ENTRE O SER E O ESTAR: A MULHER NO UNIVERSO LITERÁRIO DE NÉLIDA PIÑON


 

ENTRE O SER E O ESTAR: A MULHER

 

NO UNIVERSO LITERÁRIO DE NÉLIDA PIÑON

 

Níncia Borges Teixeira

 
 
“Um texto descoberto em um arquivo empoeirado não será bom e interessante, só porque foi escrito por uma mulher. É bom e interessante porque nos permite chegar a novas conclusões sobre a tradição literária das mulheres, saber mais sobre como as mulheres desde sempre enfrentaram seus temores, desejos e fantasia e também as estratégias que adotaram para se expressarem publicamente, apesar de seu confinamento ao pessoal e ao privado”.
 

Sigrid Weigel[1]

 
O mundo feminino, tal como ele se revela no universo literário do passado, pode ser captado, fragmentariamente, na literatura feminina do presente. As mulheres de hoje, por meio de sua escrita literária, revelam acerca do processo de autoconscientização de sua condição feminina, num mundo em acelerada mutação.
Em meio às grandes modificações político-econômico-sociais que se aceleraram no século XX, as relações homem-mulher foram profundamente alteradas e, conseqüentemente, alterou-se o sistema familiar: a mulher transpõe os limites do lar, no qual há séculos cumprira o papel de “rainha do lar”, que o sistema patriarcal lhe destinara, e ingressa no mercado de trabalho. Contemporaneamente, ingressara para cumprir o novo papel que o sistema econômico lhe exige. Ingresso que, como sabemos, teve, e ainda tem, fundas conseqüências, não apenas no ambito familiar, mas também no plano político-econômico, além do ético, e está longe de ser resolvido.
A necessidade da descoberta de uma identidade própria é tema central neste tipo de literatura. As mulheres que, historicamente, cumprem com demandas e papéis impostos socialmente, perguntam-se, principalmente ao logo do século passado e no momento presente, quem são, como desejam ser, como não querem mais ser. Esta pergunta sobre novas identidades e sobre a busca de novos caminhos é central nas referidas narrativas, nas quais a presença de um espelho é freqüente, objeto que faz referência clara ao universo feminino. Mas, nos textos em questão, o espelho tem um objetivo inovador, não mais para exaltar frívolas vaidades e projeções fúteis, mas para servir como o lugar, o espaço que possibilita a indagação sobre novos desejos, ou mesmo, sobre o rompimento de velhas imagens que não servem mais.
A escritura feminina constitui o olhar diferenciado, o olhar das minorias. A temática da escritura feminina é resultante do “estar” no mundo, abordando o retrato das vivências da mulher no seu dia-a-dia. Segundo Luiza Lobo:
 
 
(…) o canone da literatura de autoria feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas “domésticas” e “femininas” e ainda de outros estereótipos do “feminino” herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje[2].
A literatura de autoria feminina precisa criar o seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. Ocorreu, assim, a mudança da condição “feminina” para a condição “feminista”.
Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na Universidade, pelo menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais intensas. As escritoras passaram, então, a expressar suas realidades. Até muito recentemente, a crítica feminista não possuía uma base teórica. Assim, a crítica feminista era um ato de resistência, uma confrontação com os canones e julgamentos existentes. Enquanto a crítica científica lutou para se purificar do subjetivo, a crítica feminista reafirmou a autoridade da experiência.
Existem duas formas de crítica feminista, e misturá-las é permanecer num território confuso. A primeira forma é ideológica, diz respeito ao feminismo como leitura e oferece leituras feministas de textos que levam em consideração as imagens e os estereótipos das mulheres na literatura e as omissões e falsos juízos sobre as mulheres na crítica. A leitura feminista pode ultrapassar estas considerações; pode ser uma ação intelectual que busca a libertação, como propõe Adrienne Rich:[3]
 
 
Uma crítica radical da literatura feminista mostraria como vivemos, como temos vivido, como fomos levados a nos imaginar, como nossa linguagem nos tem aprisionado, bem como liberado, como o ato de nomear tem sido uma prerrogativa masculina, e de como podemos começar a ver e nomear, e, portanto, viver de novo.
 

