Resenha: Florência diante de Deus: Eliezer Moreira – Luiza Lobo


RESENHA

Eliezer Moreira, Florência diante de Deus. São Paulo, Patuá, 2015. 215 p. ISBN 978-85-8297-164-2.
Luiza Lobo
Rio, março de 2015
O original livro de Eliezer Moreira, Florência diante de Deus (2015), que é o seu segundo, chama a atenção pelo título “religioso” nesses tempos pós-modernos em que tanta gente procura em seitas e cultos uma resposta linear e harmônica para o desconcerto do mundo atual. No entanto, o aspecto religioso é por ele tratado de forma agnóstica, não só na voz do narrador externo quanto na perspectiva da própria personagem, Florência. Há um anjo no enredo, já anunciado logo no primeiro capítulo, mas a ênfase na novela – não ousaria chamá-la de romance, direi por que depois – está mais na relação entre as personagens e o eco de suas ações e da biografia da protagonista na pequena cidade. Apesar de Jair Ferreira dos Santos, em seu percuciente posfácio, escrever que o enredo poderia “acontecer em qualquer época e lugar”, inclino-me a imaginar o livro transcorrendo na cidade de Juazeiro da Bahia ou em Januária (citada na epígrafe), no médio São Francisco, cidade de Minas a apenas 150 km da Cocos natal de Eliezer. Referências ao rio São Francisco permeiam o texto, a epígrafe e a própria estrutura do livro.
Seja como for, creio que o arcabouço da literatura do Nordeste, com seus cordelistas e cantadores, tão presentes até recentemente, até o advento da televisão, está no cerne da concepção da obra. O enredo é linear, como uma forma simples – segundo nos foi apresentada por André Jolles em seu famoso livro As formas simples. Isso não vem em demérito do livro, mas sim como característica de seu enredo: inicialmente nos é apresentado um problema. Haverá um anjo ou Deus que possa intervir diretamente no desfecho da vida humana? Em seguida este mesmo tema ou hipótese é perseguido página a página, até o final, sem intervenção de outros fatores a não ser a atuação das personagens da cidadezinha onde se dá a trama. Já um romance teria de introduzir diferentes núcleos e intrigas, peripécias, clímax, novos temas e lugares, incursões até mesmo no passado, através da memória, possivelmente maior impregnação do imaginário, até chegar a um desfecho por vezes desconectado com as páginas iniciais. O romance corresponde, até certo ponto, ao que chamamos de novela, nos seriados de televisão: um encadeado de novellas, como a de Boccaccio, interligadas pelas personagens em comum. Tanto é assim que a forma do romance não está incluída no livro clássico de Jolles, já que o romance é uma forma complexa. Desse modo, eu chamaria Florência diante de Deus de novela, não a da televisão, mas uma novella enquanto forma oriunda do período medieval-renascentista, em que um jongleur, jogral ou menestrel relata histórias extraordinárias nos castelos ou nas feiras populares. Exatamente o que foi transplantado para o Nordeste do Brasil, entre cantadores e contadores de histórias, e que está na raiz da composição que Eliezer Moreira empregou aqui. Ao mesmo tempo, a história de Florência tem tudo a ver com a fábula, tão próxima da literatura oral, uma das principais formas simples estudadas por Jolles.
Oriundo de Cocos, na Bahia, não é à toa que Eliezer mostra sua admiração por Jorge Amado logo na epígrafe: “A Jorge Amado, grande e sempre vivo”, e que no posfácio Jair Ferreira dos Santos mencione A morte e a morte de Quincas Berro d’Água como fonte ou inspiração para a escrita deste livro. A tradição oral está presente em Jorge Amado, dadas as suas vivências desde a infância numa cultura oral tão forte quanto a que existe na Bahia, pois nasceu numa fazenda em Ferradas, distrito de Itabuna. É preciso notar que o enredo de Quincas (1959), também uma novela, se dá inteiramente post-mortem, como no caso do genial romance de Machado de Assis Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Já em Florência o enredo é prévio à morte, e nada sabemos sobre o seu desenlace no além.
Roteirista e especialista em cinema – trabalha atualmente na Unitevê, canal universitário da Universidade Federal Fluminense – Eliezer não se mostrou isento da técnica oral, performativa e teatral do in media res que constitui a base do gênero dramático, apresentando sua história no presente do indicativo, cena a cena. Nada mais condizente com a tradição literária oriunda dessa literatura popular nordestina. Impossível criar histórias ligadas ao passado se a memória oral não pode acumular tantos fatos quanto o texto escrito possibilita; e daí a ênfase no dramático e na representação do atual, do presencial e do fato presente.
Eliezer Moreira não está sozinho nesta rica tradição oriunda da literatura oral brasileira, que data pelo menos da tradição sertaneja do Romantismo, com José de Alencar, Bernardo de Guimarães, Simões Lopes Neto e, no romance de 1930, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, e, posteriormente, Jorge Amado e até mesmo, em alguns aspectos, João Guimarães Rosa.  Tradição reforçada pelas obras de Câmara Cascudo e Mário de Andrade e que se tornou um pouco abandonada nos nossos tempos urbanos e pós-modernos, em que o interior agrícola do país foi abandonado e a população se acumula em aglomerados citadinos e megalópoles centopeicas, com forte reflexo na literatura, onde já não entram cavalos e carroças, mas sim automóveis, motocicletas e aviões. A novela dialoga mais com o público mais velho e menos ligado às maquininhas da vida urbana, tais como o celular e o computador, como bem lembra o posfaciador, que fala em arcaísmos e eruditismos do texto, isso porque o interior do Nordeste – como também o de Minas Gerais, Goiás e dos dois Matos Grossos – guarda ainda algumas estruturas frasais e modos de dizer de antanho.
Enfim, todo esse comentário permite igualmente traçar uma correspondência com Gabriel García Márquez e sua literatura do realismo mágico, como bem lembrou Jair Ferreira dos Santos. A obra se liga, assim, à tradição latino-americana, não na linha de Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier e Nélida Piñon, que elaboraram extremamente sua linguagem, ou como Guimarães Rosa, mas na forma essencialmente típica de García Márquez que sempre foi fiel às histórias que ouvia contarem na infância ao longo de toda a carreira, mantendo-as na sua autêntica linearidade, como um verdadeiro contador de histórias.
Parabéns a Eliezer, por este segundo livro, que continua o sucesso de A Pasmaceira (Rio de Janeiro, Record, 1990), ganhador do prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores.