Patricia Maria dos Santos Santana
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Capes
Resumo: A vida e a morte coexistem no espaço do corpo desde o nascimento. O presente estudo tem como objetivo investigar as leituras de morte apresentadas no livro Este é o meu corpo, de Filipa Melo, obra onde a autora problematiza a necessidade de um aprofundamento sobre o tema com inúmeros questionamentos sobre a angústia e o medo que envolvem o homem diante da morte e, paradoxalmente, diante da própria vida em si.
Palavras-Chave: morte; vida; luto; literatura portuguesa; contemporaneidade.
Abstract: Life and death coexist in the body since birth. The present study aims to investigate the readings about death presented in the book Este é o meu corpo, written by Filipa Melo, work in which the authoress discusses the need of a deepening on the subject with innumerous questions about anguish and fear that involve man facing death and, paradoxically, life itself.
Key-Words: Death. Life. Mourning. Portuguese Literature. Contemporaneity.
Minicurrículo: Patricia Maria dos Santos Santana é doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ e bolsista da CAPES. Lançou três livros de crítica literária e publicou diversos artigos científicos em renomadas revistas nacionais.
ENTRE MORTOS E AGONIZANTES: A IMPOSSIBILIDADE DE AGIR EM Este é o Meu Corpo, DE FILIPA MELO
Patricia Maria dos Santos Santana
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Capes
A morte é um espelho no qual o inteiro
significado da vida é refletido.
(Sogyal Rinpoche)
A certeza de finitude que nos acompanha traz descontentamento e inquietação. Freud (1986) afirma que o homem é um “desamparado” que, fora do útero da mãe, caminha para a morte. E da morte, o homem nada sabe. O medo é o sentimento que surge dessa incerteza. Ameaçador, nebuloso, flutuante, líquido, o medo é parte da natureza humana e compartilhamos com os animais esse sentimento. Nos homens, porém, quando expostos ao perigo, a sensação de vulnerabilidade está presente, pois somente eles têm consciência da possibilidade da morte. A vida e a morte coexistem no espaço do corpo desde a concepção e, apesar de antagônicos, tornam-se um só num diálogo em que nunca desaparecerão. Assim, o início e o fim falam à natureza humana, habitando o corpo com a ideia paradoxal de vida e de morte.
Estamos conscientes de que dos nossos quartos, das ruas, de nossos locais de trabalho, das pessoas com quem nos relacionamos e até do que ingerimos, o medo da morte está sempre à espreita, por perto, nos cercando. Esse medo parece estar sempre a caminho, disposto a nos causar angústia. No ambiente líquido-moderno, o combate ao medo se tornou tarefa árdua. A morte se apresenta na lista de medos que carregamos, latejando no vácuo da imprecisão de quando ocorrerá aquilo que é certo e inevitável. Bauman (2007, p. 31) explica que “esses medos são aterradores por serem difíceis de compreender; porém mais aterradores ainda pelo sentimento de impotência que provocam (…). Os perigos que tememos transcendem nossa capacidade de agir…”
O livro Este é o meu corpo, romance de Felipa Melo, é um livro sobre a morte, mas é também um livro sobre medo e sobre a impossibilidade de agir diante de fatos da vida. O livro parece querer traduzir um vácuo. Uma lacuna estranha sobre o que há entre o viver e o morrer.
Filipa Melo nasceu em 1972, em Angola, na cidade de Silva Porto, atual Cuíto. Estudou Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e, em 1991, começou a trabalhar como tradutora. Em 1992, iniciou a sua atividade como jornalista. Desde então, colaborou com diversas publicações e com as estações de televisão SIC e RTP. Integrou a revista Visão entre 1994 e 1999 e foi responsável, em 1996, pela reformulação e edição da revista Livros de Portugal, da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Entre 1996 e 2000, atuou na direção do Sindicato de Jornalistas. Recebeu Menção Honrosa, Prémio Revelação 1995, pelo Clube de Jornalistas de Lisboa, e o Prémio Nacional de Cultura Sampaio Bruno 1996 pelo Clube de Jornalistas do Porto. Foi nomeada para o Prémio Bordalo da Imprensa Escrita em 1998. Como jornalista free-lance, Felipa foi editora do suplemento ‘Mil Folhas’, do jornal Público. Organizou várias comunidades de leitores na livraria Almedina. Este é o meu corpo é seu primeiro romance e foi traduzido para o espanhol, francês, inglês, italiano, grego, holandês e servo-croata.
Freud afirma que
Nós, criaturas civilizadas, tendemos a ignorar a morte como parte da vida. No fundo, ninguém acredita na própria morte, nem consegue imaginá-la. Uma convenção inexplícita faz tratar com reservas a morte do próximo. Enfatizamos sempre o acaso: acidente, infecção, etc., num esforço de subtrair o caráter necessário da morte. Essa desatenção empobrece a vida. (2009, palestra “Nós e a Guerra” de 1915)
Freud (1915) menciona o fato de o homem matar seu inimigo desde sua época mais primitiva até os dias atuais, havendo um ponto comum entre o homem primitivo e o civilizado, no que diz respeito ao desejo de destruir quem o ameaça ou lhe oferece perigo. Ele afirma que nosso inconsciente comporta-se de maneira semelhante ao do homem primitivo, pois este não acredita na própria morte, apesar de vê-la rondando e de abater seu próximo com frequência. Todavia, o consciente, como era de se esperar, apavora-se com a ideia da morte e, portanto, daí está gerado o conflito existencial. Freud diz que nossa atitude civilizada perante a morte é muito irreal e que vivemos psicologicamente acima de nossos meios, enquanto deveríamos conceder um espaço maior em nossas vidas para a morte, para que a vida se tornasse suportável conscientemente, embora sabendo de sua finitude e de suas consequências. Assim, o homem vive sob o impacto da morte, pois ela significa o fim irrecuperável e irrevogável. Com o pavor da morte, único evento na vida sem retorno, cabe ao homem também a negação dela, sua desconstrução e banalização. Tentamos incessantemente mostrar uma tendência a colocar a morte de lado, a suprimi-la da vida, como se isto fosse resolver o problema da morte.
Freud ainda diz que temos o hábito de enfatizar a morte através de causalidades como acidentes, doenças, infecções, idades avançadas, pois, dessa maneira, revelamos o esforço de reduzir a morte de fatalidade à oportunidade. Para Freud, tal redução ou desconstrução está intimamente relacionada ao discurso da modernidade. O que se vê é que quando se aplica a ideia reducionista para os modos de se morrer, exclui-se o fato de a morte ser algo biologicamente determinado entre os seres humanos.
Este é o meu corpo causa proposital estranheza no primeiro contato. É um livro que revela os mistérios de um assassinato, de forma extremamente poética, através do olhar de um médico legista. Com a solenidade exigida de um ato religioso e com a ternura de uma carícia de amantes, um corpo será desvelado através dos cortes profundos do bisturi do médico que é obcecado pelos segredos que lhe contam os mortos. Ele costuma dizer: “Todas as mortes são violentas. Sobretudo para os que cá ficam” (MELO, 2004, p. 19). É dos reflexos desta morte na vida dos que ficam que trata este romance. Um enigma que envolve outros corpos e as marcas da vida e da morte dentro deles. Apresenta o corpo humano em seus mais intangíveis mistérios, que se apresentam não apenas na morte como também na vida.
A compreensão do modo pelo qual a sociedade se relaciona com o corpo é uma questão fundamental na medida em que Bauman (2007) nos propõe que devemos conceber o corpo como potencialidade elaborada pela cultura e desenvolvida nas relações sociais. Para Le Breton (2006), o corpo é objeto das representações e do imaginário. Um local por onde se constrói a relação do homem com o mundo. No corpo estará o âmago dessa relação homem-mundo, pois dele nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva:
Pela corporeidade, o homem faz do mundo a extensão de sua experiência, transformá-lo em tramas familiares e coerentes, disponíveis à ação e permeáveis à compreensão. Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural (LE BRETON, 2006, p. 8).