Buscando a escritura feminina

A leitura feminista ou crítica feminista é, em essência, uma forma de interpretação, uma das muitas que qualquer texto complexo irá acomodar e permitir. Mas, a crítica feminista só pode competir com leituras alternativas. Kolodny[4], teórica da interpretação feminina afirma:
 
 
Tudo que a feminista está defendendo, então, é seu próprio direito de libertar novos (e, talvez, diferentes) significados destes mesmos textos; e, ao mesmo tempo, seu direito de escolher quais os aspectos de um texto que ela considera relevantes, pois ela está, afinal de contas, colocando ao texto novas e diferentes questões. Durante o processo, ela não reivindica que suas leituras e sistemas de leitura diferentes sejam considerados definitivos ou completos estruturalmente, mas somente que sejam úteis para o reconhecimento das realizações específicas das mulheres como autoras, e que sejam aplicáveis na decodificação consciente da mulher como signo.
Toda crítica é revisionista, pois questiona as estruturas aceitas. Portanto, a crítica feminista revisionista retifica uma injustiça e está construída sobre modelos já existentes. Contrapondo-se à teoria crítica masculina, ela tem como objetivo suplementar, revisar, humanizar conceitos baseados na experiência masculina e apresentados como universais.
A segunda forma da crítica feminista é que se propõe analisar a mulher enquanto escritora e sus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres, a criatividade feminina. Como não existe um termo para este discurso crítico especializado Elaine Showalter o define como ginocrítica. A ginocrítica não pretende mais reconciliar pluralismos revisionistas, mas apenas aquilo que faz a diferença nos escritos das mulheres.
O conceito da écriture féminine, estabelece a diferença feminina na língua e no texto, possibilitando uma maneira de se discutir os escritos femininos que reafirmam o valor do feminino e identificam o projeto teórico da crítica feminista como a análise da diferença. Tecnicamente, não se poderia falar em literatura “feminista” antes que o termo fosse cunhado, na década de 1960.
Para Luiza Lobo :
 
O termo “feminino” vem sendo associado a um ponto de vista e uma temática retrógrados, o termo “feminista”, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura “feminista” vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc. (1999: 4).
 
 
Considerando que o texto literário feminista é o que apresenta um sujeito consciente de seu papel social, sempre houve autoras “feministas” dentro do contexto de suas épocas, tornando-se o termo impróprio apenas por uma questão cronológica. Como exemplo, Safo e Sóror Juana Inês de la Cruz são possuidoras de uma consciência política ou esclarecida de sua existência em face da história que são excepcionais para seu tempo, e poderiam ser eventualmente identificadas com o “feminismo”.
A alteridade, ou seja, a ênfase na diferença, da literatura de autoria feminina tornou-se a base da abordagem feminista na literatura. Ser o outro, o excluído, o estranho, é próprio da mulher que quer penetrar no “sério” mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por vários motivos sócio-político-culturais, a mulher foi excluída do mundo da escrita – só podendo introduzir seu nome na história através das fendas que conseguiu, arduamente, abrir.
Na literatura brasileira, até o presente momento, considera-se o romanceUrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
Mais recentemente, a preocupação em ser sujeito da própria escrita, deixando de ser só uma representação literária na ficção masculina, tem como principais expoentes (entre outras): Clarice Lispector, Sônia Coutinho, Maria Adelaide Amaral, Lya Luft e Nelida Piñon.
 
