geração de intelectuais que testemunhou o advento da República no Rio de Janeiro vivera intensamente sob os impasses e configurações do ideal modernista entre nós. Neste primeiro contexto, o modernismo brasileiro, identificado com a capital federal, voltava-se para a problemática da inserção imediata do Brasil no mundo contemporâneo. José Oiticica estaria perfeitamente integrado com aquilo que Eduardo Jardim de Moraes (1983), ao periodizar o modernismo em duas fases, distingue como a primeira época do movimento, que transcorre entre 1917 e 1924. Nesta fase, a modernidade é percebida numa ordem universal. Neste sentido, ser moderno significava, antes de tudo, “estar em dia” com um conjunto de valores que remetem à racionalidade, à civilidade e ao cosmopolitismo do mundo ocidental.
A nova poesia do século XX
Assim procedo: minha pena
Segue essa norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!
Bilac
Em dezembro de 1915, José Oiticica publica, em forma de manifesto, o que entendia como A Nova Poesia. Neste artigo, Oiticica, expõe uma teoria geral da poesia de todos os tempos e ressalta a especialidade da poesia do século XX. Reforçando o seu argumento, Oiticica escreve á José Veríssimo,
A ciência moderna mostrou o erro do ponto de vista bíblico. Hoje, o postulado estético e a poesia devem formar, para tema estético, para expressão emotiva, o postulado da integração do homem no universo (Oiticica, ms:1915).
O novo poeta, segundo Oiticica, “está convencido de que a terra é uma insignificância no universo, fragmento pulverizado do cosmo, preso ao infinito pela atração, e de que o homem é um fruto da dolorosa evolução animal, de que seu ser remonta às ascendências paleozóicas”. Ainda segundo Oiticica:
Os poetas pagãos e cristãos esperavam tudo da divindade, e a vida era apenas a luta para conseguir a felicidade futura segundo a vontade dos deuses. O sofrimento era conseqüência da cólera celeste. A felicidade, uma recompensa divina, o poeta novo encara a vida como um acidente dos ciclos evolutivos do universo, subordinada a fatalidades físicas, entende a humanidade como um fragmento vivo do universo que no universo houve os seus meios de subsistência e que pra o universo volve em átomos dispersos. Sobre tudo isso, o sofrimento como mal relativo, a felicidade como um bem relativo e, entre os dois, a dúvida como estímulo para aprofundar o desconhecido” (Oiticica, ms:1915).
Investido de uma consciência esclarecida, o novo poeta tem diante de si a certeza sensível e racional de sua integração no universo. O artista moderno pode reunir, assimilar, jogar e ironizar com os sentimentos sensíveis e inteligíveis que este mundo lhe proporciona. O verdadeiro artista não é aquele que exalta o pensamento mas aquele que se conserva humano. Não é aquele que imita os clássicos, e que, portanto, permanece ‘enamorado da beleza velha e incapaz de renovação.”(Oiticica, ms:1918).
Em outro momento, Oiticica afirma:
A arte não se alcança pelo estudo, pela técnica, pela prática, se não houver no cérebro que pensa o arrojo de subir. Arte é exaltação íntima se ser consciente…Os meros exaltadores de pensamento são hipócritas, fingem a arte. (Oiticica, ms:1918).
A vocação do artista, como a do cientista, não está no sentimento ou pensamento. O artista, como o cientista, não é aquele que repete fórmulas, mas “aquele que formula uma hipótese íntima, que retira de dentro de si, de uma emoção individual” (Oiticica,ms:1918):
Não sentiste o calafrio da interrogação, não sentiste a ciência e o valor. Não és homem de ciência; és discursador de ciência, não és sábio; tu artista pintas ou escreves o que não te emove e o que não viste, o que teus sentidos não clamam ou viveram (Oiticica,ms:1918).
