Resenha sobre Zahidé Lupinacci Muzart (org.). Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: UNISC, 1999 por Simone Pereira Schmidt e Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Em 1999, mil páginas chegaram literalmente pelas mãos de Zahidé Muzart às nossas mãos, no volume Escritoras Brasileiras do Século XIX, uma belíssima e primorosa edição da Editora Universidade de Santa Cruz do Sul e da Editora Mulheres1. Nele, a força de trabalho direta, manual e intelectual, de sessenta e oito mulheres, incluindo nessa empreitada desde a planejadora, a organizadora, as editoras, as escritoras, as pesquisadoras, a prefaciadora: mulheres amarrando as pontas de dois séculos, integrando norte, sul, leste, oeste, as Américas. Somam-se a essas, mais uma dezena nos agradecimentos, que vão desde a funcionária da livraria do Campus a outras pesquisadoras ou precursoras…
Escritoras Brasileiras do Século XIX é, em síntese, não somente o resultado de uma pesquisa integrada, financiada, mas uma demonstração de um trabalho de equipe e de uma sinfonia ou sintonia de múltiplas vozes em um tempo datado: escritoras brasileiras do século XIX, pesquisadoras brasileiras do século XX, literatura brasileira para o século XXI, que possibilitam reavaliar nossa história cultural.
O livro é centrado nas escritoras, no fato de serem brasileiras, e em um tempo específico, porque significativo. Comecemos pelo brasileiras e por sua relação com o conceito norteador do século XIX. O conceito de nação está intrinsecamente ligado à escritura. Até porque não existe, a priori, uma definição de nação. Citemos alguns clássicos e o que dizem: “Não há um meio ‘científico’ de estabelecer o que todas as nações têm em comum.”2 Nação é “qualquer corpo de pessoas suficientemente grande cujos membros consideram-se como membros de uma nação”3. Ou “o nacionalismo não é o despertar das nações para a autoconsciência: ele inventa nações onde elas não existem”4.
Preferimos ficar com a concepção de que nação é escritura; o conceito alimenta-se de textos. Na base da formação da consciência nacional está o texto impresso; foi através dele que ela pôde existir. Logo, nada pode ser ignorado. Neste ponto em que chegamos, para reforçar a idéia de uma nova leitura da história literária do século XIX, descobrimos que o século XX passou sem termos solucionado a impossibilidade de se entender o século XIX, o centramento no nacionalismo e o processo de formação de uma história da literatura brasileira — mais exatamente, da cultura brasileira, ou de uma periodização delimitada por cânones indiscutíveis. Há seqüestros evidentes. Conhecíamos até agora, através da denúncia de Haroldo de Campos, no processo da formação da literatura brasileira, o seqüestro do barroco… Em relação às escritoras, nem denúncia nem pistas, mistério, enigma, vagas referências apenas. Em outras palavras, as verdades de uma tradição histórica, quando confrontadas com as provas concretas, como neste livro, devem ter seus alicerces estremecidos.
Não é preciso falar mais do espantoso silêncio a que essas cinqüenta e uma escritoras brasileiras foram submetidas. As falas dessas mulheres não querem provocar apenas uma ruptura, introduzir a alteridade, a diferença. Ler assim, apenas, seria ler pela oposição. Os textos reunidos em oposição só nos levariam mais uma vez à avaliação do paradigma de uma história literária escrita por textos de autores homens. O que valeria dizer: Pior… escrita por nomes masculinos, igualmente canônicos. Já superamos essa angústia e essa fase de desabafo. O desafio agora é reescrever essa história e ler diferentemente as histórias da literatura brasileira do século XIX e a historiografia produzida no século XX. Referimo-nos aos historiadores canônicos como Antonio Candido, José Aderaldo Castelo (em recente reedição), Alfredo Bosi, J. Guinsburg, Nelson Werneck Sodré e à luxuosa história da literatura de Luciana Stegagno-Picchio5 publicada pela Nova Aguilar em 1997. Referimo-nos também às leitoras dessas histórias da literatura, na maioria mulheres e professoras. E aos autores de manuais e livros didáticos. Não falamos apenas de uma revisão dos cânones, mas de uma outra compreensão do próprio período romântico e da própria cultura do século XIX.
O desejo de organizar e classificar essas escritoras que foram esquecidas, ou antes ignoradas6, leva-nos a refazer uma outra tradição literária. Aquela que as inclui e nos deve incluir. Caso contrário, correremos o risco (se quisermos ser pautadas pela ironia e pelo otimismo) de, em 2099, bisnetas e tataranetas de nossas orientandas e de nossos orientandos paradoxalmente estarem resgatando esses alfarrábios, eletrônicos ou não, para ler e entender o inexplicável ignorar mais uma vez, desta vez com dois séculos de atraso.
