Miriam Adelman e Renata Senna Garraffoni
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Resumo: Análise do movimento beat de mulheres e de artigos referentes ao tema neste número de Mulheres e Literatura.
Currículos:
Miriam Adelman é socióloga, escritora e tradutora. Nascida nos EUA, mora no Brasil desde 1991. Obteve seu M. Phil. em Sociologia da New York University (1991) e seu Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC (2004) com a tese A voz e a escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea (Blucher, 2008). Desde 1992 é professora de sociologia da UFPR. Atualmente leciona no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e no Programa de Estudos Literários nessa instituição.
Renata Senna Garraffoni é historiadora, formada pela Unicamp em 1997, mestra (1999) e doutora (2004) em História na mesma instituição. É professora no Departamento de História e do Programa de pós-graduação em História da UFPR. Atua na área de História Antiga (Império Romano) e trabalha em uma perspectiva interdisciplinar entre História, Literatura e Arqueologia. Sua paixão pelas múltiplas formas de escrita, tradução e literatura a atraiu ao estudo da geração beat há mais de uma década. Em 2011, como tutora do PET-História da UFPR, coordenou uma pesquisa coletiva sobre a geração beat, momento em que estabeleceu a parceria com Miriam Adelman, realizando várias atividades com alunos e alunas de graduação e pós-graduação na UFPR e com a comunidade.
FORA E DENTRO DO CIRCULO –
ESCRITORAS E O MO(VI)MENTO BEAT
Miriam Adelman e Renata Senna Garraffoni.
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Resumo: Análise do movimento beat de mulheres e de artigos referentes ao tema neste número de Mulheres e Literatura.
Nas primeiras décadas do século passado, a escritora inglesa Vírginia Woolf, preocupada com a questão da participação das mulheres na vida cultural e intelectual da modernidade europeia, lançou para seu público uma pergunta sobre os efeitos que uma exclusão histórica – a ‘falta de uma tradição’ literária na qual se inserir e se espelhar – teria tido sobre elas. Poderiam as mulheres valorizar sua própria voz, suas percepções, suas experiências? E quais as condições necessárias para que uma mulher se tornasse escritora – as simbólicas, mas também as materiais, o que neste caso quer dizer as básicas, como ter ‘um teto todo seu’, dinheiro para se alimentar e para viabilizar seu uso do tempo para uma finalidade artística ou literária? Para Woolf, numa incisiva discussão que mais tarde seria retomada por outra pioneira, Simone de Beauvoir, a tradição literária e filosófica ocidental teria se constituído claramente como espaço e província masculinos, funcionando como aparato de poder que atribuía capacidades e privilégios: o poder de criar, de incitar e permitir a fala, de sustentar ou de silenciar discursos. Uma visão, afinal, que hoje poderíamos chamar de ‘generizada’, sobre cultura, discurso e poder, e que de certa forma antecipa os muito acolhidos insights de um homem da segunda parte do século, o filósofo francês Michel Foucault.
Três décadas mais tarde, do outro lado do Atlântico, um grupo de mulheres que frequentava a ‘boemia’ e os espaços de uma nova vanguarda cultural norte-americana teve que enfrentar a ação destes mecanismos de exclusão sobre suas próprias vidas e opções de inserção social. Conforme elas mesmas chegaram a explicitar, estas jovens, nascidas na década de 1930, tinham aspirações que as colocavam numa batalha cotidiana com os costumes e a moral do seu tempo, aspirações que constantemente ameaçavam ser frustradas. E o custo existencial e emocional seria altíssimo. Espelhar-se na vida das suas mães ou curvar-se diante das expectativas hegemônicas de uma época em que um ‘discurso oficial’ tentasse restituir e reforçar a ideologia vitoriana da domesticidade feminina não lhes era concebível, e resistir, uma necessidade que vinha de algum lugar muito profundo dentro de si; o caminho à construção de outra forma de viver, ainda um incógnito a enfrentar, com ousadia, inteligência, desapego.