A arte, como a ciência, exige uma comunhão singular entre o sensível e o inteligível, entre natureza e cultura, entre arte e técnica, entre o subjetivo e o objetivo, entre o particular e o universal. Oiticica vislumbra uma sociedade em que não houvesse a trágica dissociação entre natureza e cultura. Neste sentido, estaria realizado o ideal de um mundo governado pelas leis da razão e da sensibilidade. Os homens retomariam a sua sociabilidade natural, e, com isso, prescindiriam de leis externas à ordem natural. O homem, como o artista, deve preservar a sua individualidade para ser capaz de agir de modo contemplativo, mas também capaz de se deixar dissolver no Universo. Deve ter a atitude descentrada de um sujeito que se põe como objeto. Os homens são vistos “como animais que pensam e que sonham” (Oiticica Oiticica, ms:1918):
Um dia eu contemplava as evoluções de um hidroplano na baía de Guanabara. Vi-o deixar a nesga da praia do flamengo, rojar nas águas resmungando, exasperado as ondinas que espumavam, elevou-se resonando, de asas pandas, muito branco. Voou em linha reta, revoejou, circulou, desceu, subiu, repousou na água, navegou, recolheu-se enfim à nesga de praia, descansou e refez-se para de novo altear-se. Essa ascensão objetiva simboliza bem a exaltação subjetiva, com seus arrancos de asas imateriais, seus voluteios de quimeras, seus sonos de renovação” (Oiticica, ms:1918).
Há uma relação viva entre o olhar contemplativo e os sentidos despertados pela máquina que voa. O texto ressalta a presença de uma subjetividade que se abre para o externo, valorizando ética e esteticamente os benefícios da natureza convertidos pela razão humana. Aqui não há alienação homem-técnica-natureza, só integração.
A constituição da nova poesia se dá, para Oiticica, a partir de três correntes. São elas: o novo paganismo, a aspiração a um novo espiritualismo e a constituição de uma sociedade nova. O novo paganismo caracteriza-se pela compreensão dos predicados do entendimento pagão; valorizando os pontos de vista greco-romanos no tocante à vida e as pesquisas livres dos preconceitos religiosos, em que se exalta o senso de beleza do homem. O novo espiritualismo caracteriza-se pela busca de compreensão da morte, pela independência do espírito como ser, e pela perpetuidade cósmica e sua irredutibilidade substancial. Nesta corrente, incluem-se as variações da teosofia, do neopsiquismo, e inquietações que dizem respeito tanto à ciência quanto à religião, o corpo é entendido como matéria e energia cósmica subordinada aos ciclos evolutivos do universo. A terceira corrente refere-se à constituição da nova sociedade, que se caracteriza pelo ideal de felicidade humana possível num regime novo, racional, do qual suprimir-se-iam as fontes do mal humano. Essas correntes de idéias são, segundo Oiticica, harmonizáveis, uma vez deflagrada a revolução social e instaurada a sociedade anarquista.
A estética preconizada por Oiticica, incorpora elementos essenciais a conformação do ideário moderno, da valorização da cultura greco-romana até as últimas conquistas do pensamento racionalista-progresssita dominante em seu tempo. A estética, na versão de Oiticica, jamais poderia alienar-se das conquistas dos antigos, da crise do pensamento cristão e do aparecimento da ciência. A arte deve se valer de seus pressupostos e ser compreendida em sua totalidade. Os sentidos e as idéias devem ser “educados” para se converterem em forma, em arte. A expressão imediata, o êxtase estético sem moldura, perde-se e dissolve-se na vida. Só a forma pode remeter a obra á um sentido ético e estético capaz de lhe imprimir autenticidade e autonomia.
A cena histórico-cultural que se configurava com o decorrer do século XX viria a contrastar com o ideário de muitos pensadores eruditos. O mundo se integrava à economia de mercado. Os impasses gerados pela guerra imprimiam no plano da cultura, uma revisão de valores a partir da qual declara-se uma ruptura com o passado. Ampliava-se a distância entre a razão e a moral, dando lugar ao processo de “desencantamento do mundo” (WEBER, 1980: 154) e à experiência da perda da invidualidade. A marcha inexorável em direção ao futuro ia conformando uma sociedade urbana, mecanizada e sem referências. Na visão de Tristão de Athaíde, o século XX se inaugura sob o signo da barbárie. Descrevendo sucitamente a sua versão acerca do que seja o espírito bárbaro e civilizado, Tristão de Athaíde anuncia a barbárie como “um estado de espírito profundamente moderno” (Amoroso Lima, 1942:72). Para esse autor, civilizado é aquele em que a sensibilidade e a inteligência absorvem toda a vida mental. Bárbaro é aquele em quem a vontade é o elemento essencial do espírito, em que predominam a moralidade e a ação:
O homem civilizado é o que compreende, comove-se, duvida e contempla. O bárbaro é o que analisa, luta, realiza e crê. O civilizado é o que tem por princípio horror à violência, sob todas as formas – o bárbaro, o que se compraz na violência (Amoroso Lima, 1942:715).
Tanto o espírito de barbárie como o espírito de civilização, segundo o autor, dividem-se em duas orientações opostas: a dos reacionários, à direita, e a dos revolucionários, à esquerda. A emergência da guerra gerou o estado de barbárie, representado, à esquerda, pelo espírito revolucionário e, à direita, pelo espírito reacionário.
Este espírito “profundamente moderno” representado pela cultura da barbárie tem como expoentes típicos o caso da Rússia e o da França: o primeiro buscou fundar uma nova civilização, e o segundo buscou consolidar-se como padrão civilizatório universal. Ainda segundo Tristão de Athaíde:
Entre nós, já se delineiam os braços dessas duas famílias de espíritos, com suas respectivas ramificações. Lembramos apenas os nomes de duas figuras típicas desse moderno espírito bárbaro, irredutivelmente opostas em suas posições à direita e à esquerda, e ambas superiores como dotes intelectuais e morais: os Srs. Jackson de Figueiredo e José Oiticica” (Amoroso Lima, 1942:716).
A observação perspicaz desse grande crítico literário vem corroborar a argumentação desse trabalho. Homens como José Oiticica, Jackson de Figueiredo e tantos outros participaram intensamente das inquietações existenciais, culturais e éticas de um tempo singular na história cultural brasileira. O contato com a obra desses intelectuais pode motivar vivamente um retorno ao passado que empreste uma nova leitura, uma nova tonalidade ao espírito cultural, ideológico, político e social daquele período.
Tratava-se de uma intelectualidade que levava a sério os conceitos de universalidade, humanidade e razão. Além disso, esses intelectuais se sentiam como os próprios agentes da transformação sócio-cultural exigida pelo seu tempo em que, contudo, a fé científica se relativizava cada vez mais em face do novo contexto cultural que se ia anunciando, entre outros fatores, com a guerra que mostrava um mundo sem Deus, sem razão e sem valores:
As súbitas transformações sociais dos tempos recentes, franqueando as portas da ambição e do oportunismo, materializaram as paixões transformando-as em interesses. (…) Verifica-se em todo esse período um curioso processo de passagem da vigência social dos valores interiores, valores morais, essenciais, ideais, para os exteriores, materiais, superficiais, mercantis(Sevcenko, 1987:96).
A proposta de renovação espiritualista de Jackson de Figueiredo e a filosofia libertária de José Oiticica convergem no sentido de corrigir os erros de uma sociedade que se abandonava aos “valores” do mercado.
Jackson de Figueiredo vê na angústia de Pascal a consciência de um racionalismo mitigado. Ao recuperar Pascal, o autor de Pascal e a inquietação moderna busca expressar as dúvidas e agitações da consciência contemporânea diante da falta de fé e da perda dos vínculos morais entre os indivíduos:
Todas essas confusões e desordem da sociedade contemporânea, a ignorância do nosso destino mora, o esquecimento de nossos deveres para com o sofrimento de nossos semelhantes… Tudo isso não é senão produto inevitável, conseqüência necessária, fatal, da impiedade moderna, o resultado prático da vitória do materialismo, do qual só pode ser logicamente deduzido como critério das ações o interesse (Jackson de Figueiredo apud Nogueira, 1976:42).
Jackson de Figueiredo e José Oiticica contrapunham-se ao capitalismo e ao espírito de modernização, que reduziam as relações sociais a relações de mercado, destruidoras dos vínculos de solidariedade. Jackson de Figueiredo buscava no catolicismo a restauração de um valor guia que orientasse os homens no sentido de um destino comum. A revolução, para Jackson era responsável pela destruição dos valores mais essenciais da cultura ocidental para esse autor, que denuncia o aspecto desagregador da reforma protestante, o abandono da fé com o racionalismo de Descartes, a instituição do materialismo e dos ideais libertários dos enciclopedistas e que via na liberdade e na igualdade os preceitos básicos da desordem social. Segundo o autor de A coluna de fogo, “a pior legalidade ainda é melhor que a melhor revolução” (…) A coluna de fogo é essa: o ideal anti-revolucionário” (Figueiredo, 1925: 53).
Jackson de Figueiredo busca, a partir da religião, o “retorno necessário e inevitável às fronteiras do bem e do mal” (Figueiredo, 1925: 53). A idéia de ordem passa a intenção de infundir ao comportamento humano uma moldura moral que só poderia advir da esfera da crença, dado que os homens são ontologicamente imorais. Só a fé em Deus seria capaz de desafiar a moralidade reinante.