O que a história da literatura pode e deve fazer com essa pesquisa, com as leituras críticas que antecederam todas as poesias, cartas, ficções, ensaios das escritoras? Como avaliar ‘no calor da hora’ as resenhas, as reportagens, as entrevistas, os comentários, a fortuna crítica recente; a recepção bastante elogiosa ao livro organizado por Zahidé Muzart? Como avaliar os limites entre as exigências do mercado editorial, a especificidade da Editora Mulheres e o próprio conteúdo do livro em quatro tempos: o tempo das escritoras, o tempo da pesquisa, o tempo da leitura e o tempo depois de tudo isso?
Ou a historiografia literária contemporânea e os historiadores da literatura se integram ou integram essas pesquisas em um sistema literário e consideram os resultados (incluindo os dos discursos críticos que referendam as escritoras resgatadas) ou eternamente estaremos fazendo os mesmos comentários, falando da necessidade tão bem apontada pela crítica feminista: a alteração do sistema literário constituído, de forma que os textos nos forneçam novos instrumentos de análise. O que se deseja, então, não são ensaios isolados, mas a reavaliação do que está (por)escrito (e não entramos no mérito da canonização), além da consideração desse novo e organizado patrimônio literário e cultural. E, nas margens da nova história da literatura contemporânea, deseja-se que se incorpore o surgimento de um potencial literário e crítico em torno de uma pesquisa arqueológica. Estamos reescrevendo a história da literatura do século XIX, mas muito mais a história da literatura do final do século XX, pela inclusão de pesquisas criticamente consistentes e teoricamente modernas. Não basta estarmos em lista de ensaístas brasileiras, com nossos dados civis e acadêmicos. Precisamos entrar literalmente na História.
Retomemos, então, um ponto já citado: a nação se afirma de fato quando a vemos como escritura. Só no século XIX, quando alfabetizadas, as mulheres se tornam leitoras e começam a publicar, especialmente em jornais e revistas femininas. Só no final do século XX, quando tituladas e intelectualmente reconhecidas, as mulheres começam a se encontrar em seminários e a somar esforços para grandes empreitadas. E neste ponto estamos próximas de Nara Araújo, que, com sensibilidade e inteligência, prefaciou o livro e avaliou o trabalho como uma expedição, metáfora que nos remete à imagem contemporânea dos grandes descobrimentos…
No texto introdutório do livro, Zahidé Muzart define seu trabalho, seu e de sua equipe de pesquisadoras, como uma faina de ‘revolver escombros e garimpar entulhos’, que só pode ser levada a cabo ‘com paciência e boa dose de paixão’. Sua concepção a respeito da tarefa da historiadora feminista da literatura nos remete ao conceito benjaminiano da história como um amontoado de ruínas: não há, diz Benjamin, documento de cultura que não seja também documento de barbárie. Assim, o trabalho de resgate das autoras desaparecidas de nossa história literária corre contra a ação corrosiva do tempo, busca por entre as ruínas o legado daquilo que desapareceu. O que está morto na história pode ressuscitar. É este um modo de interpretar aquilo que Benjamin afirma: “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?”7 ‘Revolver os escombros’ foi a fórmula encontrada por Zahidé para definir seu trabalho, contra a corrente do tempo. E contra a corrente pelo menos em dois sentidos. Primeiro porque vai literalmente daqui para lá: daqui de onde estamos, de posse da nossa reflexão contemporânea sobre o papel político dos cânones, que, em qualquer tradição cultural, afirmam um centro e silenciam as margens; para lá, esse obscuro e misterioso lá, onde se encontram nossas precursoras.
E contra a corrente do tempo, ainda, no sentido destacado também por Zahidé Muzart na introdução do livro. Ela fala do ritmo lento, necessariamente lento, da pesquisa, em cujos caminhos tortuosos, “o verbo mais conjugado é o esperar: esperar por uma informação bibliográfica, esperar pelo resultado de pedidos por carta a sebos e antiquários, esperar por microfilmes de bibliotecas”8. Espera: figura do discurso amoroso, no texto de Barthes. “Estou apaixonado? Sim, pois espero. O outro não espera nunca. O outro vive em eterno estado de partida, de viagem. A identidade fatal do enamorado não é outra senão: sou aquele que espera”9. Curiosa atitude a dessas mulheres que esperam, num tempo como o de agora, cujo imperativo é o de não se perder tempo. Mais uma aproximação a Walter Benjamin: citando Valéry, ele observa que o narrador cujo saber se amparava na tradição, na experiência vivida e compartilhada, adequava-se ao tempo da natureza, harmonizando-se ao seu ritmo. Assim como as coisas perfeitas produzidas pela natureza tinham um tempo longo, necessário, para ganhar existência (pérolas, vinhos, pedras, criaturas…), também o narrador, ao dar corpo às suas histórias, imitava essa paciência. Esse lento fluir do tempo, marcando as ações humanas, é algo perdido para a modernidade: “O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”10, diz Valéry.