Entendemos, pois, que a morte é o momento natural de desfazer a existência do corpo trabalhado, vivido, experimentado, relacionado, profundamente inserido no mundo no curso da vida. Morte e morrer são palavras que as pessoas evitam proferir. Essa dificuldade de conviver e de trabalhar com a ideia da morte atrapalha a sua elaboração e impede que se lide com tranquilidade com as perdas, que são naturais e que ocorrem inevitavelmente ao longo da vida. A morte faz parte da vida e é um ritual de passagem do qual não se pode esquivar. Mas apesar de se reconhecer a inevitabilidade da morte ainda existe muito tabu diante deste fato e o silêncio é utilizado como um subterfúgio para melhor lidar com o acontecimento.
Em resumo, a morte é concebida pelo ser humano como algo que causa medo, angústia, mas que, ao mesmo tempo, como num jogo, é melhor ser ignorada, esquecida, banalizada, desconstruída para que o homem consiga realizar a difícil tarefa de viver, ou seja, para conseguir realizar, acima de tudo, as suas obrigações sociais.
O corpo de uma jovem mulher é encontrado após um telefonema anônimo para a delegacia. Está à beira de uma estrada, com os pés amarrados e sinais de violência. O médico legista é chamado para descobrir o que aconteceu e ajudar a polícia a desvendar o caso. Esse médico legista, cujo nome desconhecemos, ajudará a contar a história que é a história desse corpo e o que ele revela. Também conheceremos as histórias de outras pessoas, inclusive a do próprio médico, em suas vidas envoltas em solidão, com vozes narrativas intercaladas a cada novo personagem que é apresentado na obra.
Bauman (2007) menciona que a banalização da morte torna o confronto do homem com ela como um evento quase corriqueiro. A banalização leva a experiência única da morte para o domínio da rotina diária dos mortais, transformando suas vidas em perpétuas encenações de morte, familiarizando indivíduos com a experiência do fim e desfazendo o horror que transpira da total e absoluta incognoscibilidade da morte.
A morte, que não deixa de ser algo sublime, perde seu vigor ao ser negada e rejeitada em todos os seus aspectos, uma vez que o homem tornou-se um ser criado para viver intensamente, para a produção e consumo. Então, ele deixa de ser útil para a sociedade quando é impossibilitado de atuar conforme o mercado impõe.
Eis aí que a sociedade ocidental contemporânea reduziu a morte e tudo a que ela está associado: um nada. (…) A sociedade mercantil vai além ao transformar a morte num resíduo irreconhecível. Ela já não é mais um destino. O que existe é uma relação negativa com o sistema de produção, de troca e de consumo de mercadorias. É o estado de não-produção, de não-consumação. Ao negar a experiência da morte e do morrer, a sociedade realiza a coisificação do homem. (MARANHÃO, 1998, p. 19).
Quem não está morto de fato, mas se enquadra nesse processo de não consumação, não produção e não viver, simplesmente vira um vivo-morto e agoniza. Maranhão aponta que
Na sociedade industrial não há lugar para os agonizantes: são indivíduos que não produzem, não consomem, não acumulam, não respondem aos seus apelos, não competem, não se incomodam com o progresso, com o tempo nem com o dinheiro (MARANHÃO, 1998, p. 15).
Ao longo da narrativa encontramos personagens agonizantes em confronto com a morta Eduarda. Esses personagens sofrem parálise e não conseguem agir, tomar as rédeas de suas vidas. “Há momentos em que o sujeito fica tão acuado que parece não-viver. E esse não-viver pode ser equivalente a morrer. Então surge a situação paradoxal, em que a pessoa está morta, mas “esqueceu” de morrer: tem a chamada morte em vida” (KOVÁCS, 2003, p. 3). A autora completa seu raciocínio mencionando que são nos momentos em que não há lugar para a morte é que ela se faz mais presente, espreitando-se em todos os cantos, pois entrelaçamos vida e morte em todos os processos de nosso desenvolvimento vital. (op.cit., p. 2)
De acordo com Heidegger (2001), a morte pertence à própria estrutura essencial da existência, pois a existência do homem é um ser-para-a-morte. Ela não vem de fora, não é um acidente. Não caímos na morte de repente, mas caminhamos para ela passo a passo. Morremos a cada dia. O homem começa a viver tendo idade suficiente para morrer.