José Oiticica busca, a partir do anarquismo, a restauração da ordem natural e moral da sociabilidade humana. Para o autor de A doutrina anarquista, a moralidade e a correção ética são um dado ontológico do ser humano. As relações sociais e as instituições políticas que delas emergem é que corrompem esta sociabilidade inata e impedem sua manifestação. Oiticica não rejeita, contudo, a idéia e o sentimento religioso, que para ele significavam:
A consciência imediata e viva da existência do ser finito e efêmero dentro do ser infinito e eterno, revelação do infinito no finito, (…). Serenidade em face do infinito! Eis a grande característica das almas profundamente religiosas. As seitas perturbam essa serenidade (…). Para ser sereno em face do infinito é mister subir a ele (Oiticica,ms:1918).
Essa aspiração é básica na vocação do artista. Opera como um sopro, uma intuição, que Oiticica caracteriza como Exaltação. José Oiticica e Jackson de Figueiredo foram personalidades inquietas que buscavam fazer explodirem os contornos que a modernidade imprimia a nossa cultura, e, quer em tonalidade reacionária, quer em tonalidade revolucionária, suas vozes exaltaram-se pra formular uma doutrina para o Brasil.
Estética e política
Oiticica ao lado de Fábio Luz, então romancista e militante anarquista experiente, desenvolveu um projeto de educação para o proletariado. Este projeto incluía discussões da doutrina libertária, conferências sobre arte, ciências, e temas sociais e políticos. Junto com Fábio Luz, Oiticica organizava seminários em teatros, parques públicos, ao ar livre e nos sindicatos. Oiticica promovia atividades culturais nos sindicatos porque os via como um espaço de luta e difusão cultural. Para ele, o sindicato era um espaço de socialização política, divulgação de idéias e valores no desenvolvimento de novos padrões de comportamento. Para Oiticica, a educação racional baseada na ciência emancipa o homem de todos os preconceitos e regras de ordem moral, social e cultural. É curioso notar que o mesmo tipo de mérito é atribuído à ciência pelo positivismo, sendo que na moralidade positivista o indivíduo se encontra subordinado a outrem: a família, pátria e a humanidade. Para os positivistas, a educação e a ciência são os meios fundamentais de orientação da vida moral. Tanto a filosofia libertária quanto a positivista estão informadas por uma teoria da evolução social baseada no método de exatidão científica de apreensão do real.
O background teórico de Oiticica está por um lado completamente informado pela doutrina anarquista de Kropotkin, o mais evolucionista dos anarquistas. De outra parte, a formação acadêmica de Oiticica está também vinculada à influência do positivismo nos meios intelectuais da virada do século. Neste sentido, existem variáveis convergentes no Parnasianismo e na filosofia libertária no que diz respeito ao elogio da disciplina, da razão e da moral. Em 1912, já é notória a evolução das idéias anarquistas que geravam sua própria doutrina no Brasil através de nomes como Oiticica, Fábio Luz e Neno Vasco. Também no ano de 1912 inaugura-se a escola moderna do Brás em São Paulo, e Gigi Damiani lança o importante periódico anarquista La Barricata.
No inicio de 1914, era fundado no Rio o Centro de Estudos Sociais, onde Oiticica participava dando aulas e palestras sobre a doutrina anarquista. Nesse período, com o apoio do Centro de Estudos Sociais, começou a se expandir o teatro social de ação pedagógica liderado por Oiticica. Em novembro de 1914, José Oiticica funda no Rio a revista A vida, considerada a primeira revista teórica brasileira voltada para a formação ideológica e a organização da classe operária.A vida trás as primeiras publicações do “catecismo anarquista” de José Oiticica. O Centro de estudos sociais, a revista A Vida e o jornal Na Barricadasão exemplos de uma preocupação maior com o desenvolvimento das idéias anarquistas no Brasil, foram publicados vários textos teóricos que aprofundaram o conhecimento da doutrina anarquista.