Assim o tempo ganha outra consistência no lento trabalho de recuperação das escritoras do passado. Trabalho que nos permite, além de ampliar e redimensionar a história literária brasileira, mudar nossa concepção dessa mesma história. Pois, como diz Jeanne-Marie Gagnebin, apoiada em Todorov, “cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos”11. Desse modo, o passado se transforma de monumento, diante do qual por tanto tempo nos mantivemos em posição de referência/reverência, em documento, com o qual travamos uma relação crítica. Trata-se, então, não apenas de salvar o passado, como quer Benjamin, mas também de aniquilá-lo12: arrastamos o passado ao tribunal e o condenamos. Porque as vozes silenciadas das mulheres na história não precisam mais de nós. Elas agora habitam o sono, indiferentes às respostas, que hoje lhes poderíamos ofertar, às terríveis perguntas que elas fizeram em seu tempo. Somos nós que precisamos das perguntas que elas fizeram13. Para que exerçam sobre nós a força germinativa que as histórias contém14: para que, agindo como sementes, sua força conservada no tempo atue sobre nosso olhar de leitoras. Pois, como diz Italo Calvino, as leituras que fazemos, ausentes de todos os cânones — aquelas que vão forjando nossa tradição literária na experiência pessoal, íntima, da leitura que se constrói lentamente como uma entrega amorosa —, tais leituras dão forma às nossas experiências futuras, fornecendo “modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza”15: todas, coisas que marcam indelevelmente nossa experiência de vida e de leitura.
No caso de nossa relação com os textos das escritoras do século XIX, cremos que essa semente é germinativa no sentido de nos auxiliar, a nós, como suas leitoras, a nos percebermos como vozes entre outras vozes, a apurar nossos ouvidos para perceber as vozes todas que se encontram em nossos discursos. Subjazem, a essas muitas vozes, muitas perguntas: como seriam esses discursos se essas mulheres do passado tivessem ido muito além do lamento, da mágoa e da raiva que impregnam os textos em que buscam timidamente se representar? Como seria hoje contada a história deste país ou de sua literatura se tais vozes lhe tivessem acrescentado uma visão outra, descentrada? Ou ainda, como propõe Caren Kaplan16 , haverá estratégias de leitura e de escrita capazes de historicizar e desconstruir mitologias do nacionalismo e do individualismo?
Ao empreendermos essa viagem a um século XIX praticamente desconhecido do leitor brasileiro, já no século XXI, um novo modo de olhar para a tradição literária brasileira se nos apresenta, e uma só visão homogênea — um país, um centro, um modelo, uma metrópole, uma família, uma tradição — se transforma, se estilhaça, nas mãos das mulheres que ressuscitam em Escritoras brasileiras do gêculo XIX. É assim que podemos ler o conto ‘A escrava’, de Maria Firmina dos Reis, em que se conta a escravidão do ponto de vista do negro, ou melhor, da mulher negra. Assim tamgêm se pode ler o poema ‘O soldado do Paraguai’, de Rita Bagêm de Melo, que revisita a contrapelo, marcada pela ironia, a história da guerra. Ou ainda o poema ‘A lágrima de um caeté’, de Nísia Floresta, em que Paulo Bezerra identifica “a imagem de um índio condenado à civilização, com valores culturais superiores aos do colonizador, de quem ele cobra os bens que lhe foram roubados”17. São exemplos esparsos que aqui indicamos apenas para sublinhar o que tentamos dizer: que as escritoras do passado, ao buscar se representar, assumindo todos os riscos da recusa da representação pela voz dos outros, construíram para o futuro — para nós — não apenas uma imagem outra de si mesmas, bastante diferente daquela que a tradição hegemonicamente nos legou nas histórias contadas sobre a mulher burguesa do segundo império, mas também outras histórias, diferentes da História. Não por acaso, o problema da representação é hoje um dos temas centrais para a teoria feminista. No centro dessa preocupação está o entendimento de que o ato de representar constitui o processo no qual um sujeito fala em lugar de outro. Nesse processo, o outro não se constitui como sujeito, pois não assume um discurso através do qual possa enunciar-se por si mesmo. Como objeto do enunciado alheio, ele se deixa impregnar pelas valorações e pela visão de mundo daquele que o representa. Nesse sentido, representar significa, de modo geral, silenciar e marginalizar o outro. Sabemos a quem, historicamente, tem sido destinada a posição do Outro. Empreender a leitura das escritoras do passado, encontrar sua voz dissonante em relação à tradição que as posicionou, é um gesto imbuído do significado político de construção de um espaço outro, para além da ideologia do gênero18. Isso não significa saudar nostalgicamente o passado, mas, pelo contrário, incorporar as vozes do passado num discurso que se faz aqui e agora, nem nostálgico nem utópico, mas traçado, como sugere Teresa de Lauretis, nas margens dos discursos hegemônicos, como “espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-conhecimento”19.
