Autor: Gilka Machado
Título: ESTADOS DA ALMA
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 18/05/2005
Possa eu, da phrase nos absonos sons,
em versos minuciosos ou succintos,
expressar-me, dizer dos meus instinctos,
sejam elles, embora, máos ou bons.
Quero me vêr no verso, intimamente,
em sensações de gôso ou de pezar,
pois, occultar aqui’lo que se sente,
é o proprio sentimento condemnar.
Que do meu sonho o bronco véo se esgarce
e mostre núa, totalmente núa,
na plena graça da simpleza sua,
minha Emoção, sem peias, sem disfarce.
Quero a arte livre em sua contextura,
que na arte, embora peccadora, a Idéa,
deve julgada ser como Phrinéa:
– na pureza triumphal da formosura.
Gelar minha alma de paixões accêsa
porque? si desta forma ao Mundo vim;
si adoro filialmente a Natureza
e a Natureza é que me fez assim.
Meu ser interno, tumultuoso, vario,
– máo grado o parvo olhar profanador –
no livro exponho como num mostruario:
sempre a verdade é digna de louvor.
Fiquem no verso, pois, eternamente,
as minhas sensações gravadas, vivas,
nas longas crises, nas alternativas
desta minha alma doente.
Relatando o pezar, relatando o prazer,
través a agitação, través a calma,
a estrophe deve tão somente ser
o diagnostico da alma.
Eu quizera viver
tal qual os passarinhos:
cantando á beira dos caminhos,
cantando ao Sol, cantando aos luares,
cantando de pezar, cantando de prazer,
sem que ninguem ligasse aos meus cantares.
Eu quizera viver em plenos ares,
numa suspensa, etherea trajectoria,
numa existencia quasi incorporea;
viver sem rumo, procurar guarida
á noute, para, em somno, o corpo descançar,
viver em vôos, de corrida,
roçar, apenas, pela Vida.
Eu quizera viver sem leis e sem senhor,
tão sómente sujeita ás leis da Natureza,
tão sómente sujeita aos caprichos do Amôr.
Eu quizera vier na selva accêsa
pelo fulgôr solar,
o convivio feliz das mais aves gosando,
viver em bando,
a voar… a voar…
Eu quizera viver cantando como as aves,
em vez de fazer versos,
sem poderem, assim, os humanos perversos
interpretar
perfidamente o meu cantar.
E eu cantaria, então, a liberdade do ar,
e cantaria o som, a côr, o arôma,
a luz que morre, a luz que assoma,
cantaria, de maneira incomprehendida,
toda a belleza indefinida
que a Natureza expõe e a gosar me convida.
E eu pudera expressar,
em sons lêdos ou graves,
esses prazeres suaves
do tacto;
e eu – então canora artista –
expandiria as emoções da minha vista,
e todo o goso, lubrico e insensato,
do odôr, que embriaga o olfacto;
e eu poderia externar,
em sons alegres ou doridos,
todas as impressões dos meus ouvidos,
toda a delicia do meu paladar.
Eu quizera viver dentro da natureza;
suffoca-me a estreiteza
desta vida social a que me sinto preza.
Deante
de uma paisagem verdejante,
deante do céo, deante do mar,
esta minha tristeza,
por momentos, se finda,
e desejo viver, soffrer a vida ainda,
e fico a meditar:
como os homens são máos e como a Terra é linda!
Certo, não fôra assim tão triste a vida,
si, das aves seguindo o exemplo encantador,
a humanidade, livremente unida,
gosasse a natureza, a liberdade e o amôr.
Eu quizera viver
sem a forma possuir do humano ser;
viver, como os passarinhos,
uma existencia toda de carinhos,
de delicias sem par…
Morte, que és hoje todo meu prazer,
fôras, então, meu unico pezar!
Eu quizera viver a voar, a voar
até sentir as azas mollentadas,
voar ao cahir do Sol e ao vir das Alvoradas,
voar mais, ainda mais
pairar bem longe das creaturas,
nas serenissimas alturas
celestiaes…
Voar mais, ainda mais
(o vôo me seduz!),
voar, até, finalmente,
num dia muito azul e muito ardente,
– alma – pairar do espaço a flux,
– materia – despenhar-me, de repente,
sobre a terra absorvente,
morta, morta de luz!
Eu e tu, ante a noute e o amplo desdobramento
do mar fero, a, estourar de encontro á rocha nua.
Um symbolo descubro aqui, neste momento;
esta rocha e este mar… a minha vide e a tua…
O mar vem… o mar vae…. nelle ha o gesto violento
de quem maltrata e, após, se arrepende e recúa…
Como eu comprehendo bem da rocha o sentimento!
são bem eguaes, por certo, a minha magua, e a sua!
Symbolisa este quadro a nossa propria vida:
tu és esse mar bravio, inconstante e inclemente,
com carinhos de amante e furias de demente;
eu sou a dôr parada, a dôr empedernida,
eu sou aquella rocha encravada na areia,
alheia ao mar que a punge, ao mar que a afaga alheia…
Bem sei porque me sinto creança,
quando uma rêde me embalança!
– é que ha, na rêde um rythmo egual
ao da canção lenta e macia,
com que eu, em creança, adormecia
no fôfo seio maternal.
A minha rêde é mansa, mansa,
de me agradar nunca se cança,
é a minha amiga mais perfeita;
como ao meu gosto se conforma,
e do meu corpo toma a forma,
e toda a mim se torna affeita!
A minha rêde no ar se lança,
como num mar todo bonança:
nella navego em ondas de ar,
para um paiz que é o da Chimera,
de onde me acena alguem e espera
alguem que eu vivo a desejar.
A rêde tem o gesto e a nuança
da hesitação: recua… avança….
e ao seu balanço leve e lento,
por mais que nella o corpo encôlha,
sinto-me fragil como a fôlha,
julgo-me toda entregue ao Vento.
Qual uma larga e basta frança,
a rêde vae e vem, balança…
e adormecendo as seu vae-vem,
sobre o seu corpo quase fluido,
sonho-me posta, com descuido,
nos braços langues desse alguem…
Na rêde o corpo, a rir, descança,
como num sonho uma esperança.
Dos meus pezares esquecida,
muito ao meu gôsto posta, vede:
ao molle embalo de uma rêde,
fico oscillando para a Vida…
Errei… Minha esperança, além, se esfuma…
sinto-me envelhecer…. A Terra é linda!
mas a existencia, aos pouco se me finda,
sem que eu tenha gosado cousa alguma!
Sou producto de um erro; ha tanto vinda
é a dôr que no meu peito se avoluma,
que eu não sei si a adquiri ou si ella, numa
lei atavica, em mim perdura ainda.
Errei caminho, vim ao mundo atôa,
em vão minha alma libertar procuro
do pezo que carrega e que a magôa.
Minha existencia é toda, toda errada,
e, distendendo o olhar para o Futuro,
olho, perscruto, chamo, indago… – nada…
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Fonte: MACHADO, Gilka. Estados da alma: poesias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1917. p. 09-14; 29; 63-64; 118.