Os personagens apresentados na obra, os vivos-mortos, ou melhor, os agonizantes sofrem uma espécie de morte em vida designada por conta de perdas, de dores, de sofrimentos. Kovács diz que “a única morte experienciada é a perda, quer concreta, quer simbólica” e “é nesse sentido que a perda pode ser chamada de morte consciente ou de morte vivida” (2003, p. 38).
Nenhum personagem aproveita o momento. Todos se apropriam da dura tarefa de viver sem gozo e sem felicidade. São frustrados. De um lado, temos os vivos do livro que atuam como mortos, com vidas desfeitas, não vividas, abatidas e aparentemente ceifadas. De outro, temos uma morta que é ouvida e parece ter o poder de contar tudo o que aconteceu com ela como se revivesse, estivesse viva pelo menos no efêmero momento no qual podia se revelar: o da autopsia. De fato, a premissa do livro é a de que o corpo morto fala e tem a capacidade de dizer tudo o que lhe aconteceu para que chegasse naquela situação, no breve momento de uma autopsia, parecendo mais forte que os corpos que ainda se mantêm vivos ao longo da narrativa. E na figura do médico legista recai o poder de dar voz a quem não pode mais falar; o poder de respirar para quem não tem mais vida; o poder da ressurreição mesmo que rápida e impossível.
O silêncio dos personagens, que não sabem expressar seus sentimentos, pois sofrem e vivem em solidão, em dor, é algo fundamental na obra. O corpo morto desvenda os silêncios dos vivos em suas vidas medíocres e desinteressantes. Encontramos o silêncio do pai de Eduarda, que sem saber como lidar com a perda da mulher, por quem nunca expressou o seu amor, afasta cada vez mais a filha de seu convívio por conta de sua dificuldade de afeto e contato físico.
O ápice de afastamento e indiferença é retratado quando o pai passa pelo corpo da filha, na estrada, já morto, cheirado pelo cão e não enxerga nenhum traço familiar para um possível reconhecimento. Diante da morte do outro que está na estrada, da morte tornada banalizada na contemporaneidade, o pai, agonizante e também quase morto por dentro, segue seu passeio. O cão parecia mais incomodado com o cadáver que o homem:
Quando o homem se aproximou da ponte, já o cão rodeava o corpo. Cheirava-o, roçando o focinho nas carnes, veias e ossos que pareciam triturados. Conservavam os contornos intactos. Estendiam-se em duas pernas, dois braços, um tronco e uma cabeça de borco entre o passeio e o alcatrão (…) (MELO, 2004, p. 11).
Todavia, com o corpo daquele cadáver que ele não sabia ser de sua própria filha, o pai de Eduarda se identificou morbidamente, como prova do vivo-morto que é: “estranhamente, sentiu-se em paz na companhia daquela massa ensanguentada (…). Julgou que desfalecia e deitou-se ao comprido imitando a forma do corpo inerte e agarrando-se à terra com as mãos” (MELO, 2004, p. 18).
Alda é outra viva-morta da narrativa. Ela é a mulher de Jacinto, o assassino, e sofre em silêncio a opressão de um casamento frustrado e sem amor, onde o diálogo nunca existiu. Jacinto, que a abandona por alguns meses, movido por uma paixão avassaladora por Eduarda, retorna ao lar depois de assassinar a moça, sendo aceito sem quaisquer questionamentos. Reflete a falta de opção de uma pessoa que já morreu em vida pelo simples fato da vida não lhe oferecer melhores condições de sobrevivência. Por ter perdido a vontade de viver, aceita tudo passivamente, submissa até o fim: “Alda pensa que não importa onde ele esteve (…) é suficiente a certeza de que a caminhada terminou e de que, por fim, é ela quem o recebe (…)” (MELO, 2004, p. 121).
