INFINITAS DESCOBERTAS DO CORPO NA ESCRITA POÉTICO-ERÓTICA DE MIRIAM ALVES – Cristian Souza de Sales 


 Cristian Souza de Sales

 

Universidade Federal da Bahia

RESUMO: O presente artigo busca refletir sobre os poemas de autoria de Miriam Alves e como a escrita feminina contemporânea tem buscado construir outras formas de dizer o corpo. Miriam Alves integra uma geração de escritoras negras brasileiras que têm produzido textos literários interessados em marcar olhares que registram outras configurações para o corpo negro, rompendo com um silenciamento imposto historicamente às mulheres de origem afrodescendente dentro e fora universo ficcional. São vozes literárias que investem e buscam inscrever outras formas de escrita do corpo através de versos que surgem munidos de desejo, sedução e erotismo, cujas representações diferenciam os seus discursos poéticos das imagens e dos sentidos depreciativos disseminados em inúmeras produções da literatura nacional.  Neste articulo, recorreu-se aos estudos teóricos de Dallery (1997), Souza (2005), Soares (2006), Gomes (2006), Hooks (2006), entre outros.
 
Palavras-chave: escrita feminina, literatura, corpo negro, erotismo.
 
RESUMEN: Este artículo pretende reflexionar sobre los poemas escritos por Miriam Alves y como la escritura de la mujer contemporánea ha tratado de construir otras formas de decir el cuerpo. Miriam Alves integra una generación de mujeres negras brasileñas que han producido textos literarios que registran otros ajustes, rompiendo con un silenciamiento históricamente impuesto a las mujeres de ascendencia africana, dentro y fuera del universo de la ficción. Esas voces literarias invirtien y buscan otras formas de escribir el cuerpo a través de los versos que vienen equipados con el deseo, la seducción y el erotismo, cuyas representaciones diferencian sus discursos poéticos de las imágenes y sentidos despectivos diseminados en numerosas producciones de la literatura nacional. En este artículo se utilizaron los estudios teóricos de Dallery (1997), Souza (2005), Soares (2006), Gomes (2006), Hooks (2006), entre otros.
 
Palabras clave: escritura de las mujeres, la literatura, el cuerpo negro, el erotismo.
 
Currículo da autora: Cristian Souza de Sales é doutoranda pelo Programa de Pós- Graduação em Literatura e Cultura (PPGLICULT), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Mestre pelo Programa em Estudo de Linguagens (PPGEL) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É bolsista da Fundação de Apoio e Amparo à Pesquisa da Bahia (FAPESB) e integrante do Grupo de pesquisa EtniCidades: escritoras/es e intelectuais afro-latinos(as), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Desenvolve pesquisas sobre a escrita de mulheres negras latino-americanas contemporâneas, inclusive Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, focalizando questões como escrita de si, escrita do corpo e memória.
 

INFINITAS DESCOBERTAS DO CORPO NA ESCRITA POÉTICO-ERÓTICA DE MIRIAM ALVES

  

Cristian Souza de Sales

 

Universidade Federal da Bahia

 

  1. Escrita do corpo e discurso afirmativo

 
 

 Passos ao mar

[…]

Os pés alisando a areia molhada

arrepiando o corpo a cada passo

Os passos dirigindo-se às águas salgadas

O sol a água banhado-me

[…]

Razão de sentir um único desejo

Desejo adulto forte

bom solto

quase completo

O rosto sorrindo

Esvaindo-se prazerosamente

sensação

Areia, mulher, luar, sorriso

Completando o inevitável

Natureza seguindo seu curso

Mar

Mulher cumprindo o seu curso

Vida

(ALVES, 1979, p. 37, grifos meus)