Os avanços das mulheres no mundo do trabalho, na política e na educação em décadas anteriores (cf. Thébaud, 1995), não podiam ser deletadas da história. Mas o clima do pós-guerra, que trouxe a guerra fria, o macarthismo e o engodo de uma sociedade que oferecia uma pletora de bens e confortos a camadas amplas da população, em proporção e extensão nunca antes vistas, afincou na sociedade um renovado conservadorismo e disseminou intensas tentativas de convencer as mulheres a aceitar as restrições e convenções de uma época passada. Ou de ensiná-las a desejar uma vida ‘segura e pacata’, trocando os desafios do mundo público pela proteção de um marido no padrão do ‘bom provedor’ – e de um Estado que garantisse a riqueza e hegemonia americana no mundo. Às mulheres, e em particular às da classe média branca norte-americana, o papel de ‘dona de casa’ se impunha com mais força normativa do que antes, encontrando poderosos aliados nos meios de comunicação que ganhavam um público maior do que nunca. Por meio da televisão, difundiam-se os ideais do governo e de uma nova ‘sociedade do consumo’ diretamente para o interior das casas das pessoas. Contudo, o mal-estar provocado por uma subordinação socialmente imposta, e igualmente, autoimposta, também foi se difundindo, ficando famosamente registrado e analisado um pouco mais tarde por Betty Friedan no seu livro The Feminine Mystique, publicado originalmente em 1963. Era isto o que de alguma ou outra forma pairava sobre a vida das jovens que viriam a frequentar o círculo dos rebeldes culturais como os do movimento da geração beat.
De fato, havia dissidência de muitas formas sob a superfície pacificada do ‘sonho americano’ do final dos anos 1940 e os anos 1950 nos EUA e o mundo da arte e das vanguardas intelectuais e culturais era um dos seus ‘lugares de produção’ mais significativos. Escritores, cineastas e mesmo alguns cientistas sociais criticavam o ‘conformismo das massas’ ou ironizavam as estreiteza das pessoas ‘enquadradas’ (Adelman, 2008); finalmente, não seria tão difícil que alguns homens que adotassem uma postura de rebeldes pudessem adquirir em torno de si uma aura heroica, que embora chocasse alguns, fascinasse outros, mesmo porque era possível construir laços ou uma linhagem entre tal rebeldia e alguns dos mitos mais caros à sociedade norte-americana, de free thinkers e libertários[1].
Contudo, tal tipo de romantismo não funcionaria da mesma forma para as mulheres, sobre as quais o peso da moral e das normas de gênero agia de outra maneira. Os ‘homens rebeldes’ reproduziam, em grande parte, atitudes de controle e desqualificação das mulheres parecidas com as propagadas pela cultura hegemônica, preferindo tê-las como musas, auxiliares e viabilizadoras do que como verdadeiras ‘companheiras de estrada’.
Ou, pelo menos, são esses sentimentos de frustração que reverberam nos escritos das mulheres que frequentavam o círculo beat. Joyce Johnson, que foi a primeira delas a chegar a publicar um romance (Come and Join the Dance – “Venha dançar conosco” – publicado pela primeira vez em 1961), escreveu, mais tarde um dos mais interessantes livros de memória da época, cujo próprio título, Minor Characters [Personagens Menores] resume tudo: as complexas dinâmicas que ela explora ao longo do livro, que produzem e reproduzem a relegação das mulheres a uma situação de coadjuvantes, enraizada na cultura e convenções de um ‘papel social’. A falta de outros modelos de mulher, de exemplos ou mesmo de (re)conhecimento de uma tradição, bem à maneira que o colocava Vírginia Woolf, é apontada por ela como ponto de partida de um difícil caminho à descoberta de si:
As que entre nós empreendíamos o voo para fora não achávamos modelos utilizáveis para aquilo que fazíamos. Não queríamos ser nossas mães ou professoras solteironas ou mulheres profissionais duronas como elas eram retratadas na tela. E ninguém tinha nos ensinado como ser escritoras ou artistas. Sabíamos um pouco sobre Virginia Woolf mas não a achávamos relevante. Os privilégios que ela tinha nos desencorajavam, nascida como era num meio literário, e de conexões e riqueza. O “teto todo seu” do qual ela escrevia pressuponha que seu habitante tivesse uma pequena renda familiar. Com nossos cursos superiores, a gente poderia datilografar até fazer uns $50 dólares por semana – apenas o suficiente para comer e pagar o aluguel para um pequeno apartamento em Greenwich Village ou North Beach, sobrando pouco para sapatos ou pagar a conta de luz. Nada sabíamos sobre a romancista Jean Rhys, quem numa época anterior também tinha fugido da respeitabilidade, boiando perigosamente na Boemia Parisiense da década de 1920. Talvez tivéssemos nos identificado com sua falta de confiança naquilo que escrevia ou tomássemos como uma alerta a passividade corrosiva das suas relações com os homens. Mesmo assim, nenhuma alerta teria nos parado, com toda essa fome que tínhamos de abraçar a vida e tudo que fazia parte da realidade. A própria dureza da vida era algo para saborear (Johnson, 1983: xxxii nossa tradução).