Miguel, colega de trabalho de Eduarda, há anos nutre seu amor por ela em silêncio. Quando descobre a morte da moça, sofre demais por não ter se confessado. Mais uma vez são os silêncios que falam mais que os personagens. É outro vivo-morto da narrativa, pois é incapaz de se expressar ou agir:
Desceu as escadas do prédio e só na rua, caminhando pelo passeio, pode chorar a morte de Eduarda. Chorou por ela e, sobretudo, por si próprio. Um choro miudinho.
Foi enquanto chorava que desejou ter tido coragem para um dia a ter abraçado, nem que tivesse sido apenas uma vez (…) (MELO, 2004, p. 96).
Assim, Miguel é mais um personagem construído pelo viés da parálise.
Os personagens apontados carregam um traço de comportamento que beira a neurose, cada um a seu jeito: o pai da morta é extremamente egoísta, Alda é submissa e Miguel é inseguro, medroso. Não são felizes por causa da impossibilidade de realização de felicidade em sociedade, desenvolvendo suas fobias e ansiedades. Freud, em O mal-estar da civilização, escreve: “descobriu-se que uma pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe (…)” (FREUD, 1986, p. 106). Desejos e pulsões não realizados provocam mal-estar. Um conflito entre a pulsão que quer se realizar e o superego que impede esta realização provocam mal-estar. Os sintomas advindos do conflito provocam mal-estar. Vida e sociedade reprimiram cada um deles.
Retomando as palavras de Maranhão (1998, P. 15), “na sociedade industrial não há lugar para os agonizantes”. E cada um dos personagens apresentados parece excluído socialmente, recluso em seu mundo particular. Eles agonizam porque não produzem, não consomem, não competem, não se incomodam… Miguel é conformado e não pensa em crescer profissionalmente; Alda e o pai de Eduarda conformam-se com os rumos que a vida dispõe. Todos agonizam em vida. Não vivem, apenas existem.
O médico legista, com toda a descrição dos passos da autópsia que faz no corpo de Eduarda, estabelece uma relação quase poética com os cadáveres com os quais lida diariamente, filosofando sobre a vida, como se com esses corpos ele realmente pudesse conversar. A força do texto de Filipa impressiona nas descrições precisas da autopsia e na paixão que coloca no trabalho desse médico que, em sua vida pessoal, também sofre de imensa solidão, sem conseguir estabelecer relação sólida com as pessoas. O narrador assim o define:
Sujeito introvertido, propenso à depressões e a especulações absurdas. “Bicho-do-mato”, “individualista feroz” é o que dizem os amigos, esses que conto pelo dedo de uma só mão. Solteiro, inábil no trato com a generalidade dos seres humanos vivos, em especial com os seres humanos femininos. Perfeccionista, voluntarioso. Obcecado pela morte e por suas manifestações terrenas. Capaz de momentos de intensa euforia interior, mas habitualmente incapaz de os exteriorizar (MELO, 2004, p. 69).
À medida que conhecemos a história de Eduarda, a mulher que foi assassinada poucos dias após dar luz a um menino em um dos hospitais da cidade, pelo próprio amante e pai da criança, por estar inconformado com o fim do relacionamento, Melo vai descrevendo aos poucos o personagem do médico-legista. Com a solenidade de um ato religioso, com a violência de uma violação, com a ternura de uma carícia, esse corpo será desvelado através dos cortes profundos do bisturi de um médico-legista apaixonado pelos segredos que lhe contam os mortos que passam por suas mãos. O corpo humano encerra os mais intangíveis mistérios e Este é o meu corpo arrasta-nos para uma viagem ao fundo de nós mesmos, conduzidos por um estilo profundo, cirúrgico. O médico legista age como um verdadeiro “senhor da morte”, homem incapaz de se relacionar com os vivos, mas proativo para elucidar com presteza as artimanhas e os mistérios da morte. Essa fervorosa e íntima relação do médico legista com seu objeto de estudo lembra a afirmação feita por Kovács sobre a importância do estudo do cadáver antigamente:
Ariès introduz o tema da vida no corpo morto e o início da influência da medicina na história da morte, substituindo os homens do clero (…).