 
As metáforas, os sentidos e os significados acionados pelo poema Passos ao Mar, de autoria de Miriam Alves, colocam o corpo negro feminino em outras cenas literárias e inscreve-o em outras imagens ficcionais, distanciadas daquelas que normalmente vemos circular no imaginário coletivo, construídas sob a ótica da dóxa masculina pela literatura brasileira, no que diz respeito à existência de um corpo-objeto ou corpo-sexual 1. Segundo é possível interpretar, os versos se enunciam impregnados de desejo, sedução e erotismo, sem, no entanto, recorrer às estereotipias raciais ou sexuais mencionadas, o que evidencia uma das preocupações políticas da escrita feminina afrobrasileira contemporânea.
É uma escrita feminina que se insinua poeticamente, revertendo preconceitos, rompendo com tradições, com convenções, com modelos instituídos, problematizando projetos ideológicos falocêntricos e etnocêntricos. Na escrita de Miriam Alves, a poesia oferece um espaço único de fruição do desejo de transformação e mudança, materializando-se em cada verso repleto composto de musicalidade. Assim, a natureza contemplada, seu ritmo e seu fluxo são a fonte de inspiração do sujeito lírico: “areia molhada, luar, sol, mar, as águas salgadas”. A sua força e potência discursiva faz movimentar a vida, o corpo e o universo. Movimenta outras formas de encenação do corpo que mobilizam outras performances discursivas e configurações de si.
Neste modo de escrita feminina poético-erótica, é possível constatar que, no processo de criação e recriação de imagens, Miriam Alves resgata esse elo considerado sagrado e espiritual que serve a poetisa de inspiração: mulher, corpo e natureza. A partir desta comunhão, as sensações corpóreas se expressam nas linhas do texto em uma linguagem sinestésica e melodiosa, propagando-se de modo suave, delicado e sensual.
A escrita feminina afrobrasileira segue buscando cumprir um de seus principais rituais: desconstruir para restabelecer ao corpo o que lhe foi retirado, segregado e negado pela doxa masculina. Em Passos ao mar, os pés alisando a areia molhada, o rosto feminino sorrindo, o desejo adulto vindo forte à tona, as águas banhando o corpo, deixam aflorar a sensualidade da mulher negra. Uma sensualidade feminina restituída e reconfigurada no discurso poético de Miriam Alves, que se une a beleza da terra, da natureza, iluminada pela luz do sol e da lua, abençoada pelas águas salgadas do mar, o que marca um ciclo de abalos em supostas verdades e mobiliza um discurso de autoafirmação identitária. Aspectos que serão encontrados e reiterados em outras poesias da escritora.
 

  1. Corpo negro, erotismo e desmitificação

Nascida em São Paulo, nos finais da década de cinquenta do século passado, Miriam Alves é uma escritora que integra uma geração de intelectuais e militantes do movimento negro, os quais produzem a partir de 1970, uma literatura que aqui, considerando a efervescia das discussões, a emergência dos discursos referentes à existência de uma produção de autoria negra ou afrodescendente, quanto às definições, percursos, outras trajetórias, características e conceitos, chamaremos de afrobrasileira contemporânea2.
Integrante do Grupo Quilombhoje Literatura até 1989, autora de antologias nacionais e internacionais, traduzidas para o inglês, o espanhol e o alemão, de textos não ficcionais (ensaios, resenhas e artigos) nos quais aparecem reflexões ligadas à literatura afrobrasileira, ao fazer literário de autoria feminina negra, Miriam Alves se filia a um projeto ideológico que revela o seu comprometimento artístico e intelectual.
Quanto à circulação de seus textos, os seus poemas e contos podem ser encontrados, tanto na antologia Cadernos Negros, periódico no qual publica seus trabalhos desde a década de oitenta do século XX, assim como em publicações individuais.3 Completando quase trinta e cinco anos de trajetória intelectual, tendo publicado Momentos de busca, seu livro de estreia em 1983, e o segundo Estrelas no dedo, em 1985, Miriam Alves elege a(s) mulher(es) negra(s) como temática, personagem e assunto, em verso ou em prosa.
Trata-se de uma escrita feminina negra contemporânea, conforme são exemplares as poesias Passos ao mar, Despudor, Necessidade e Íntimo véu, que vão se inscrevendo nas bordas do vazio, das ausências, dos silêncios impostos, das frestas, buscando recompor o tempo de alguma forma ou de muitas formas, formatos, jeitos e modos de dizer. Nos textos mencionados, reaparece o desenho de um rosto, de um corpo feminino negro, cujos contornos são delineados em outras grafias, figurações e linguagem poética, marcado o pertencimento étnico do autor, nesse caso, da autora Miriam Alves.
Ocupando este outro lugar, o da busca por uma visibilidade social, pela liberdade de expressão do corpo e da voz feminina, produzindo literatura afrobrasileira, as escritoras negras contemporâneas deslocam a eloquência dramática e dolorosa de outros momentos históricos e memorias relegadas ao esquecimento, adotando um tom incisivo e autoafirmativo do discurso identitário. Suas textualidades demonstram uma preocupação em exibir a face do corpo mulher negra como símbolo de um território reconquistado por mãos calosas, exaustas, sensíveis e firmes. São mulheres que estão ansiosas para falar de e sobre si.
Nos poemas de sua autoria, Miriam Alves constitui imagens alternativas e diferenciadas para o corpo feminino negro, geradas no interior de um processo de convivência, muitas vezes, tensa e problemática com a cultura ocidental hegemónica no que concernem aos padrões estéticos instituídos. Por isso, seus textos literários  lutam para  se expressar  e expressar-se com rosto, voz, corpo, tinta e papel, deixando impressas as suas digitais, acrescentando ao universo patriarcal e hegemônico um estilo literário outro, agora o feminino negro.
Miriam Alves segue no manuseio da/com a palavra, do fio (linguagem) e do tecido (poesia), tecendo e desenhando de um modo especial os corpos negros que surgem entrelaçados a muitas histórias, memórias e identidades. A escritora traz consigo um coro de vozes que formam um rosário de contas unidas por  fios de resistência. Uma produção literária afrobrasileira que sugere caminhos de ação e insubordinação contra o racismo e o sexismo, mas que também falam/expressam o afeto, o amor, a sexualidade, com beleza, encanto, sedução e erotismo, segundo é possível interpretar em Despudor:
 