 
Nélida Piñon: a palavra como elo literário
A estréia de Nélida Piñon na literatura foi com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação dos mortais com Deus através do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda. Desde o início a escritora filiou-se ao movimento que, depois de Guimarães Rosa, se orienta pela renovação formal da linguagem. No romance Fundador, publicado em 1969, Nélida Piñon abandona a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e põe em cena personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético. Segundo Leodegário Azevedo Filho,[5] Nélida “desde cedo pressentiu que a língua, convencionalmente centrada no lugar comum do Código, deveria ser abolida do seu processo criador, dando lugar à linguagem. Em outras palavras, para ela um texto literário sempre esconde uma cena latente por detrás do significado linear da cena manifesta. No seu processo de criação, desde cedo percebeu que a cena latente devia valer mais que a cena simplesmente manifesta”.
Ao longo de mais de 35 anos de ininterrupta atividade criadora, Nélida Piñon é um testemunho de que, entre as possíveis maneiras de se exprimir que o homem tem a seu dispor, a palavra é aquela que mais diretamente o põe a nu consigo mesmo, quer diante dos seus problemas individuais, quer frente às suas mais dramáticas contradições enquanto ser social, político, cultural, economicamente determinado. Daí a sua consciência da função do escritor, que não deve se limitar apenas a criar, sua tarefa máxima, mas também deve emprestar sua consciência à consciência dos seus leitores, sobretudo em um país como o Brasil, onde é preciso fazer com que o povo reflita sobre a sua realidade e reivindique uma realidade melhor e mais justa. Tratando das questões universais como o amor, o fracasso, a esperança e a morte, a escritora busca, em seu ofício de paixão pela palavra, a desregulamentação dos sentimentos humanos banalizados pela vida cotidiana.
 
 
Entre ser e o estar: depois da conscientização, a escolha
No conto “I Love my Husband”, a autora constrói um universo, no qual anarradora é educada dentro de rígidos padrões moralistas, e mesmo depois de casada continua subjugada ao marido e atrelada rígidas regras do jogo social. A situação social da personagem tem importancia à medida que representa condicionamentos impostos por práticas sociais.O homem é o detentor do poder, a mulher passa, então a ser sua propriedade: “E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa” (2000: 452).
O tema predominante nesse corpus textual é a busca de uma identidade autodefinida e autônoma, a autora num esforço de nortear o próprio ser num nível ficcional, subverte e reescreve as imagens tradicionais sobre o feminino. Nessa busca do próprio ser, a escritora mantém este posicionamento diante da escrita: como escritora em frente ao espelho, torna-se testemunha das respectivas condições socioculturais ou como sujeito discursivo, que procura uma identidade textual própria. As estratégias desta representação se manifestam na transcrição ou na reescrita de ícones tradicionais do feminino – como, por exemplo, da mulher resignada – ou na criação de máscaras novas pessoais. Assim a própria Nélida Piñon nos fala de seu processo de criação literária:
 
 
Meus textos mais consistentes surgiram de planos estabelecidos antes de ser deflagrado o trabalho de criação. Meu texto é basicamente provisório, uma vez que, ao remetê-lo a nova versão, ganha ele dimensões mais profundas. Cada versão é uma máscara abatida em direção ao rosto verdadeiro. Sem que evite as instruções armadas diante de mim, e de que lanço mão para enriquecer o texto. É então o novo ponto de vista do próprio texto consubstanciando os outros pontos de vista já ali registrados. O texto gera fatalmente um outro texto interiorizado nele mesmo.”[6]
 