Assim como os textos reunidos pelas pesquisadoras desconstroem uma representação homogênea do lugar da mulher, seja na história, seja na literatura do século XIX, eles também acabam por solapar qualquer idéia que equivocadamente pudéssemos ter de uma identidade comum a unir todas essas escritoras. Em sua leitura, percorremos toda a variedade de pensamentos que povoam nosso passado, desde a adesão mais entusiasmada à ideologia colonial até o ímpeto revolucionário; da obediência estreita aos ditames da convenção literária da época até sua aberta paródia; do conformismo (a sério ou não) às rígidas hierarquias sociais, como nos Conselhos de Bárbara Heliodora a seus filhos — “Com Deus, e o rei não brincar,/ É servir e obedecer,/ Amar por muito temer,/ Mas temer por muito amar,/ Santo temor de ofender/ A quem se deve adorar!” — até o desabafo indignado da escritora anônima — “Triste sorte a nossa. Para alguma cousa melhor nascemos!”. Assim, lembrando, com Donna Haraway20, a dolorosa fratura que nos impede o retorno ao aconchego de um nós que nos abrigaria a todas, numa unidade tão doce quanto impraticável, caberia ainda interrogarmos, ao encararmos a variedade de discursos que constituem este corpus provisoriamente reunido, quantas mulheres se encontram por trás desse véu que apenas começamos a levantar, o véu da ‘mulher’ do século XIX? Quantas diferenças se encobrem sob essa aparente identidade que começamos a investigar?
A paciência e a paixão de que fala Zahidé Muzart na introdução de seu livro retornam aqui como uma síntese do que acreditamos ser o valor maior desse trabalho de resgate das autoras do século XIX. Paciência para realizar o trabalho quase artesanal que é ouvir e fazer falar a experiência — ou melhor, a multiplicidade de experiências, distintas, que se tinham volatizado no tempo. Paixão porque justamente se questiona, através das estratégias feministas de leitura ou releitura do passado, o valor dos critérios de objetividade e cientificidade reivindicados pelo sujeito do conhecimento das ortodoxias intelectuais. A leitora crítica feminista é — ao contrário desse sujeito supostamente neutro, não posicionado — posicionada no espaço, no tempo, sexual e politicamente; por isso mesmo ela trava com o texto que analisa uma relação que não é neutra nem impessoal, mas interessada, intensa e, muitas vezes, por que não, apaixonada.
É importante ressaltar o mérito de como o livro foi montado: ele é, como já dissemos, todo centrado nas escritoras brasileiras do século XIX, e as pesquisadoras deram a autoria àquelas que ainda não haviam aparecido em conjunto. Basta ver o índice. Sintomaticamente a história da crítica contemporânea é anunciada e iniciada quando os nomes e as especificações acadêmicas das quinze pesquisadoras fecham o livro, a pesquisa, a história, ou como acharmos que se deve nominar isso. São elas as responsáveis: Ana Helena Cizotto Belline, Constância Lima Duarte, Eliane Vasconcellos, Ivia Duarte Alves, Lizir Arcanjo Alves, Luzilá Gonçalves Ferreira, Maria Tereza Caiubi Crescenti Bernardes, Nancy Rita Vieira Fontes, Norma Telles, Rita Terezinha Schmidt, Sylvia Perlingeiro Paixão, Valéria Andrade Souto-Maior, Valéria Cardoso da Silva, Yasmin Jamil Nadaf e Zahidé Lupinacci Muzart.