 

Arregacei as vestes

Deitei sem seu regaço

Sonhei meu nego tolo

Tolas coisas

O seu calor esquentando

O meu corpo

Nos meus ouvidos

Respiração entrecortada

O encontro a confirmação

Você em mim.

Suas mãos possuidoras

Calorosamente, despudoramente

Confirmam afirmam

AMOR

(ALVES, 1978, p.54, grifos meus)

 
Sem timidez, sem medo e sem receio, desvestindo o seu corpo, o sujeito literário expõe questões internas como a sexualidade e a sensualidade da mulher negra, explicitando o seu ponto de vista sobre estes assuntos cercados ainda de mitos e tabus na sociedade brasileira. Mitos que representaram as mulheres de origem afrodescendente como criaturas distorcidas, desumanizadas, cujos corpos diferenciados dos padrões brancos de beleza, eram e são descritos como possuidores de uma temida atividade sexual, classificados pela dóxa masculina como repulsiva, suja, obscena e apresentada como mulher ou tipo físico menos aceitável socialmente.
Em O feminino corpo da negrura, Leda Maria Martins (1996) constata que, no plano ficcional, a relação submissão e dominação das mulheres, colocaram o corpo da mulher negra em um jogo de imagens e de símbolos, sob a ótica do “alheio e do alienante”, com base na lógica racial e sexista (MARTINS, 1996, p. 112). De acordo com suas pesquisas, nas “cenas literárias nacionais”, a autora destaca que “os corpos femininos da negrura” aparecem sob as seguintes miragens da “doxa masculina” e visão falocêntrica: “(…) a mãe preta, a empregada doméstica, uma espécie de força bruta assexuada, de rosto indiferenciado, e a insinuante mulata, corpo erotizado em excesso, objeto dos desejos “ocultos” do homem branco” (MARTINS, 1996, p-112, grifos da autora).
Já Lélia Gonzalez (1983), em seu trabalho pioneiro sobre Racismo e o sexismo na cultura brasileira, denuncia como essas formas de representação das mulheres negras e de seus corpos, mencionados por Martins, determinaram os lugares ocupados pelas mulheres negras na sociedade brasileira através das relações de poder mantidas entre brancos e negros historicamente. Para Gonzalez, nessas figurações mencionadas e em muitas outras, expressam-se “os modos de rejeição contra a negra e a mulher”, assim como os aspectos “simbólicos do racismo e do sexismo”, os quais devem ser pensados em termos de contextos e lugares, funções e papeis sociais “naturalmente” atribuídos à mulher negra. (GONZALEZ, 1983, pp.226-227).
Atenta a estas reflexões, desvencilhando-se dessas codificações falocráticas, de sua opressão, de sua censura, de sua repressão e do silêncio, a escrita que chamamos de poético-erótica de Miriam Alves busca desmitificar e desconstruir a sexualidade feminina negra pela ótica do negativo, do desprezo e da aversão, utilizando a literatura afrobrasileira e seus recursos disponíveis. Através de um sonho, o olhar feminino negro nos descreve um encontro amoroso que culmina no ato sexual entre um casal, investindo em outras formas de enunciação de sua intimidade (ALVES, 1978, p.54, grifos meus). Nesse momento dos corpos em fricção, ela grafa o gozo e o desejo.
Por outro lado, em Vivendo de amor, bell hooks (2006, p. 188) afirma que muitas mulheres negras sentem que em “suas vidas existe pouco ou nenhum amor” 4. E essa é uma de “nossas verdades privadas” e inquietações que raramente são discutidas em público. Trata-se de uma realidade que é tão dolorosa para as mulheres negras, da qual dificilmente, elas falam à vontade sobre o assunto. Para intelectual afroamericana, um dos motivos que explica este nosso comportamento social é a herança deixada pelo sistema escravista e as divisões raciais estabelecidas entre os brancos e os/as afrodescendentes pelo racismo e pelo sexismo, tanto nos Estados Unidos, assim como no Brasil.5 Por isso, “nós negros (as) temos sido profundamente feridos”:
 

(…) feridos até o coração, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e, consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. […] Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. (…). Mas, a vontade de amar tem representado um ato de resistência (HOOKS, 2006, p. 189, grifos meus).

 
 
Conforme sugere a autora, a opressão patriarcal, o racismo e a violência, agindo juntos, experimentados de todas as formas por nossas ancestrais africanas, colaboraram para afetar, distorcer e “impedir”, “embora não fosse impossível”, a capacidade que as mulheres de origem afrodescendente, na condição de escravas ou libertas, tinham “de amar e de sentirem amadas”.
De acordo com hooks, foram às mulheres que sofreram castigos físicos e “testemunharam seus filhos sendo vendidos” – “seus amantes – familiares – companheiros – amigos apanhando sem razão” – sendo punidos de “forma cruel”. Acrescento ainda que, nesse contexto, elas foram expostas à violência sexual e definidas pela cultura dominante como corpo-objeto, como objetos sexuais, corpos negros anormais e sexualizados em excesso, logo, elas não poderiam ter saído dessa conjuntura, nem entender aquilo que se chama de “amor” (HOOKS, 2006, p. 188). Contudo, foram e ainda são experiências amargas e dolorosas que deixaram marcas profundas para essa geração, assim como para as gerações posteriores vide a violência física e simbólica praticada, enraizando-se nos corações das mulheres negras sob a forma de “feridas emocionais” (HOOKS, 2006: 188-189).
Segundo hooks, no atual contexto, essas “feridas emocionais” estão sendo revertidas e curadas com doses altas de autoestima e autoafirmação. A autoestima e a afirmação do lugar étnico-racial e de gênero têm possibilitado às mulheres negras cultivarem o seu “amor interior”, especialmente produzido literatura. Dessa forma, muitas escritoras negras brasileiras demonstram que têm superado através da escrita literária os complexos de inferioridade e de incapacidade de sentir e de amar incutidos pelo racismo e pelo sexismo, ao longo da história colonial, o que provocado mudanças significativas fora e dentro do universo ficcional.
Assim, entendemos que uma “sociedade racista e machista”, conforme nos faz compreender hooks, muitas mulheres de origem afrodescendente, “não recebem muito amor”, não percebem a sua presença, assim como também não nos sentem amadas. Elas não aprendem a “reconhecer que a sua vida interior também é importante”, dedicando-se exclusivamente parte de sua militância política, às lutas e às conquistas de seu grupo. (HOOKS, 2006, p.197).
Contrariando os discursos hegemônicos, é possível identificar que Miriam Alves está interessada construir formas de dizer os corpos negros, cujas imagens e sentidos têm procurado explorar esta vida interior mencionada pela pesquisadora afroamericana. Trata-se de uma escrita feminina negra feita no Brasil que tem buscado acessar um universo de emoções e sentimentos dos quais as mulheres negras estiveram privadas historicamente em função, também, dos muitos preconceitos de que foi e é vítima.
O discurso poético-erótico de Miriam Alves tem descoberto as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais ao empreender transformações significativas:
 