O cadáver é ainda um corpo, pois mantém resquícios de vida e de sensibilidade. Isto casa com a superstição popular de que o corpo ainda ouve e se lembra; por isso é necessário ter cuidado, não falar em sua presença. Ocorre uma certa confusão entre vida e morte, pois o corpo morte apresenta alguns movimentos, mesmo que de maneira diferente dos vivos. Pelos, unhas e dentes continuam a crescer. Nos enforcados pode se observar a ereção do pênis, o que justifica muitos enforcamentos porque a falta de ar causa excitação e na busca desta sensação muitos erraram e acabaram morrendo. É uma estranha relação entre a vida e a morte.
Os primeiros estudos dos médicos apresentavam a ideia de que o morto ainda tivesse algum tipo de personalidade. Este conceito foi abandonado no século XIX, quando a morte passa a ser a separação entre a alma e o corpo. A morte é a negatividade, e é estudada em função da doença. Assim, os cadáveres passam a adquirir grande importância porque contêm os segredos da vida e da morte, tornando-se objetos de estudo. Ou seja, o estudo dos cadáveres proporcionou um grande desenvolvimento da medicina, transformando os médicos nos grandes senhores da morte (…) (KOVÁCS, 2003, p. 53-54).
O “senhor da morte” do livro de Filipa Melo compreende sua estranha loucura e assim se apresenta à morta:
Este é um monólogo disfarçado de conversa. Um diálogo morto.
Não tenho ilusões. Entendo a minha loucura mascarada pelo delírio da morte nos corpos que corto. A morte é um diabo louco numa dança macabra dentro dos corpos. É com ela que eu falo: numa conversa de loucos.
Segundo dizem, para a morte e para o sol não se olha de frente. Por isso, continuo cego, a olhá-la. A olhar-me nela. A olhar-te. Cego e louco (MELO, 2004, p. 93).
Com o cadáver de Eduarda, o médico legista dialoga, se expõe, confessa a necessidade de seus gestos, enamora-se macabramente. Kovács menciona que erotismo, volúpia e morte se inter-relacionam: “Eros e Thanatos se aproximam nessa relação de prazer com sofrimento, do amor com a morte” (2003, p. 55). O médico legista sussurra à jovem cadáver:
Hesito. Confesso que tento manter no discurso a pose distante de quem te observa de fora. Comporto-me como um apaixonado e apercebo-me novamente disso. Tento cativar-te. A ti, imagina, estendida, esventrada à minha frente, rodeada da luz crua das lâmpadas fluorescentes e dos reflexos baços dos azulejos. O cenário é tudo menos romântico e eu ficciono-o para te poupar à crueza dos meus gestos.
Mas é verdade. Abro-te para te extrair os segredos e te deixar partir.
O meu corpo responde também. Sinto as mãos úmidas dentro das luvas, a testa quente, a boca áspera, depois inundada pela saliva, que engulo em pequenos goles. Quero deixar as formalidades e gritar-te que preciso que me ajudes.
Ajuda-me.
Regresso à técnica e acalmo-me. (MELO, 2004, p. 76).
Na insistência de seu monólogo amoroso e macabro, expõe sua vontade insana de ouvir Eduarda falar. Quer palavras. Quer saber mais sobre aquela que é mistério para ele. Então, disseca o corpo e descobre que Eduarda parira há pouco tempo:
As palavras não chegam.
(…)
Eu não sei nada. Nem de ti, nem da morte que te estancou as feridas e se prepara para reduzi-las a pó. Nem da vida que deixaste para trás.
Alguém ficou de ti. Confirmo-o agora.
Alguém que antes não era e que, quando morrer, nunca mais voltará a existir. Alguém que, como eu, te procurará por entre os despojos de ti, e que saberá encontrar-te, e desvendar os teus sinais (MELO, 2004, p. 90-91).
Como um verdadeiro deus, sussurra à morta a realidade dura da vida, parecendo o grande e único conhecedor da verdade:
Ninguém nasce duas vezes. Conheço a nossa individualidade composta de carne e sangue. Manobro a sua evidência na mesa de autópsias. Nascemos de uma só maneira, morremos segundo fórmulas infinitas. É a direcção que seguimos entre as duas etapas o que as estreita ou separa. O que nos destina a sobrevivermos na memória dos outros como um exemplar vivo ou um espécime morto. E a encerrarmos as nossas contas com eles. Não existem fórmulas para a vida. Em vão desejamos herdá-las. Em vão ansiamos fazer delas um legado. Em vão (MELO, 2004, p. 91-92).