A partir dessas colocações, propomos é que este livro não seja ponto de chegada, mas ponto de partida para se escrever uma história que não opte apenas pela inclusão dos nomes das autoras, dos títulos, mas que incorpore a leitura das obras nas concepções norteadoras do século XIX.21 Não há tempo aqui para se reavaliar, por exemplo, as alterações na estética romântica com a inclusão desses textos escritos por mulheres. Ou da estética parnasiana ou simbolista com a inclusão das poetas ali reunidas.
Inegavelmente, as quinze pesquisadoras já nos deram os caminhos e a bibliografia básica. Em linhas gerais elas repensaram a literatura, como que vasculhando a história da cultura em busca do que deve ser mencionado, senão para demonstrar, ao menos para apontar uma correspondência entre o que consideram estar dentro e fora do texto. O que devemos avaliar, com questionamento e auto-crítica, é se as inquietações que têm movido a crítica e a historiografia feministas encontram neste trabalho algumas respostas. Pois cabe aqui lembrar o que dizia a pesquisadora Zahidé Muzart em 1994, num encontro realizado na UFSC: “Somente agora estamos descobrindo no Brasil a literatura feminina do século XIX e, embora já possamos contar com várias pesquisadoras envolvidas em projetos de resgate, não temos ainda conclusões definitivas mas somente questionamentos e hipóteses — direções de percurso”22 .
Ao fazer os textos falarem, Escritoras Brasileiras do Século XIX promove a transformação de mais de sessenta mulheres em texto, e nos permite ensaiar uma nova história da literatura no Brasil. Cabe ainda — e a nós outras, em um esforço integrado — superar a fase apontada por Zahidé Muzart de questionamentos e hipóteses, e saber aproveitar o que a princípio é atordoante: mil páginas, cinqüenta e uma escritoras do século XIX, centenas de temas, mágoas, vidas, cartas, falas e poemas, quinze pesquisadoras do século XX, uma editora chamada, e dirigida por, Mulheres, histórias de uma literatura/cultura ainda a ser definida, assimilada e entendida no século XXI. Temos muito o que fazer a partir de agora com essa matemática predominantemente feminina.
Publicado em Estudos Feministas (Rio de Janeiro), v. 7, n. 1. 2, 1999.
Notas (para voltar ao texto, clique nos números)
1 Zahidé Lupinacci Muzart (org.). Escritoras Brasileiras do Século XIX. Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999.
2 In H. Bhabha (ed.). Nation and Narration. London/New York: Routledge, 1990, p. 47 e 49.
3 E. Hobsbawm. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 8.
4 In Benedict Anderson. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 14.
5 Luciana Stegagno-Picchio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1997.
6 Brito Broca. As Mulheres na Literatura Brasileira. In: Românticos. Pré-Românticos. Ultra-Românticos. Polis/INL, 1953.
7 Walter Benjamin. Sobre o conceito de história. In: ____. Magia e técnica; arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 223.
8 Zahidé L. Muzart (org.). Op. cit., p. 24.
9 Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p 27 e 96.
10 Walter Benjamin. O narrador. Considerações dobre a obra de Nikolai Leskow. In: ____. Op. cit., p. 206.
11 Jeanne-Marie Gagnebin. Walter Benjamin ou a história aberta. In: ____. Op. cit., p. 13.
12 Monumento, documento, salvar, aniquilar: usamos aqui Nietzche e Benjamin.
13 A partir da sugestão do poema ‘Procura da poesia’, de Carlos Drummond de Andrade.
14 Walter Benjamin. O narrador. Op. cit., p. 204.
15 Italo Calvino. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 10.
16 Caren Kaplan. Autobiografia de resistência: gêneros fora-da-lei e sujeitos feministas transnacionais. Travessia, n. 29/30. UFSC, ago.94-jul.95, p. 63-99.
17 Paulo Bezerra. Um toque feminino na literatura brasileira. Jornal da Tarde. São Paulo, 18 de setembro de 1999.
18 Cf. Teresa de Lauretis. A tecnologia do gênero. In: Heloísa Buarque de Hollanda (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 206-42.
19 Idem, p. 237.
20 Donna Haraway. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: Heloísa Buarque de Hollanda (org.). Op. cit., p. 243-88.
21 João Hernesto Weber. A Nação e o Paraíso. Florianópolis: UFSC, 1996.
22 Zahidé Luppinacci Muzart. Na aprendizagem da palavra: a mulher na ficção brasileira — século XIX. In: Fazendo gênero. Seminário de Estudos sobre a Mulher. Florianópolis: UFSC. 1994/ Ponta Grossa: UEPG, 1996, p. 77-83.