 

Necessidade

Os lamentos soltos

Esfarrapam minhas vestes

Descobrem os meus pensamentos

Fico só

Emano ondas de calor

Endurecidos nos medos

Amolecidos nos abraços

Prontos para amar

(ALVES, 1985, p. 43, grifos meus).

 
Por meio da voz lírica, a mulher negra revela outras necessidades que emanam de seu corpo – amar e sentir prazer – sem, no entanto, repetir ou apelar para formas depreciativas de exposição de sua intimidade.  Trata-se de uma escrita feminina negra que traz à cena uma voz poética transbordando em desejos que são transmitidos no corpo por “ondas de calor”. Um corpo de onde emergem vontades secretas que vão substituindo os “lamentos soltos”, descobrindo-se em pensamentos novos, ainda que “endurecidos” por medos e receios, parecendo que a voz poética se recorda das marcas negativas deixadas pelo passado colonial. Apesar disso, das interdições sofridas no discurso da tradição cultural hegemônica, o corpo se diz pronto, finalmente pronto para viver sensações novas.
Por esse motivo, as mulheres negras através da literatura afrobrasileira têm pensado na sexualidade como tema e pauta política, assim como em dimensões socioafetivas, não apenas como uma questão pessoal ou privada, mas, sobretudo, elas imprimem um discurso poético que trazem em sua essência, reivindicações coletivas, cujas ações individuais desejam mobilizar questões sócio-políticas que precisam ser exploradas, debatidas e problematizadas em nossa sociedade.
Os poemas de Miriam Alves apresentam modificações atravessadas por um olhar interno que vai desvelando a intimidade do corpo, expondo uma nudez quase envergonhada, apropriando-se de um repertório linguístico e semântico, cujo conteúdo e sentidos das palavras desconstroem, reconstroem, ressignificam e desvelam com muita ousadia:
 

Íntimo véu

Arregaço o ventre
corcoveio no ar
gemo
Você?
tira o meu último véu.

(ALVES, 1986, p. 60).

 
 