Vinha ao encontro das atitudes dos homens jovens com suas colegas e namoradas, quem a Joyce, aliás, não culpa. Muito pelo contrário, o que ela aponta, em primeiro lugar – e que de certa forma configura o grande tema de toda sua produção literária posterior, tratava-se de um complexo jogo de subjetividades, no qual tanto mulheres quanto homens ficavam presas e presos aos padrões culturais que os e as moldaram. E rompê-los era difícil, seria esse o desafio que daria sentido à época, à vida:
Naturalmente, nos apaixonávamos por homens que eram rebeldes. Caíamos muito rapidamente, acreditando que nos levariam junto nas suas viagens e aventuras. Não esperávamos ser rebeldes por conta própria; não contávamos com a solidão. Uma vez que encontrávamos nossos parceiros masculinos, uma fé cega nos impedia de desafiar as antigas regras do masculino e feminino. Éramos muito jovens e tínhamos dado um passo maior do que a perna. Mas sabíamos que tínhamos feito algo que exigia coragem, algo quase inédito. Éramos as que ousaram sair de casa (Johnson, 1983: xxxiii: nossa tradução).
Não foram poucas as mulheres que tiveram uma passagem pelos círculos literários beat e o mundo boêmia ou no meio ‘alternativo’, com epicentros em Nova Iorque e na Califórnia. Inclusive discute-se, na literatura crítica (Johnson & Grace, 2002; Knight, 1996) em que medida que elas devem ser consideradas realmente como ‘beat’. Eis uma questão interessante que não deixa de nos interessar, afinal, por meio dela, pode ser descoberto conexões e alianças, história e genealogias, inovação estética e assim por diante. Não podemos, neste pequeno espaço que nos cabe aqui, adentrar muito no assunto, mas devemos levantar a questão do que, afinal definiria a identidade ‘beat’. Múltiplos critérios são possíveis, por exemplo, um estilo literário comum e semelhanças estéticas, ou o pertencimento a um grupo de avant garde cultural com uma identidade particular e que cultivava relações de amizade, amor, colaboração concreta (performances, leituras, publicações), convívio? Este último elemento é enfatizado por Grace & Johnson (2002), na sua análise das mulheres no beat: face à heterogeneidade do movimento e a dificuldade de definir critérios de ‘pertencimento’, elas ressaltam os de ‘camaraderie and community connection to identify artists’ affiliations’ [camaradagem e conexão com uma comunidade para identificar as afiliações das artistas] (p. 3-4), sugerindo também a vantagem de critérios que abrem o círculo em lugar de restringí-lo.2
Ainda mais, como Johnson & Grace também comentam, a tentativa de definir ‘quem é beat’ que tanto gerou e continua gerando controvérsia, chega até a concentrar energias analíticas que poderiam ser melhor empregadas na leitura e apreciação crítica da obra de mulheres que algo teriam a ver com o tempo e o espaço da beat (Johnson & Grace: 11). Johnson & Grace afirmam “… women beats were there, and they gave beat literature a transformative character, rending speech from their socially mandated silence, presence from their invisibility of gender, and literary works from their subordinated status as literature’s objects” [(…) as mulheres beats estavam lá, e deram à literatura beat um caráter transformativo, extraindo a fala do seu socialmente imposto silêncio, presença da sua invisibilidade de gênero, e obra literária de seu status subordinado como objetos da literatura] (p. 7). A riqueza literária e existencial da poesia de Jones e Di Prima, ou o que se apreende sobre um momento histórico, e sobre as lutas que continuam, das memórias de Jones e Johnson, junto com o puro prazer da construção de belos e comoventes textos de prosa e poesia que descobrimos nos textos de todas elas – incluindo aqui escritoras como também Leonor Kandel, Bonnie Bremser e Joanne Kyger – merecem não só a nossa atenção atual senão uma inserção mais plena nos ‘cânones’ que tantas vezes só serviram para propagar exclusões baseadas em gênero.