Em novembro de 1918 sob o impacto da revolução russa e de uma ampla mobilização da classe operária, Oiticica organiza o movimento insurrecional anarquista. A insurreição acaba denunciada por um tenente do exército que se infiltrara no grupo como espião (Addor, C.:1986). O fracasso do movimento causou a prisão de muitos militantes anarquistas, entre eles a de José Oiticica. Muitos estrangeiros militantes ou não, ou mesmo filhos de imigrantes foram expulsos do país sobre o pretexto de serem anarquistas. Mesmo com ausência de vários militantes será Oiticica o presidente da primeira Conferência Comunista do Rio de Janeiro realizada em 1919. É nela que Oiticica apresenta as bases deseu catecismo anarquista. Nesse período, são significativas as discussões sobre as divergências ideológicas entre o anarquismo e o bolchevismo. Oiticica chega a sustentar idéias avançadas para a época, afirmando que o capitalismo não se extinguiria na Rússia, antecipando os problemas que poderiam surgir na marcha histórica futura para o comunismo. Nos anos vinte a emergência do Partido Comunista e a presença do movimento modernista de São Paulo, em plena sintonia com a ideologia nacionalista vigente (Prado, A:1983) concorrem para mudar definitivamente o campo social, cultural e ideológico no qual Oiticica atuava. Esses acontecimentos põem fim ao momento de maior penetração do anarquismo no movimento operário, assinalando ainda, o enfraquecimento definitivo do parnasianismo cultivado pelo circulo literário carioca.
Oiticica permanece um ativo militante do anticlericalismo e combatente do bolchevismo que então ia conquistando os meios operários. Segundo Oiticica, “a ditadura política de um Estado qualquer jamais realizará a mudança”. Ao longo dos anos 1920 a 1926, encontramos diversos artigos de Oiticica, Edgar Leuenroth, Fábio Luz, Florentino de Carvalho, Pedro Matera e outros denunciando os autoritarismo do regime e da filosofia bolchevista. Segundo Oiticica:
Todo ditador quer obediência, e onde o povo se mostra obediente
pega mais o bolchevismo que o anarquismo, é natural (A Plebe, SP, 1/5/1923).
O anarquista questiona os limites de uma ideologia libertária frente a um comportamento cultural resistente à autodeterminação e passível ao mando.
Oiticica jamais deixou de ser um batalhador das idéias anarquistas. Prestando auxílios, inclusive aos movimentos anarquistas da Espanha e do México onde teve traduzido para o espanhol o seu Catecismo anarquista e a sua “Doutrina anarquista ao alcance de todos”.
Oiticica: entre o romantismo libertário e a ironia da desilusão
O sofrimento não me quebranta.
Passarei na prisão mais um, dois, três anos,
com a mesma serenidade, criticando resistências
das minhas amarguras. Oiticica
O importante é saber que a verdadeira justiça tem que ser transportada para além da vida. E lá estará.
Jackson de Figueiredo
Aos poucos, o radicalismo da militância de Oiticica vai progressivamente dando lugar a uma forma cada vez mais relaxada e bem-humorada de ver o mundo. Por trás do elogio da retidão moral e da forma pura e clássica de expressão estética, havia um grande gozador. A ironia era o remédio para a tragédia. Recordando suas inúmeras prisões, Oiticica afirma:
Não posso me queixar das minhas prisões. Sempre acabavam sendo úteis… Aproveitei os meses de férias forçadas para completar a revisão dos meus estudos de fonética (Ação Direta, 1970:31).
Enquanto esteve preso, Oiticica escreveu vários artigos e contos, inclusive o livro A doutrina anarquista ao alcance de todos também publicado em francês.
Os protestos anticlericais de Oiticica também incorporam a visão bem-humorada e irônica, como demonstra o soneto “Ao Cardeal”:
“Cardeal, que vida é a tua, meu maroto:
Comer, beber, dormir, fornicar,
Sem pensar que teu ronco e teu arroto,
Causam fome e amargura em muito lar?!…
Se Cristo andava de sapato roto,
Tu não tens o dever de o imitar,
Também São João passava a gafanhoto,
E nenhum papa usou de tal manjar!
Um palácio é melhor que uma baiúca,
Colchão de paina é o suco em noite fria,
E uma dama cheirosa ao lado é o céu.
Cardeal, sangra a gente mameluca,
E a pateta não vê que dá da sangria
Que escorre o vermelho do teu chapéu” ( Ação Direta, 1970:34)
Este soneto foi distribuído na forma de panfleto entre o Rio e São Paulo. O cardeal contra quem se dirigia (o Cardeal Arcoverde) não se posicionou mais contra a Liga Anticlerical ou contra Oiticica. O que se percebe é uma aceitação da ironia.