O corpo é a primeira forma de visibilidade humana que desperta interesses, teorias e interpretações em diferentes áreas do conhecimento. Da medicina às artes, da biologia à cultura, multiplicam-se explicações quanto aos seus aspectos anatômicos, étnicos e estéticos. No campo natural e biológico, o corpo físico é dado como uma materialidade finita. Contudo, para além de seu caráter biológico, o corpo humano sofre interferências ideológicas, culturais, religiosas, políticas, assim como de gênero, raça e classe.
Em Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas, Carmem Soares (2006, p. 3) afirma que em um sentido mais “agudo” de sua presença, como “materialidade polissêmica”, constituído por múltiplas significações, o corpo “invade lugares” exige compreensão, determina funcionamentos sociais, mas também sofre “determinações pedagógicas”. Nele, a sociedade “circunscreve o seu retrato”, impondo “limites sociais e psicológicos” a sua conduta moral.
Esta também fixa seus “sentidos e seus valores”, submetendo o corpo a normatizações, a “disciplinamentos e as coerções”, além de privilegiar um dado número de atributos físicos e padrões estéticos que o “transformam” e o definem dentro de uma escala entre o aceitável e o inaceitável. E o modo como este se move e modifica-se “revela trechos da história do contexto histórico-social a que pertence” (SOARES, 2006, p. 110).
Em uma vertente de reflexão mais restrita, Nilma Lino Gomes (2006, p. 261), em Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade negra, corroborando com as reflexões propostas por Soares, diz que para além do princípio de apreensão do corpo em sua “especificidade biológica” ou mesmo em suas funções “puramente fisiológicas”, aproximando-o das “relações de sentido e de significação”, interpretado em sua “materialidade simbólica”, o corpo está localizado em um “terreno social e subjetivamente conflitivo”.
Segundo Gomes, ao longo da história, o corpo se tornou “emblema étnico”, símbolo a ser explorado, manipulado e transformado nas “relações de poder e de dominação” para marcar “assimetrias sociais”, “classificar, hierarquizar” e estabelecer desigualdades na “distribuição de poder” entre grupos raciais distintos por causa de fenótipos como a cor da pele. Assim, a sua aparência física passou a difundir mensagens e a integrar significados ideológicos relacionados a “atributos negativos e positivos”, introjetados por regras sociais, padrões estéticos, códigos de comportamento moral, transformando-se em “objeto de reflexão e de apelo da cultura” dominante, sendo por ela, “tocado, modelado, modificado”, violentado e agredido. (GOMES, 2006, p. 261-262).
Nesse sentido, a autora passa a discorrer sobre o corpo negro, pois segundo ela, “no processo histórico, cultural e político brasileiro”, o corpo negro foi “tocado, modificado”, agredido e violentado nas relações de poder mantidas entre os brancos e os afrodescendentes. Gomes explica que o corpo negro foi usado como um dos “sinais diferenciadores” mais evidentes pelo racismo para estabelecer hierarquias entre as classes sociais no Brasil e para marcar a “referência negra” de um sujeito, e, dessa forma, justificar sua posição social subalterna (GOMES, 2006, p. 261). Sobre este, agiram duplamente a violência física e simbólica, investindo no controle de sua aparência, em seus movimentos, em seus gestos, em suas expressões, em seus desejos, em suas vontades, afetividade e sexualidade.
Na escrita do corpo feita por Miriam Alves, promovendo o processo de recriação de imagens, a voz poética “libera” o corpo feminino negro para usufruir, definitivamente de uma rede infinita de prazeres sexuais e para vivenciar as suas próprias fantasias e fetiches, desafiando, mais uma vez, a ordem social controladora sobre si. Uma escrita feminina poético-erótica promove o autoconhecimento, a retomada de consciência do próprio corpo e de sua relação com o desejo sexual, colocando a mulher negra como o sujeito na cena amorosa, e não mais como objeto, o que contribui para demolir princípios patriarcais arraigados.
Nas linhas do texto de Íntimo Véu, repletas de libido e erotismo, podemos flagrar através do uso da expressão verbal “gemer”, o momento exato da explosão do gozo e o instante da fruição do orgasmo feminino – do toque naquelas zonas do corpo que provocam a excitação sexual no sujeito poético, as chamadas zonas erógenas: “ouvidos, pernas, coxas, ventre, rosto e pele”.
Assim, os véus (as máscaras sociais alicerçadas em valores falocêntricos) que encobrem este corpo são retirados completamente para que o eu lírico possa desfrutar de certas sensações corporais com mais liberdade e vivenciar a experiência erótica extraordinária do prazer sexual sem limites ou demarcações sociais negativas. O poema torna-se o lugar da encenação e da enunciação plena do desejo, de infinitas descobertas do corpo que se revelam por meio de uma linguagem poética cheia de sedução, ritmos, ecos, sons, dissonâncias e ressonâncias.
 