A presença vigorosa das figuras femininas centrais do beat como produtoras de discursos literários se deu também por meio de décadas de trabalho e evolução. Uma boa parte delas sobreviveu aos homens (amigos, companheiros, maridos, parceiros de trabalho, muitas vezes levados por uma morte precoce vinculados à propensão dos beats, e ainda mais os homens beat, de fazer aquilo tão poeticamente evocado na expressão de língua inglesa, burning your candle at both ends e várias das mais importantes continuam vivas até hoje (Joyce Johnson, Hettie Jones, Bonnie Bremser, Joanne Kyger, Diane di Prima; também Diane Wakoski, a prolífica poeta californiana segundo a Poetry Foundation, autora de mais de 60 livros[2] – e que é muitas vezes
associada ao grupo, sem ter sido do círculo mais íntimo). O trabalho literário delas continuou desdobrando-se, beneficiando-se também do clima cada vez mais favorável à criação das mulheres (fenômeno claramente vinculado à revolução feminista na academia que se deu em estreita relação com a segunda onda e seus posteriores desdobramentos, inclusive os que reivindicavam vozes femininas diversificadas, a escrita de mulheres de cor, a literatura lésbica e queer etc). No caso de Joyce Johnson, a temática histórica, geracional e cultural da geração beat continuou sendo seu foco, o que percebemos claramente nos livros de diversos gêneros publicados por ela (entres eles, uma biografia de Kerouac e as cartas que ela trocou com ele entre 1957 e 1958, dois livros de memórias – Missing Men & Minor Characters e vários romances). Bonnie (Brenda Frazer) publicou um livro de memórias (2007; 1ª ed.1969) que tem sido comparado estilisticamente com On the Road de Kerouac, embora não tenhamos registro de qualquer publicação posterior a este surpreendente relato da sua experiência no México (país que figurou como tropo de um ‘outro lugar’ nos relatos de viagens de vários escritores beats; cf. Adelman p. 49). As várias coleções de poesia (1998, 2003, 2007) que Hettie Jones publicou muitos anos depois de sua convivência íntima com o grupo beat refletem aquele momento, mas também uma longa vida na qual o compromisso político e existencial com um mundo conturbado e profundamente desigual tematizando, entre outras coisas, a solidariedade possível entre as mulheres.
Acreditamos, então, que muitas das escritoras passaram suave, quase espontaneamente de sua posição como ‘protofeministas’ beat (onde eram também herdeiras de uma primeira onda de fortes lutas pelos direitos das mulheres) a uma nova situação, de participantes das ondas que se seguiram: segunda, terceira. Nos parece fundamental ressaltar aqui, antes de mais nada, que eram mulheres que ousaram viver e participar e escrever num momento muito pouco hospitaleiro para a produção e voz das mulheres; elas persistiram, e mais do que teimar com questões identitárias – no sentido de reivindicar para sim um rótulo, como beats ou mesmo como
‘feministas’[3], juntaram-se com outras mulheres de outras gerações na construção dessa
elusiva ‘tradição’ (por assim voltar à preocupação de Woolf) de escritoras, que hoje podemos entender como algo que viabiliza e convida, como história e presente. Receberem e promoveram influencias filosóficas diversas, como o budismo na obra de Kyger, a espiritualidade New Age que celebra arquétipos do feminino no poema épico de di Prima, Loba, ou o compromisso político de Jones, que ela reafirma ao dar oficinas de escrita criativa para detentas nova-iorquinas que tampouco hesita a evocar na poesia que ela escreve. Figuram entre as pioneiras da segunda metade do século XX, e as lutas que condicionaram e caracterizaram sua juventude se transformaram, em vários casos, em carreiras literárias parecidas com mulheres das gerações que as seguiram, para as quais elas também com certeza contribuíram, abrindo caminhos e legitimando o que a Woolf uma vez chamou de feminine sentences e se tornou, na segunda metade do século, um amplo campo de criação literária onde mulheres diversas encontravam voz e vozes.
É também neste sentido que nosso esforço de trazer sua história e sua produção literária para um ‘presente brasileiro’ adquire importância enorme. A partir de uma experiência acadêmica, uma primeira disciplina sobre a geração beat ministrada por nós duas para alunos e alunas dos cursos de graduação em História e Ciências Sociais da UFPR e, posteriormente, uma disciplina exclusivamente focada nas ‘esquecidas’ escritoras por Miriam, no curso de pós-graduação em Letras da UFPR, com uma ampla bibliografia de obras delas em língua inglesa, a urgência deste novo trabalho de pesquisa e debate a veio à tona. Assim, buscando divulgar parte desse trabalho complexo, em abril de 2015 organizamos uma leitura e discussão de seus poemas e escritos em um café da cidade de Curitiba uma primeira versão de parte do material que segue no dossiê. Com as traduções encaminhadas e discutidas, percebemos que tínhamos em mãos um rico material para compartilhar, dando origem ao dossiê que se segue, que, é importante assinalar, configura a fruição de esforços crítico-analíticos de algumas das alunas que cursaram a disciplina de pós-graduação.