O anticlericalismo de Oiticica não o impedia de desfrutar do respeito e da amizade devotada de Jackson Figueiredo, um dos mais importantes pregadores da contra-revolução e do movimento católico no Brasil. Jackson de Figueiredo chega a interceder frente ao presidente da República, pedindo a libertação de José de Oiticica que, porém, recusa o pedido do amigo:
Tudo isso pesei e repesei, lutando contra o intenso desejo de rever meu lar e recomeçar, com dobrado afinco, a tremenda peleja diuturna de minha vida. Mas pertenço a uma escola que põe a serenidade e a inquebrantabilidade acima de tudo, não por orgulho, senão por coerência e retidão de alma…
Julgo minha liberdade um direito que desejo me reconheçam incondicionalmente. O sofrimento não me quebranta. Passarei na prisão mais um, dois, três anos, com a mesma serenidade, criticando resistências das minhas amarguras (carta a Jackson de Figueiredo – Bom Jesus, 22/8/1925 publicada em Ação Direta: 1970:18).
O gesto de convicção ética é o traço marcante no comportamento de Oiticica. A crença de que há um sentido último na vida e de que vale a pena persegui-lo. A filosofia libertária representava o solo ético capaz de dar unidade e segurança a um mundo que, na versão de Oiticica, “se rendia ao bom senso burguês”.
Talvez essa visão de mundo o aproximasse de intelectuais reacionários como Jackson Figueiredo, cuja angústia existencial marca profundamente sua obra. Porém, o romantismo conservador de Jackson o levou a aderir ao movimento católico. Como Oiticica, Jackson de Figueiredo era um anticapitalista convicto. O catolicismo para ele, como também o anarquismo para Oiticica, simbolizava uma atitude ética e absoluta frente à vida. Na visão de Jackson de Figueiredo:
O importante é saber que a verdadeira justiça tem que ser transportada para além da vida. E lá estará (Carta a Alceu em 11/12/1928 publicada em Nogueira:1976).
A restauração moral adviria da conscientização trágica da impossibilidade de alcançar a liberdade e a justiça num mundo em que a razão mesma explica a não razão. De um lado, a doutrina da ordem, de outro a vida boêmia, as noites passadas nos cafés a conversar com amigos. O erro moral, para Jackson, era um dado incorrigível do ser, só a Igreja poderia ser o único refúgio, “amparo realmente seguro à inteligência e à sensibilidade”.
A correção da vida adviria da imortalidade da alma. A morte é vista como elemento pacificador, o encontro com o absoluto e com a verdadeira justiça tão preconizado por Jackson. O autor anuncia sua morte, numa despretensiosa pescaria, entregando-se ao mar: “Vou para a frente, atirado no dorso da grande onda da vida, para onde Deus quiser” (Carta a Alceu 2/11/1928 publicada em Nogueira:1976).
Oiticica, diferente do amigo, retoma a tragédia a partir do humor e da ironia. O rigor formal dos sonetos deu lugar a saborosas sátiras políticas, no intelectual maduro dos anos 30. Em 1929 Oiticica leciona filologia na Universidade de Hamburgo, na Alemanha e retorna ao Brasil nos anos 1930.
Enfim, evocar a memória de José de Oiticica através dos círculos parnasianos e do movimento operário é apenas um primeiro passo frente à grandeza de sua obra. Há muitas trilhas a percorrer nas diversas facetas do intelectual, teatrólogo, filólogo, gramático, poeta, crítico literário, grão mestre da Fraternidade Rosa Cruz, militante e batalhador incansável das virtudes da filosofia libertária no Brasil até o fim de sua vida, em 1957.
NOTAS
1. Carvalho, José Murilo (1987). Os bestializados. São Paulo, Cia. das Letras.
2. Oliveira, L. (1990). A questão nacional na Primeira República. São Paulo, Brasiliense.
3. Leuenroth, Edgar. A poesia na literatura brasileira (Antologia) São Paulo, obra inacabada.Cf. Arquivo Edgar Leuenroth.Campinas -UNICAMP.
MANUSCRITOS
Arquivo privado de José Oiticica
Ms 1 – Conferência na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro),1913.
Ms 2 – Carta a José Veríssimo, 1915.
Ms3 _ Conferência na Biblioteca Nacional, junho de 1918
Ms4 _ Carta a Jackson de Figueiredo – Bom Jesus, 22/8/1925.
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