 
Nesta obra, as fantasias da narradora são projetadas ao tecido textual, para assim se poder questionar as imagens femininas convencionais: é e por meio da recepção dessas imagens que se pode desconstruí-las e redefini-las. Para reforçar esse processo, a autora utiliza certos meios estilísticos, como a contaminação lingüística, o silêncio, a reapropriação, a subversão e o experimento com a língua definem o tom da expressão literária feminina. Um exemplo dessa contaminação lingüística é o próprio título do conto, o estrangeirismo é utilizado como uma forma irônica de retratar a sua história. O título vai ser incorporado ao texto quando, após uma reflexão apurada de sua própria vida, ela opta por ratificar esse contrato, no caso o casamento, para que isso se efetive, passa a se nutrir de fantasia, foge de sua realidade cotidiana imitando o “ato de pássaro”, neste vôo acontece a transgressão, só que num nível fantástico, imaginário, não deixando, porém , de ser subversão. “Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. (…) Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão” (2000: 455). Ao final de sua confissão, ocorre a confirmação da ironia embutida no título, quando a narradora, consciente de sua condição, professa “Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido” (2000: 456).
A utilização de uma linguagem simbólica torna sua narrativa universal, isso perpassa toda a obra, Nélida recorre a símbolos recorrentes como contidos nos vocábulos água e casa, dentre muitos outros. “Dentro de casa, no forno, que era o lar, seria fácil alimentar o passado.”(2000:452), ou então “ Sôfrega pelo esforço eu sorvia a água do rio…” (2000: 453). Nestas duas construções, a autora utiliza-se das metáforas para denunciar a situação de opressão a qual vivenciava. No caso do vocábulo “casa”, há toda uma representação do universo feminino, a palavra carrega consigo a força do universo, neste caso representa a força da qual a narradora é detentora; além disso, a simbologia presente nesta palavra, também significa o ser interior, os estados da alma, assim cada vez que a personagem se refere à casa, ela refere-se, na verdade, a si própria. Por outro lado, a utilização da metáfora “água do rio” sugere que a narradora busca a renovação, desejando a morte da situação na qual vive, rotineiramente. E isso vai sendo engendrado no decorrer da narrativa; a personagem busca, por meio da reflexão, respostas para sua situação de opressão. O conflito interior das personagens é que vai gerar, portanto, o desejo de libertação, o desejo da aventura ou a busca do gesto novo, pois se torna urgente descobrir o sentido real da vida, já que todas as coisas têm, além de uma verdade aparente, a sua verdade essencial.
O tema predominante no conto I love my husband é a busca da identidade própria: “Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. “A autora apresenta sua protagonista feminina como uma personalidade dividida internamente, oscilando entre a sua condição de mulher e o grande desejo de se livrar de complexos de inferioridade e da pressão que a impediu de alcançar uma personalidade autônoma. De um lado, a narradora busca sua libertação, o marido na verdade é apenas seu mantenedor, assim há a confirmação do contrato social, ela cumpre sua obrigações de esposa e ao marido cabe ampará-la financeiramente. A esposa para ele torna-se um fardo: “Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo – disse ele” (2000: 452).
Note-se, também, que a narradora não tem coragem de se desvencilhar dessa rede de proteção que se torna o lar, prefere, então, fugir da situação, ignorando, até mesmo sua própria situação de oprimida, “Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Essaideologia, sustentada pela sociedade ocidental conservadora, justifica esse sentimento de culpa, que nasce como conseqüência de um ato que não corresponde a sua competência reprodutiva, maternal, mais do que como cidadã.Neste momento, a voz interior levanta-se freando seu impulso por liberdade: “Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas” (2000:454).
Desta ficção pode-se, também, dizer que a autora abandona a narrativa centrada na vida pessoal de uma personagem, quase que autobiográfica e se aprofunda no exame crítico dos múltiplos papéis da mulher na sociedade. A análise recai sobre a situação vivida por milhares de mulheres. Que se repete por gerações, no conto é visível esta situação, a cartilha a ser seguida pelas mulheres, é descrita a todo momento: “As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento” (2000: 455).
O tema da “mulher objeto”, freqüentemente vendida num casamento sem amor aparece freqüentemente quando se analisa a situação das mulheres. Percebe-se que elas são aparentemente conformadas com a rotina da vida burguesa, essas mulheres sempre correm o risco de subitamente confrontar-se com o sem sentido de suas vidas, ao lado de seus maridos bem postos nos negócios e dentro de suas casas confortáveis. Esta constatação pode ser observada, no conto, em momentos como estes:
 
 
Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado. Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto (2000: 451).
 
 
Percebe-se, então, que a condição feminina, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante, não se trata de um simples tema literário, mas da substancia de que se nutre a narrativa. A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente, com relação aos textos reconhecidos pelo canone literário. A mulher, vivendo uma condição especial, representa o mundo de forma diferente. O conto mostra que a personagem passa por um processo de conscientização, não que este discurso se confunda com feminismo, ele traz como alicerce a consciência da situação social da mulher: “Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido.” Esse discurso, presente na escritura de Nélida, subverte a ordem vigente, questiona os papéis sociais, representando a mulher dividida, numa linguagem que também subverte os padrões normais. Ele representa uma tendência altamente significativa do ponto de vista estético e social, pois é uma representação artística da situação da mulher feita por mulheres.
Ao final da narrativa, há a descoberta da “pobreza” por essa mulher confinada e protegida por um bom negócio matrimonial, mas reduzida a mecanicos atos quotidianos de auto-anulação, infeliz e culpada. A descoberta da pobreza dá-se junto com a autodescoberta como consumidora e parasita social, o que, de modo fulminante, desvenda o sem sentido da sua vida e da vida dos homens numa cidade grande que expõe talvez mais duramente os contrastes de uma sociedade injusta percebe-se que, o conto descreve o tumulto privado e interior duma mulher. Diante desse quadro, a narradora permanece ao lado de seu marido, mesmo sabendo que sua vida continuará tão vazia quanto antes, o que muda é que ela se torna consciente de sua real posição no casamento, mas mesmo assim, prefere continuar este pacto social e finaliza dizendo:
 
 
Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido (2000: 456).
 
 
O conto escrito por Piñon exige uma certa rede de relações de complementaridade entre texto e leitor. Não é certo que cabe ao verdadeiro leitor preencher os vazios do texto? No conto I Love my Husband, o leitor depara-se com um texto aberto. Como sempre, será a palavra escondida e não a palavra codificada que nos levará ao verdadeiro sentido da escrita. Nélida lança sobre o universo feminino um olhar penetrante, que tudo vê e devassa. Segundo Leodegário A. de Azevedo Filho “Em sua ficção, o impossível verossímil é sempre preferível ao possível não convincente.” O mundo real, consegue ser desvendado somente por um verdadeiro escritor, porque ao lado da realidade, ele cria infinitos mundos possíveis, como é o caso de Nélida Piñon, em cuja obra vários críticos (nacionais e estrangeiros) trabalham, sem que jamais consigam desvendá-la totalmente. E a razão é simples: a revelação de uma verdadeira obra de arte literária, por mais que se escave nela, nunca tem fim.

Referências Bibliográficas:

 
GOTLIB, Nádia Batella, org. A mulher na literatura. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1990.
HOLLANDA, Heloísa Buarque, org. Tendências e impasses – O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LOBO, Luiza. “A Literatura feminina na América Latina”. Revista Brasil de Literatura, on-line, 1999. Reimp. Registros do Seplic, Seminário Permanente de Literatura Comparada, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da UFRJ, n. 4, 1997. 40 p.
LOBO, Luiza. “Auto-retrato de uma pioneira abolicionista”, in Crítica sem juízo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992, p. 222-38; “O negro de objeto a sujeito”, idem, p. 205-21.
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros. São Paulo: Objetiva, 2000.
http://www.riototal.com.br/coojornal/academicos-leodegario003.htm.
 



[1] Sigrid Weigel, “La mirada bizca sobre la historia y la escritura de las mujeres”. In: —.Estética feminista. Barcelona, 1986. p. 69-98.
 
[2] Citação retirada do ensaio de Luiza Lobo, “A Literatura Feminina na América Latina”, publicado na Revista Brasil de Literatura (on-line), 1999, reimp. Registros do Seplic, Seminário Permanente de Literatura Comparada, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da UFRJ, no 4, 1997.
[3] Adrienne Rich citada por Heloísa Buarque de Holanda in Tendências e Impasses- o feminismo como crítica da cultura (1994).
[4] Heloísa Buarque de Holanda cita Kolodny (1994).
[5]Leodegário A. de Azevedo Filho é Professor emérito da UERJ, Titular da UFRJ e Presidente da Academia Brasileira de Filologia. Artigo disponível em:
http://www.riototal.com.br/coojornal/academicos-leodegario003.htm.
[6] III Encontro Nacional de Professores de Literatura, realizado de 28 a 31 de julho de 1976.