As escritoras escolhidas para o dossiê foram Joyce Johnson, Diane di Prima, Hettie Jones e Elise Cowen e os artigos a seu respeito exploram uma série de temas que entrecruzam as experiências de vida dessas singulares mulheres: debatem a questão do cânone, analisam a circulação das mulheres nos grupos boêmios, suas vicissitudes e suas conquistas, ampliam os conflitos sociais do período com seus olhares aguçados sobre o contexto histórico em que viveram e, por fim, exploram suas formas de viver e suas múltiplas formas de constituição de subjetividades libertárias, em especial suas leituras e trânsito entre passado e presente.
O primeiro artigo, de Joana Darc Pupo, abre as discussões apontadas a partir de considerações sobre biografia, autobiografia e escrita feminina. A partir da obra Missing Men, de Joyce Johnson, lançada recentemente e ainda sem tradução para o português, como muito dos textos que fazem parte desse dossiê, Joana Pupo explora a narrativa de Johnson e o significado mais amplo da escrita memorialista de várias mulheres que circularam entre os poetas da geração beat. A maneira como Johnson apresenta seus desafios com o mundo que a cercava e sua relação com os homens é instigante, pois com suas idas e vindas entre passado e presente reconstitui, sob um olhar feminista, fios de sua vida e nos inspira a pensar sobre as nossas. O que Pupo busca discutir é, portanto, exatamente essa linha tênue entre passado, presente e subjetividade, como narrar suas experiências de vida em um outro contexto e época pode ser um poético encontro consigo mesma e uma reflexão sobre os papéis femininos na modernidade.
Emanuela Carla Siqueira escreve o segundo artigo do dossiê e discute o pouco que restou da obra de Elise Cowen. Como Elise cometeu suicídio aos vinte e oito anos, em 1963, e a família destruiu todos os seus cadernos de escrita, o que restou contém poemas de seus últimos anos de vida. Explorando os laços afetivos a partir das memórias de suas amigas escritoras, como Joyce Johnson, por exemplo, Emanuela Siqueira apresenta ao leitor e à leitora uma reconstituição de sua vida e seus escritos, traduzindo alguns de seus poemas. Mais do que expressar somente os momentos de dor antes de sua partida, os poemas de Elise falam sobre vida e, de certa forma, sobre as maneiras de ser mulher e suas lutas por afirmar sua paixão pela escrita.
A seguir o artigo de Isaura Maria Rigitano de Limas, retoma a escrita memorialista, mas explora as narrativas de Diane di Prima. Essa, talvez, seja a escritora dessa geração mais conhecida do público brasileiro, pois sua obra Memoir of a Beatnik (Memórias de uma Beatnik) foi traduzida ao português. Isaura Limas retoma essa questão e vai além, trazendo aspectos de sua vida, seus embates políticos anarquistas, presença forte em seus poemas de juventude, assim como suas reflexões sobre as múltiplas formas de ser mulher. A radicalidade política de seu pensamento atrelada as suas percepções místicas e religiosa de vida, ora pelo budismo, ora pelas tradições indígenas norte-americanas, nos proporciona uma narrativa variada, em prosa ou poesia, trabalhando literariamente temas que ainda hoje são polêmicos como maternidade, escolhas, sexo, prazer, liberdade. Os textos variados, com traduções bastante cuidadosas de Isaura de Limas, nos trazem uma Diane inquieta, ativista e sonhadora que seguramente surpreenderá a todos que a conhecem somente pelas suas Memórias.
Encerrando o dossiê, o artigo de Priscila Finger do Prado traz uma contribuição bastante original que entrecruza os temas trabalhados anteriormente. A partir da obra Drive, de Hettie Jones, publicado mais tardiamente, e reflexões de teóricas feministas e da escrita de mulheres, Priscila Prado discorre sobre a relação mulher e o volante. Tema do universo masculino e ícone da rebeldia na estrada, o volante, ressignificado por Hettie Jones e discutido por Prado, nos proporciona insights sobre a relação das mulheres com a vida e a escrita. Como discutido por Prado, a metáfora do volante é poderosa, pois permite Hettie – e por extensão as mulheres – a assumir o próprio destino, construir sua própria história de vida no contexto conflituoso do American way of life, quando os papéis de gênero estavam tão bem definidos. Dirigir não seria, portanto, somente uma ação emancipadora masculina, mas também de empoderamento feminino e uma possibilidade de subversão dos papéis de gênero.