Ao mencionar a falta de fórmulas para se viver feliz, o médico declara a impossibilidade de alcançar a satisfação em vida. É o grande porta-voz da autora na narrativa. Sem fórmulas não deve haver tentativas para se viver feliz, apenas a direta constatação dessa impossibilidade. Esse é o grande problema da condição do homem em sociedade. Mas Melo não deseja explicar nada, só deseja mostrar que o mundo é o ambiente certo para agonizar.
Norbert Elias traz à tona o problema da morte e, muito claramente, salienta a quem esse problema se destina: “A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na terra, a morte se constitui um problema só para os seres humanos” (ELIAS, 2001, p. 10). Na autopsia, o morto se despe de todos os seus problemas. O médico, vivo, assume os problemas do morto, inclusive o problema da própria morte que se apresenta. Esta é uma significativa construção no livro de Melo. A morte de Eduarda não foi chorada. Tida como indigente, levou-se um tempo para descobrir a sua partida. Na extinção do luto de seu passamento, uma realidade também na sociedade contemporânea conforme afirmam estudiosos como Ariès (1982) e Kovács (2003), o médico legista chora simbolicamente, por poucos minutos, a morte daquele corpo feminino do qual desconhece o nome e nada sabe sobre sua vida. Enluta-se por alguns momentos, entristece-se por ele, para depois rapidamente retornar ao seu mundo contemporâneo, efêmero e se entregar ao prazer das roscas gordurosas da padaria próxima ao Instituto Médico Legal. Sim, ele também se apresenta como uma espécie de neurótico no que diz respeito ao seu relacionamento com os vivos, mas, apesar de tudo, o médico é quem está mais apto para simbolizar o verdadeiro elo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. É como se a mensagem de Melo fosse mesmo mostrar que todos os problemas do mundo estão nas pessoas. Ademais, o médico é o único personagem que não sofre parálise e procura agir, mesmo que seja nos limites de seu ofício de legista. Também é o único personagem que não ignora a morte e dá a esta o seu valor necessário, livre das desconstruções banalizadas da pós-modernidade.
Considerações finais
O ato de morrer pertence à vida, assim como o ato de nascer. Não há vida sem morte e, inevitavelmente, cada vida humana chega ao seu final. Morrer é uma interrupção abrupta que o homem nunca estará, de fato, pronto para entender. É uma obrigação radical de se retirar do mundo. Por sua vez, morrer em vida apresenta-se como uma opção de existência e podemos observar isto em torno dos personagens da obra Este é o meu corpo. Opção de quem não quer fazer muito esforço ou já não acredita mais na vida.
Encontramos os personagens da obra de Filipa Melo, solitários, sem esperança e sem capacidade de entender suas realidades no mundo que os cerca. Apresentam um nível de conformismo muito grande que reflete a vida como algo tão inexorável como a morte em si. Para tais, a vida é frustrante e numa construção que beira o absurdo, é a finada da narrativa a personagem capaz de abrir questionamentos para o entendimento de tudo. Uma narrativa poética onde os vivos encontram-se mortos e a pessoa morta, mais viva que nunca. Isso para afirmar uma inquietação contemporânea, para justificar o abandono e o mal-estar do “desamparo” humano (FREUD, 1986). Enredos que mostram os problemas da condição do homem em sociedade. Um pessimismo essencial para despertar angústia naqueles que terminam a leitura da obra. A autora não procura explicar nada do que é abordado, uma vez que a vida não pode ser explicada. Ela só anseia mostrar o caos contemporâneo existente, mostrar os variados agonizantes que perambulam aqui e ali.
Referências bibliográficas
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. Escritos sobre a guerra e a morte. Covilhã: Lusosophia Press, 2009.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1986.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte II. Petrópolis: Vozes, 2001.
KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a morte: temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2006.
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MELO, Filipa. Este é o meu corpo. São Paulo: Planeta, 2004.