  1. Outras infinitas descobertas do corpo

De acordo com Florentina Souza (2005, p.127), em Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal MNU, “o discurso, a imagem e o poder” nos textos literários afrobrasileiros de autoria feminina estão interligados e são indispensáveis para que interfiram nas “várias instâncias de prestígio e de poder”: resgatando a “autoestima da mulher negra”. A literatura afrobrasileira promove “condições políticas e sociais de respeito à sua diversidade cultural e à igualdade de direitos” quanto às questões de gênero e raça, considerados como elementos indispensáveis que resultam em um “grande esforço” para “remapear e reconfigurar o imaginário instituído”.
Redesenhados nas falas da escrita feminina afrobrasileira, rostos e corpos femininos negros surgem desejosos de existência, ambicionando outras formas de visibilidade social, segundo interpretamos nas poesias de Miriam Alves. Ambos vão sendo (re)esculpidos e redefinidos por outros contornos formados por linhas que são preenchidas por vontades, sentidos próprios, expressões, performances e movimentos, não mais sob olhares e discursos discriminatórios (eurocêntricos, etnocêntricos, falocêntricos etc ), mas como forma de representação de uma atitude de afirmação e autoafirmação da identidade do sujeito mulher negra.
Nas poesias de Miriam Alves, o corpo é compreendido em sua materialidade polissêmica que mobiliza interpretações infinitas. Apresenta-se como um corpo feminino negro que pode agora, enfim, (re)composto na visão de Miriam Alves, solto, alforriado, vivenciar a sua liberdade individual. Corpo-território onde o ser-mulher-negra pode exercer e organizar a sua liberdade de transformação.
Segundo interpretamos, trata-se de um corpo feminino negro ou corpos que produzem questionamentos e constroem respostas as suas interpelações, inquietações e frustrações. Corpos femininos negros em luta que se movimentam e se contrapõem a todas as formas de opressão. Corpos femininos negros que guardam vontades reprimidas. “Falam de amor à vida e ao outro”, mas que também refletem sobre sua sexualidade (ALVES, 2010, p. 70).
Miriam Alves (2010), em Literatura feminina negra no Brasil: pensando a sua existência, reflete sobre o papel da mulher negra enquanto escritora e intelectual e analisa a importância de sua atuação e de demais vozes femininas no movimento que ela chama de literatura de autoria negra. É preciso dar visibilidade a questões que foram relegadas ao silêncio e ao esquecimento pela sociedade brasileira, a exemplo do corpo, da afetividade e sexualidade, tratada sempre com um assunto tabu pelas próprias mulheres e escritoras.
Segundo Alves, ao assumir sua voz-mulher negra, as escritoras afrobrasileiras ampliam o significado da escrita feminina brasileira, revelando uma identidade-mulher que não é mais o “outro” dos discursos. Ao contrário, elas afirmam uma identidade-mulher-negra que revela que sempre esteve lá, no “lugar do silêncio”, permeada por singularidades e subjetividades experimentadas por elas no cotidiano em contato com a sociedade: ser mulher e negra simultaneamente (ALVES, 2010, p. 186).
De acordo com Arleen B. Dallery (1997, p. 64-65), no ensaio A Política da Escrita do Corpo: Écriture féminine, através da escrita ou reescrita do corpo, a mulher tem a possibilidade de liberá-lo do discurso normatizador, da “objetificação e da fragmentação do desejo masculino”.6  Escrever o e sobre corpo “celebra as mulheres” como sujeitos autônomos.
Logo, é preciso ressaltar que neste processo de reconstrução, a relação sexual aparece nas poesias como uma ação compartilhada que se concretiza pelo desejo dos dois, pela cumplicidade dos corpos e pelo vínculo afetivo que une o casal. Trata-se de uma visão sobre as mulheres negras que desconstrói e transgride os discursos literários nacionais sexistas, concernentes ao comportamento obsceno do corpo negro, à sua sexualidade infrene, voraz e submissa. Ao invés de estar subjugada ao desejo masculino, nas poesias Íntimo véu e Despudor, ela quer e ele consente, em um movimento de completude dos corpos. Isto permite ao eu lírico celebrar a sua autonomia na escrita literária na busca pela realização de seus desejos.
Em Crítica literária e estratégias de gênero, Vera Queiroz (1997, p.120) aponta que uma das questões centrais para a “crítica feminista” é a discussão em torno do “sujeito que lê e do sujeito que escreve”. A questão da autoria e da construção da subjetividade feminina em termos de representação literária só pode ser enfrentada se colocada em perspectiva, ou seja, a partir de uma relação dialógica, cujo “olhar está interessado” em reconhecer nos possíveis “elementos da trama”, “as condições ideológicas e sociais contemporâneas que configuram as vidas de mulheres transformadas pelo feminismo” (QUEIROZ, 1997, p. 131, grifos da autora).
A escrita literária produzida por Miriam Alves segue essa direção e assume esse posicionamento descrito por Queiroz, no que concerne, principalmente, à desconstrução das imagens literárias depreciativas elaboradas pela ótica masculina para as mulheres de origem. No traçado do verso, na comunicação em prosa, no uso do tom e do som das palavras que saem pronunciadas em voz alta em diferentes ritmos, sons e timbres, a escritora afrobrasileira tem buscado construir outras escritas do corpo, deixando impressas em suas produções as digitais femininas.
Finalmente, nas quatro poesias analisadas de Miriam Alves, é possível identificar a celebração e o arrebatamento da escritora ao falar sobre o corpo negro feminino, colocando em relevo uma linguagem poético-erótica. Os corpos negros femininos aparecem envoltos em uma atmosfera de erotismo, lirismo e muita sensualidade, valorizando suas formas e contornos, experimentando outras sensações e sentimentos em tessituras afrobrasileiras.
 