O presente dossiê se deteve em apenas quatro escritoras, mas é um começo de uma viagem nos seus trabalhos. Nosso esforço em trazer à tona está relacionado a potência criadora dessas mulheres. Cada autora a seu modo questionou valores e buscou suas formas estéticas de expressão, conviveu com homens que não aceitaram muitas normas impostas, algumas nos deixaram, outras seguiram seus caminhos. O que chama a atenção em suas obras é, sem dúvida, a firmeza na realização de suas convicções e paixão pela escrita: lendo seus textos, percebendo suas dificuldades e conquistas, sente-se ainda hoje latente a força de suas formas de viver e sentir. Algumas delas receberam prêmios, tiveram suas obras publicadas e comentadas, mesmo mais tardiamente, e seguem nos inspirando ainda hoje. Cada artigo desse dossiê busca um diálogo com o passado dos anos de 1950 e 1960, auge da geração beat, os desdobramentos desses encontros e desencontros de Joyce, Diane, Elise e Hettie, analisa essas vozes femininas, inserindo-as no Brasil do século XXI e nos desafia! Sim, desafia a escrever, a ler, a pensar, a não se curvar diante das normas e do conservadorismo, seja eles qual forem e quais formas assumam em nossa sociedade. Uma boa leitura a todos/as!
Referências
Adelman, M. (2008). A voz e a escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. São Paulo: Blucher.
Bremser, B. (2007) Troia: Mexican Memories. Champaign/London: Dalkey Archive Press.
Thebaud, Françoise (Org.). (1995). História das mulheres no Ocidente. (Duby, G. e Perrot, M. org geral). Lisboa: Afrontamento, 1995. v. 5.
Ehrenreich, B. (1983). The Hearts of Men: American Dreams and The Flight from Commitment. New York: Anchor Books.
Johnson, R. C. & Grace, N. M. (2002). Girls who Wore Black: Women Writing the Beat Generation. New Brunswick/London: Rutgers University Press.
Johnson, J. (2014). Come and Join the Dance. New York: Open Road Integrated Media.
Johnson, J. (2014). Bad Connections. New York: Open Road Integrated Media.
Johnson, J. (2012). The Voice is All: the Lonely Victory of Jack Kerouac. New York: Viking.
Johnson, J. (2004). Missing Men: a Memoir. New York: Penguin.
Johnson, J. (1989). In the Night Café. New York: E.P. Dutton.
Johnson, J. (1983). Minor Characters: a Young Woman’s Coming-of-Age in the Orbit of Jack Kerouac. New York: Houghton Miflin.
Jones, H. (1990). How I Became Hettie Jones. New York: Grove Press.
Jones, H. (1998). Drive. Brooklyn: Hanging Loose Press.
Jones, H. (2003). All Told. Brooklyn: Hanging Loose Press
Jones, H. (2007). Doing 70. Brooklyn: Hanging Loose Press.
Kerouac, J. & Johnson, J. (2000) Door Wide Open: A Beat Love Affair in Letters. New York: Penguin.
Knight, B. (1996). Women of the Beat Generation: the Writers, Artists and Muses at the Heart of a Revolution. Berkeley: Conari Press.
Melnick, Lynn (2015). “I Would Have to Wake Up Young Again: On “Bay of Angels,” Personal Mythology, and the Enduring Badassery of Diane Wakoski” Los Angeles Review of Books. March 10th.
https://lareviewofbooks.org/essay/wake-young-bay-angels-personal-mythology-enduring-badassery-diane-wakoski.
NOTAS AO TEXTO
[1] Cf Barbara Ehrenreich (1983) ao respeito. Para ela , os homens Beat percebiam que havia nesses conteúdos historicamente construídos elementos que poderiam ser aproveitados e explorados, na elaboração de poderosas ‘narrativas de sí’.
[2] http://www.poetryfoundation.org/bio/diane-wakoski
[3] A poeta e crítica norte-americana Lynn Melnick oferece uma discussão interessante sobre a relação explícita e implícita de Wakoski com o feminismo, examinando tanto o contéudo da poesia dela, suas afirmações ao público leitor e aos críticos, e os paradoxos da recepção da obra dela ao longo de sua carreira, particularmente por parte de críticos literários de sexo masculino (Melnick, 2015)