 
NOTAS
[1]Cito como exemplo os sonetos atribuídos ao escritor Gregório de Matos dedicados à mulata Jelu; as características da personagem Vidinha, no romance Memórias de um sargento de milícias, de Joaquim Manuel de Almeida (1854); as imagens construídas pelo narrador para as personagens afrodescendentes Eufêmia, Esméria e Lucinda, em As Vítimas-algozes: quadros da escravidão, de Joaquim Manuel de Macedo (1869); os poemas de Castro Alves (1868) nos quais o escritor se refere ao processo de escravização dos negros africanos em nosso país; a representação da personagem Rosa, em A escrava Isaura, romance escrito por Bernardo Guimarães (1875); a figuração das personagens Rita baiana e Bertoleza, em O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1891); o conto intitulado Negrinha, de autoria de Monteiro Lobato (1918); o poema Essa negra Fulô, de Jorge de Lima (1929); a imagem da mulher negra presente na poesia Irene, de Manuel Bandeira (1930); as personagens afrodescendentes do livro Casa-grande senzala, de Gilberto Freyre (1930); os Poemas da negra, de Mário de Andrade (1929); e, finalmente, as incontáveis personagens das obras do escritor baiano Jorge Amado, entre elas, destaco o romance Gabriela, cravo e canela (1958), entre outras (os).
2 Estou adotando o termo afrobrasileira em consonância com as reflexões propostas por Florentina Souza (2005), em Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal MNU. Acredito que a autora, além de utilizar o termo afrobrasileira para definir a literatura produzida por escritoras de origem afrodescendente, apresenta um conceito sobre esse tipo de produção textual que está em análise. Chamo atenção de que há outras denominações para a literatura de autoria negra que tem sido adotada por pesquisadores e estudiosos, a exemplo dos termos negra, afrodescendente ou negro-brasileira.
3 Os Cadernos Negros são publicados desde 1978 e estão sob a organização do grupo Quilombhoje Literatura desde 1980. Esta antologia literária se tornou o principal veículo de divulgação da literatura afrobrasileira na contemporaneidade produzida por autores, cujo posicionamento discursivo e temática abordada, tanto em verso, como em prosa, evidencia uma preocupação ou comprometimento do(a) escritor(a) com as questões ligadas ao cotidiano da população negra. Este ano os Cadernos chegam ao seu número 37, alterando poemas (números impares) e contos (número pares), completando quase quarenta anos de existência.
4bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora afro-americana, que escolheu esse apelido para assinar suas obras como uma forma de homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. Grafo o seu nome em letras minúsculas, atendendo ao pedido da própria autora que afirma o seguinte: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”.
5A autora discorre sobre a realidade das mulheres afro-americanas. Embora construa suas reflexões em um lugar geograficamente distante, procuro aqui estabelecer uma aproximação com a realidade vivenciada pelas mulheres negras brasileiras, pensando que essa situação descrita pela autora é comum a todos nós, independente do espaço onde nos localizamos
6 Publicado no livro organizado por Alison Jaggar e Susan Bordo, Gênero, Corpo e Conhecimento. Écriture  féminine trata-se de uma teoria desenvolvida no contexto do feminismo francês, enraizado em uma tradição da filosofia, da linguística e da psicanálise europeias, a qual situa o feminino como aquilo que é “reprimido, mal representado nos discursos da cultura e do pensamento ocidentais”. Com base na alteridade radical da diferença sexual da mulher.
 
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